Nenhuma equipe da F-1 concentra tradição, paixão e tertúlias em doses nada homeopáticas como a Ferrari, única marca presente em todas as edições do Campeonato Mundial de F-1, certame que surgiu em 1950. Com orçamento à altura de sua legião de fãs, poder político inigualável e pilotos de primeira linha, a Scuderia mais famosa do esporte e uma das marcas mais valiosas do planeta ainda não mostrou as consequências que todos esperavam após a recente troca de comando: na entressafra das temporadas 2018/2019. O italiano Maurizio Arrivabene, oriundo do mundo do marketing,, foi substituído por Mattia Binotto, um engenheiro oriundo do cantão italiano da Suíça.
A mídia especializada europeia não poupa espaço para tentar entender e explicar as causas dos resultados abaixo do esperado apresentado pelo veterano Sebastian Vettel e o novato Charles Leclerc. Desde a preferência velada a favor do alemão, passando pela falha no carro do monegasco que o impediu de vencer o GP do Bahrein e chegando à atuação centralizadora do suíço Binotto, não há falta de cenários analisados para justificar algo muito mais comum do que muitos imaginam.
Entender a Ferrari demanda conhecer um pouco da cultura latina, onde as lutas pelo poder são embaladas em papel marcado pelos vincos do orgulho e amarrados algumas vezes em laços de presente, mais frequentemente atados por um nó cego. No começo era Enzo Ferrari quem comandava, pessoalmente ou através de prepostos, situação que ficou clara em 1966, ano em que o regulamento da categoria foi alterado para permitir motores de 3.000 cm³ de aspiração atmosférica ou de 1.500 cm³ com superalimentação — nos cinco anos anteriores era exclusivamente 1.500 cm³ de aspiração atmosférica . O modelo 312 usava o motor V-12 dos famosos protótipos 330-P com a cilindrada reduzida em 0,3 litro e instalado em um chassi de alumínio semimonobloco, técnica que ganhava o espaço anteriormente exclusivo dos chassis tubulares.
Nas mãos de John Surtees o modelo 312 venceu os GPs de Siracusa (extracampeonato) e o da Bélgica, e tudo parecia ir muito bem rumo a um novo título do piloto inglês a bordo de uma máquina de Maranello até que… Nos treinos para as 24 Horas de Le Mans de 1966 Surtees e o então direttore sportivo Eugenio Dragoni se desentenderam e tudo foi por água abaixo: o campeão mundial pela Ferrari em 1964 apareceu no GP da França, a terceira etapa da temporada de F-1, a bordo de um Cooper equipado com motor…Maserati. A Ferrari respondeu com pole position de Lorenzo Bandini e o segundo lugar de Mike Parkes e ainda fez dobradinha em Monza, com Ludovico Scarfiotti liderando Parkes, mas Surtees venceu no México e terminou o ano como vice-campeão, com 28 pontos, 14 atrás de Jack Brabham. Era o início de uma era de maus resultados para a casa italiana.
Os sinos da igreja matriz de Modena só voltariam a bater em 1975, quando o austríaco Niki Lauda impôs certa dose de comportamento teutônico. Ele voltou a vencer e 1977 e só não chegou ao tricampeonato por causa do seu histórico acidente no GP da Alemanha de 1976 e a decisão de abandonar o GP do Japão quando correu ainda exibindo as sequelas das muitas queimaduras que sofreu em Nürburgring. O título de Jody Scheckter, em 1979, selou o fim desse período de bons resultados. Em 1982 as chances eram boas, mas acidentes com Gilles Villeneuve e Didier Pironi impediram que o campeonato terminassem com vitória.
Um novo título só viria acontecer em 2000, quando a estrutura da equipe era dominada por imigrantes: o poder maior estava nas mãos do francês Jean Todt, o inglês Ross Brawn coordenava a operação esportiva, o sul-africano Rory Byrne desenhava os carros e o alemão Michael Schumacher iniciava uma série de cinco títulos consecutivos, alguns deles com a colaboração de Rubens Barrichello. A partir de então a estrutura multinacional e vitoriosa foi sendo desmontada e o título de Kimi Räikkönen, em 2007, foi o último conquistado pela Ferrari desde então. Felipe Massa ficou a uma curva do título de 2008 e a chegada de Fernando Alonso não ajudou a por fim em tal seca de resultados.
Este ano Mattia Binotto, de formação essencialmente técnica, concentra as decisões, Sebastian Vettel ainda não recuperou o esplendor que lhe garantiu quatro títulos consecutivos pela Red Bull (2010/11/12/14) e Charles Leclerc exibe uma sede que só será aplacada quando for autorizado a defender sua posição frente ao seu companheiro de equipe. Não seria nada mau que isso acontecesse a partir do próximo fim de semana, quando o campeonato prossegue nas ruas de Baku, a capital do Azerbaijão.
WG
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