No último dia 3 Michael Schumacher completou 50 anos e muito se falou de suas conquistas, momentos marcantes e acerca do acidente que o afastou da vida pública quando esquiava com seu filho em Meribel, nos Alpes franceses, em dezembro de 2013. No dia 8 de janeiro de 2014, exatos cinco anos atrás, investigações de autoridades francesas levaram à conclusão que o piloto estava esquiando fora da pista demarcada e que não tentou diminuir a velocidade antes de sofrer uma queda quase fatal.
Durante anos convivi com Schumacher nos autódromos e circuitos onde a F-1 de apresentava. Dias atrás, me lembrei de uma manhã de sábado, cerca de 23 anos atrás, quando passei um bom tempo conversando com o heptacampeão na pista de Fiorano (foto de abertura), encontro que rendeu a entrevista de página inteira publicada no jornal O Estado de S.Paulo na sexta-feira, 29 de março de 1996. Foi impossível ficar indiferente e refletir sobre algumas de suas declarações. Previsto para durar uma hora, o encontro estendeu-se por pouco mais que o dobro, tempo suficiente para conhecer o outro lado de um piloto tido como frio e calculista. Mais do que isso, nos aproximou bastante e teve consequências positivas em alguns momentos mais conturbados no corre-corre de alguns GPs.
Um desses momentos aconteceu no GP da Bélgica daquele ano, quando conquistou sua segunda vitória pela Ferrari, equipe onde conquistou cinco dos seus sete títulos mundiais. Terminada a corrida demorei um pouco mais que o esperado para ir da cabine de transmissão da Telefe (emissora de TV argentina onde eu atuei como comentarista por vários anos) e cheguei quando sua coletiva no motorhome da Ferrari estava terminando. Em outras palavras era como ficar sem a entrevista do vencedor da prova; meio sem jeito, fiquei esperando uma oportunidade para lhe dar parabéns e quando tentava uma solução alternativa Schumacher se adiantou e me salvou:
“Tenho um briefing de 20 minutos com a equipe e depois vou para o estacionamento. Me espera naquela porta ali e gravamos enquanto caminho até o meu carro. Tudo bem?”
Tudo bem nada: tudo ótimo. Eu e o cinegrafista Juan Fossaroli, hoje repórter da Fox da Argentina, esperamos ali no cantinho do motorhome. Vinte minutos mais tarde a reunião acaba e Schumacher vem em nossa direção e fazemos a entrevista enquanto caminhamos algumas centenas de metros, distância suficiente para evitar que o dia tivesse final digno de tango… E lembrar que tudo começou com uma pauta sugerida por Ryo Tsujioka, jornalista que me abriu as portas do mercado japonês ao me convidar para fazer parte da equipe da revista Grand Prix Sports. A GPS era uma publicação típica do mercado nipônico: tamanho próximo a uma folha A3 (297 x 420 mm), extremamente colorida e com ilustrações enormes.
Tsujioka era um companheiro interessante de viagens e tinha várias manias: menos de vinte mil ienes (algo próximo de oitocentos reais…) no bolso o deixavam inseguro o suficiente para fumar com intensidade de fazer inveja a amigos como Almyr Vidal Júnior e Bob Sharp. Em velocidade de cruzeiro Tsujioka-san acendia o próximo cigarro com a bituca do último. Durante uma noitada em que ele me levou a conhecer vários botecos em Tóquio, no intervalo entre os GPs do Pacífico (22/10) e Japão (29/10) de 1995, ele quem me incentivou a tentar uma “one-to-one”— como uma entrevista exclusiva é descrita em inglês — com Michael Schumacher. No fim de semana de Suzuka iniciei os contatos com Heiner Buchinger, um alemão boa-praça que na época era o assessor de imprensa de Schumacher e ficamos de falar “em breve”.
Passa o tempo, acaba o ano e silêncio de rádio, ou seja, nada. Começa a temporada de 1996 e retornamos à Austrália, desta vez para Melbourne e não para Adelaide, onde a temporada anterior havia terminado. No paddock de Albert Park a confusão era grande, mas acabei cruzando novamente com Buchinger, que me reconfortou:
“Logo, logo você vai ter uma notícia boa…keep cool!”
Volto para casa após a estreia de Schumacher na Ferrari; Damon Hill venceu a prova e o alemão, que largou em quarto, abandonou na 32a volta com problemas nos freios. Tarde de quinta-feira, toca o telefone em meu apartamento em West End Lane, rua londrina que demarca o final da famosa Abbey Road. Do outro lado da linha ouço o assessor de imprensa de Michael Schumacher me dar boas notícias:
“O Michael vai testar sábado em Fiorano e consegui reservar uma hora para você entrevista-lo após o treino. Tudo bem?”
Tudo ótimo. Já naquela época conseguir uma exclusiva com um piloto de ponta, em particular com o recém-chegado na Ferrari, era algo que demandava muitas negociações e muitos contatos nos lugares certos. Tarde de sexta-feira, entre fazer check-in em Heathrow e embarcar no Airbus A300 da Alitalia, noto uma livraria expondo o livro Theories of the Universe, obra de Stephen Hawking lançada havia pouco mais de um mês; achei que seria gentil oferecer esse livro ao piloto como forma de agradecer sua deferência em me receber.
De Milão a Maranello são pouco menos de 200 km e lá fui eu. Sábado de manhã tomo a prima colazione num pequeno hotel de Modena e nem notei o tempo um tanto fechado. A cada quilômetro rumo a Fiorano, onde fica a pista de prova da Ferrari, a névoa aumentava tanto quanto minha preocupação: com aquele tempo era difícil acreditar que haveria o teste e que o piloto ainda estivesse na casa de Maranello… Vale explicar a diferença entre Maranello e Fiorano, algo mais ou menos assim: você entra em sua casa pela porta social e está em Maranello; você entra pela porta de serviço, está em Fiorano.
Foi chegar ao portão do Riparto Corsa e já ouvir o V-10 roncando alto — tempos de F-1 raiz…— antes mesmo do segurança postado na recepção me pedir para estacionar junto à casella. Não se tratava de uma caixa de correio ou caixinha como sugere uma tradução literal, mas de uma casa de dois pisos que servia de escritório e residência paralela de Enzo Ferrari. É para lá que me vou. Por volta do meio-dia chega o grande momento e Michael Schumacher, ainda de macacão, me recebe. Entrego-lhe o livro de Stephen Hawking: ele olha, agradece o presente e, num gesto que sugere indiferença, o coloca de lado. Começamos a conversar, o papo vai ficando cada vez mais solto e quando lhe pergunto sobre algum piloto que o tenha inspirado, ele retesa as mãos, gerando um ar algo tenso no ambiente e sua resposta é entre o lacônico e o respeitoso:
“Acho que já falei muito a esse respeito. É muito triste ter de falar sobre o assunto outra vez…”
A resposta deixou implícito referência a Ayrton Senna, mas era preciso confirmar isso com o próprio Schumacher. Para aliviar o clima, engato uma conversa sobre seus carros particulares (tinha vendido seu Bugatti havia pouco tempo), chegamos à paixão pelos cachorros — ele e Corinna Schumacher adotaram um vira-lata brasileiro —, e falamos sobre suas ações de caridade em nosso País. Já estávamos conversando além da hora que me fora reservada quando encerrei a entrevista. Desligo o gravador e ele pergunta se parei de gravar. Ao ouvir que sim, solta, de bate pronto:
“Por que você me trouxe esse livro?”
Explico que ao me preparar para essa entrevista havia pesquisado outras exclusivas que ele havia dado e em uma delas um colega canadense escreveu sobre sua admiração por Stephen Hawking, o famoso físico inglês falecido em 14 de março de 2018. Foi o suficiente para ele revelar:
“Eu nem conheço esse cara…”
Aproveitei a oportunidade e lembrei a pergunta que gerou o clima tenso. Expliquei a ele a necessidade de ter certeza da opinião e pontos de vista de um entrevistado para evitar escrever algo inverídico, como sua admiração por Hawking… Ele sorriu, continuamos conversando por mais uma hora e a partir de então nos cumprimentávamos em aeroportos, restaurantes, paddocks e até gravamos entrevista entre o moto home da Ferrari e o estacionamento onde parou seu carro em Spa. Esse é o Michael que me confessou, durante a entrevista on the record em Fiorano:
“Estou numa posição em que ganho muito dinheiro, dinheiro que não vou conseguir nem poderei levar comigo quando morrer (…) Deus não me premiou com isso apenas para minha satisfação pessoal”.
Que não falte a Michael Schumacher os meios que contribuam para sua recuperação tão plena quanto possível.
WG