Não estranhe o título acima, pois irei contar a relação que isso tem com uma carreira bem-sucedida na indústria automobilística do Brasil e da Argentina.
Meu pai sempre foi um autoentusiasta, mas, curiosamente, a sua relação com o mundo das máquinas começou no meio das asas, na antiga Fábrica Militar de Aviões localizada na cidade de Córdoba, Argentina, onde entrou nos anos 1950 para ser uma espécie de menor aprendiz. Ali deu os primeiros passos no mundo da mecânica e aperfeiçoou os conhecimentos adquiridos em uma oficina onde trabalhava com parentes, desde adolescente.
Naquela época, com a Europa maltratada pelo período pós-guerra, a Argentina apresentava grande potencial para crescimento econômico e o jovem rapaz pretendia juntar a sua afeição ao mundo das máquinas com uma carreira na indústria automobilística. Para tal, pensou, precisava de duas coisas: uma carteira de motorista e formação técnica.
A primeira questão era mais fácil de resolver. Bastaria marcar um exame de direção no órgão de trânsito local e resolver a parada, pois já dirigia desde os 13 anos, desde a época da oficina mecânica. Faltava, porém, um detalhe básico: não tinha carro e o velho Lincoln Zephyr do pai, com um motor V-8 “transplantado”, que mais tremia do que girava, não era uma alternativa a ser considerada para o exame (temeu que o manhoso automóvel aprontasse uma das suas e o fizesse ser, injustamente, reprovado).
Dessa forma, uma ideia criativa lhe passou pela cabeça: procuraria um dos vários motoristas de táxi que faziam ponto na frente do órgão de trânsito e, por um preço, alugaria o veículo de um deles para a prova. Inacreditavelmente, o primeiro motorista consultado concordou sem titubear, mas o advertiu de algo que ele já sabia: por realizar a prova em um táxi, o examinador o avaliaria como motorista profissional e iria cobrar, além da habilidade na direção, que soubesse de cor o nome das ruas do centro da cidade.
Dessa forma, lá se foram os três, meu pai ao volante, o examinador ao lado e o chofer de praça no banco de trás, enquanto meu pai dirigia e recitava o nome das ruas que cruzariam no caminho. O candidato foi aprovado e, dessa forma, a primeira questão estava liquidada e a segunda, a dos estudos, seria um pouco mais demorada de conquistar.
O entusiasmado rapaz percebeu então, uma oportunidade; com o crescimento econômico da Argentina daqueles tempos indo de vento em popa, parte das instalações da antiga fábrica militar de aviões estava se transformando em uma fábrica de automóveis: a IKA, ou Indústrias Kaiser Argentina. Tratava-se de uma aliança do governo argentino com empresários americanos que buscavam internacionalizar a empresa (que já operava nos Estados Unidos).
Com o seu talento para o trabalho, e a sua dedicação aos estudos em período noturno, o agora jovem técnico e futuro engenheiro foi recrutado e iniciou a sua carreira na nascente empresa que, posteriormente, foi vendida para a Renault. Ali teve a chance de trabalhar duro, primeiramente, com os veículos da marca americana para depois se transformar em engenheiro de testes da marca francesa, ajudando a desenvolver inúmeros modelos e domando os cerca de 200 cv do lendário Renault Torino, o carro dos sonhos de qualquer argentino daquela época (com apelo histórico equivalente ao do Opala no Brasil). Meu pai tinha agora o emprego dos sonhos em uma empresa que fabricava aquilo que ele mais gostava: carros.
O destino, no entanto, reservava surpresas: no início dos anos ’70, após a bonança, prenúncios de uma crise econômica severa despontavam no horizonte da Argentina. O nada acomodado engenheiro, já casado e pai, decidiu tentar algo ousado: em uma viagem de carro quase ininterrupta de dois dias, ele e outro colega de trabalho vieram ao Brasil, especificamente a São Paulo, para bater à porta da indústria local atrás de trabalho.
Outra aposta bem pensada, como aquela do táxi, colocaria o meu pai frente a frente com uma grande oportunidade: ele se apresentou à portaria da então Chrysler do Brasil e, se identificando como um engenheiro argentino especialista em testes, pediu para falar com o diretor de engenharia da empresa americana. O surpreso executivo acabou por recebê-lo e confessar-lhe que procurava exatamente um profissional como ele e, assim, em poucas horas, proposta feita e emprego na mão, tinha um problema para resolver: era uma quarta-feira e tinham-lhe dado até a próxima segunda-feira para voltar à Argentina, devolver o carro do amigo e renunciar ao emprego a tempo de assumir as suas novas funções no Brasil (o desafio foi cumprido a contento).
Uma vez instalado no Brasil, trouxe a família um tempo depois e se dedicou ao novo trabalho com entusiasmo, como sempre. Não me esqueço nunca de quando chegava em casa no fim do dia, no modesto sobrado alugado do bairro Brooklin, dirigindo algum carro que então testava (não raro um Dodge Charger RT amarelo ou os mais simplórios Dart e Polara).
Mais uma vez o tempo passou e, por volta de 1973, nuvens negras novamente cobriram o horizonte. Notícias desencontradas davam conta de que a matriz fecharia a operação brasileira da Chrysler e, dessa forma, seria necessário procurar emprego novamente.
Por uma nova coincidência, naquele tempo, uma fabricante italiana, praticamente desconhecida no Brasil, tinha grandes planos para o país. A Fiat conseguira alguns incentivos do governo e se instalaria no Estado de Minas Gerais; fora, portanto, do grande eixo da indústria automobilística daquele tempo.
Após uma nova entrevista certeira no currículo, o já experiente engenheiro fazia as malas para morar em Belo Horizonte com a família. A novidade agora era que, em vez de potentes modelos de 6 e 8 cilindros, entre outros, trabalharia com um veículo modesto, porém adequado ao início de operações no Brasil: o Fiat 147.
O que se seguiu foram 25 anos de uma carreira vitoriosa como engenheiro-chefe de testes da Fiat no Brasil. Tomou parte em praticamente todos os grandes momentos da fabricante, trabalhando, entre outros, com 147, Uno, Tempra, Palio e foi, inclusive, garoto-propaganda do 147 ao participar de dois comerciais para a televisão, um deles ao disputar um desafio com um tanque do exército.
Assista aos comerciais:
Tenho grandes lembranças daquele tempo, sobretudo de quando éramos crianças e viajávamos com ele nos Fiat Oggi, Panorama, Prêmio e até mesmo de uma inesquecível jornada de férias rumo à Argentina em um portentoso Alfa Romeo 2300 Ti-4. Não me sai da memória a postura dele ao volante, dirigindo por horas a fio com precisão e habilidade inigualáveis.
Fato curioso à parte, jamais esqueceu as asas e, em 1975, tirou o brevê de piloto privado em Belo Horizonte como uma forma de restabelecer o vínculo com as origens na velha fábrica de aviões de Córdoba, onde tudo começara anos atrás.
Ao se aposentar da Fiat, no fim dos anos 90, o jovem espírito laborioso ainda estava lá e, assim, foi ser engenheiro residente de um reconhecido fabricante de autopeças, onde atuou até parar definitivamente, já no fim dos anos 2000.
Não satisfeito em ter tido tão longa carreira na indústria, me transmitiu também o “vírus” da gasolina, já que este ano eu mesmo faço 30 anos continuados de prestação de serviços a fabricantes, sempre seguindo o seu exemplo.
Por ironia do destino, duas das grandes empresas em que trabalhou no passado atualmente formam uma só: a FCA, ou Fiat Chrysler Automobiles.
Dessa forma, neste ano de 2018, ocasião em que o ainda jovem engenheiro automobilístico Enrique Floreano faz 80 anos, presto a minha homenagem ao homem que foi o meu exemplo de vida, e a quem me orgulho em chamar de pai.
O bondoso motorista de táxi de Córdoba, que um dia cedeu o seu ganha-pão para um humilde rapaz fazer um exame de direção, jamais poderia imaginar que estava tomando parte em uma história profissional de sucesso na indústria automobilística da América Latina…
Um grande abraço a todos, e obrigado por me deixar compartilhar momentos tão importantes da minha vida.
Ivan Floreano
Belo Horizonte – MG