Parabéns! Se você conseguiu sair do WhatsApp ou do Facebook e chegou até aqui, no site AUTOentusiastas, você já faz parte de uma minoria na internet. Não faz muito tempo tínhamos uma variedade de blogs e sites sobre diversos assuntos, mas que foram interrompidos mediante a facilidade de postar conteúdo nas redes sociais, que concentram a audiência e a renda com publicidade em cada vez menos gigantes da era virtual.
Assim como dirigir um carro com câmbio manual está ficando em desuso, visitar e colaborar com páginas autônomas também. Então seguimos insistindo em viver num padrão de vida diferente do atual e que talvez esteja com os dias contados, com menos celulares e mais sol, com menos curtidas do público e mais curtição anônima. Somos seres híbridos, criados numa época analógica tendo que se virar na nova época digital.
Por isso escrevo este artigo do leitor para o AE. Planejei-o para encerrar uma trilogia iniciada com o título Um Alfa Romeo para envelhecer conosco, seguida pela história contada em Viagem ao fundo do Vale.
Em meia década muita coisa pode mudar na vida de um indivíduo e sua família, e cheguei num momento que decidi vender meu Alfa Romeo 156. Reproduzo a seguir o texto que redigi para o site especializado em anúncios de carros de apelo entusiástico, o GT 40, vinculado ao FlatOut:
“Poderia usar este espaço para tecer as qualidades inerentes do Alfa Romeo 156 que o alfista já conhece de cor e salteado, assim como os seus pontos negativos, todos perdoáveis e contornáveis, como a suspensão manhosa para as nossas lombadas. Em vez disso, contarei um pouco dos cinco anos incríveis que passei com este cuore italiano.
Eu o busquei em Jundiaí, na casa de um mecânico especialista na marca. Desde então virei do avesso as estradas secundárias do Circuito das Águas e do Vale do Paraíba, entre o sul de Minas Gerais e São Paulo: fiz punta-tacco entre Lindoia e Socorro. Lustrei o pomo da alavanca de câmbio com o suor da minha mão nas trocas de marchas entre Serra Negra e Itapira. Respiramos, juntos, o ar da Mantiqueira nos arredores de Caçapava, contornando ainda os campos de lavanda da região de Cunha. Levamos duas noivas da família para a porta da igreja. Paramos no mirante de Campos do Jordão para admirar a paisagem. Tomamos chuva perto de Amparo, embalando os sonhos de uma dona e sua filha, numa demonstração de plena confiança no homem e na máquina.Parte dessa história está contada em dois artigos para o site AUTOentusiastas. Pesquise lá meu sobrenome junto do nome do carro. A gente não esconde nada.Aqui em Paulínia esse carro foi cuidado por outro mecânico aficionado por Alfa, que mantém um modelo 164 no seu acervo, de modo que posso dizer que hoje o carro está ainda melhor do que estava em 2013. E aí você pode me perguntar a razão de querer vendê-lo agora. Então lhe pedirei para perguntar para um estudante universitário, que também passou cinco anos incríveis na faculdade, conhecendo gente de todo lado, se ele quer se formar e seguir carreira ou quer ficar estacionado naquele estágio da vida?A vida só tem uma direção e ela vai para frente. E na garagem do futuro infelizmente não terei espaço para este 156 de velas gêmeas. Não quero deixá-lo ao relento, mas encontrar um gentleman driver que possa sentir, no leve trepidar gostoso do volante com aro de madeira, as boas vibrações acumuladas anteriormente. Logicamente faço isso com um aperto no peito. Não pensem que é fácil colocar um Alfa Romeo para vender. Trata-se de um exemplar que tem, sim, algumas marcas do tempo, e vai precisar, sim, de uma troca de pneus mais para frente. De imediato suas lentes dos faróis precisam de um clareamento. No mais, o carro tem muita saúde para render inúmeras viagens, quem sabe pela Serra Gaúcha ou para a Região dos Lagos — o sedã merece. Não é veículo para colocar num cavalete, nem para tunar. É um automóvel absolutamente original que deixará de pagar IPVA em São Paulo no ano que vem, ganhando placas pretas facilmente em dez anos. Finalmente, você pode perguntar se quero mesmo 27 mil reais por ele. Quero. Esse preço tem uma cláusula de não arrependimento. Portanto, não aceito trocas e não tenho pressa. O valor será muito bem investido na educação da minha garotinha, que vai chorar junto comigo quando este cuore nos deixar.”
Depois que publiquei o anúncio sacramentei uma decisão sem volta. Em poucos dias o telefone tocou e um senhor me pediu desculpas, pois não compraria o carro, mas queria dizer que escrevi uma bela mensagem e que se não estivesse restaurando outro veículo compraria o meu Alfa 156.
Acreditei que seria questão de tempo para vender a máquina. Na outra semana um novo telefonema, num domingo. O sujeito queria ver o carro ainda naquele dia, mas o destino me pregou uma peça: o Alfa Romeo estava na oficina para trocar uma peça do comando do ar condicionado. Falei a verdade, e que só poderia apresentar o automóvel no meio da semana. Creio que assustei o comprador, pois ele nunca mais ligou.
Já estava fazendo as contas de como usaria o dinheiro do carro no mercado financeiro. Este foi um aspecto importante na decisão de vendê-lo: comecei a trabalhar para uma casa independente de análise de investimentos em Bolsa de Valores e, coerente que sou, passei a comprar ações de grandes empresas e cotas de fundos imobiliários, pois são ativos que geram renda passiva num país onde o sistema público de aposentadoria está quase falido.
Adotando uma postura conservadora, aplicaria o dinheiro num fundo imobiliário cuja cota gira em torno de R$ 9,50. Cada cota rende por mês, na forma de aluguel livre de impostos, cerca de oito centavos. Parece pouco, mas com um Alfa Romeo 156 daria para comprar cerca de 2.800 cotas, gerando uma renda mensal média de R$ 224,00. Esse montante, ao final de um ano, seria de R$ 2.688,00 – ou seja: quase 10% do investimento. Nenhuma poupança, aluguel convencional ou aplicação bancária dá isso. Fora que poderia recomprar cotas todo mês e os juros compostos fariam o bolo crescer ao longo dos anos.
A venda do Alfa Romeo me renderia ao menos três mensalidades da escola da minha filha. Em tempos de crise generalizada, isso representa um alívio no bolso de um elemento ingressando na meia-idade.
Fui almoçar na casa dos meus pais no domingo, onde contei toda essa argumentação. Meu pai perdeu a paciência de imediato, afirmando que o mercado de capitais virou minha cabeça. Mas foi minha mãe que me apertou o coração. Ela apenas disse:
— Você vai mesmo vender um carro tão bonito?
Relatar isso sem o contexto não entrega o que senti naquela hora. Então, imagine esta cena num filme de Sergio Leone, com trilha sonora de Ennio Morricone. A câmera focaliza nos olhos de uma senhora com olhos luminosos. Há uma pausa após sua fala. Corta para a minha face, de barba rala abaixando o queixo para centrar a vista no prato de macarrão.
Minha mãe sempre me apoiou nos impulsos românticos. Ela sabe o quanto gosto daquele Alfa Romeo, que não comprei pensando em valorização ou coisa do tipo. Meu pai, que sempre foi mais cético, também estava convencido de que eu deveria ficar com o carro.
Minha esposa, vendo que meus pais estavam me contrariando, reforçou a torcida contra. “Quando nossa Palio Weekend for para a oficina, quem vai levar a Carol à escola?” — questionou. Que bela desculpa! A gente se vira muito bem com um carro só. Mas minha esposa não queria dar o braço a torcer: ela também gosta muito do Alfa.
Os dias foram passando até que um amigo de infância, que não via há meses, veio me visitar. O ex-comilão de carne havia se tornado um vegano, ficou magro de fazer inveja. Ele simplesmente não tem carro — é o sujeito menos autoentusiasta que conheço, mas me surpreendeu:
— Vi que você colocou seu Alfa Romeo para vender e não acreditei. Não consigo imaginar você num carro comum. Uma vez assisti a um vídeo no qual você dirige o Alfa na estrada para Águas de Lindoia trocando marchas freneticamente. Posso te pedir uma coisa que nunca pedi? Na próxima vez, posso ir junto?
Note que ele já estava considerando que eu não venderia o Alfa Romeo. Além de vegano meu amigo é bom observador. O vídeo a que ele se refere também está publicado no AE.
E como estamos numa trilogia, eis que retorna um personagem importante do primeiro capítulo. Seria Obi-Wan Kenobi? Não! Era o Arnaldo Keller mesmo, o mestre em gentefinesse. Ele me enviou o seguinte e-mail:
“Jean, boa tarde!
Espero que esteja tudo bem com você e família. Por aqui, tudo bem; já com três netinhos.
Pois então, está para me entrar uma graninha extra e estou a fins de comprar um 156. Agora é a sua vez de botar pilha…
Estou de olho em um com 85 mil km e pede R$ 28 mil. Parece bem cuidado.
Abraço,
Arnaldo Keller”
Então me bateu um remorso mais dolorido que um golpe de sabre de luz. Consegui me ver na pele de Luke Skywalker descobrindo ser filho de Darth Vader. Como explicaria para o Arnaldo que desejava vender meu Alfa Romeo 156?
Decidi voltar atrás!
Mas então arranjei outro conflito: como resolveria aquela conversa de que a vida só tem uma direção e ela vai para frente?
Só tinha um jeito: teria que recomprar o Alfa Romeo 156. Não mais apenas para mim, mas para meus pais, minha esposa, minha filha e meus amigos. Este Alfa não seria mais só meu, seria nosso.
Em momentos impactantes de conversão, as pessoas podem mudar de nome. Saulo se tornou São Paulo. Cassius Clay virou Muhammad Ali. Portanto, o Alfa Romeo acaba de ganhar um novo nome: Alfa Ronosso.
Esta trilogia se encerra do mesmo modo, pois não posso continuar escrevendo a saga sozinho. Preciso da ajuda daqueles que me cercam e se importam comigo, pois acima de tudo me importo com eles também. Esta é verdadeira rede social que vale a pena tecer.
Jean Tosetto
Paulínia – SP