Dentro do roteiro desta longa viagem que estou fazendo este ano, sempre procuro a ligação com os automóveis, seja fotografando carros na rua, seja visitando museus, revendas e encontros que vão aparecendo pelo caminho.
Tendo Munique como um dos meus pontos de apoio para algumas viagens internas na Europa, fiquei hospedado na casa do meu compadre, Raul Pires, que um dia indiquei para auxiliar meu ex-Designer-chefe, Sr. Günter Hix, quando ele foi indicado para iniciar o renascimento da marca Škoda, na época, recém-comprada pelo grupo Volkswagen.
O Raul foi o jovem designer, que encarou a República Checa, logo após a queda da divisão da Europa, lá pelos anos 1990.
Ele foi o principal responsável pela nova imagem de design da renascida Škoda, e mais tarde, foi carregado junto com seu novo chefe para a Bentley, também recém-adquirida pelo grupo VW.
Na Bentley, Raul “ganhou” a competição para desenhar o primeiro carro significativo da nova Bentley, o Continental GT, automóvel que foi a ponta de lança da nova linguagem de Design da marca (foto de abertura).
Este carro foi considerado um dos 15 automóveis mais belos do mundo, por algumas revistas e especialistas de renome internacional.
Por si só esta façanha seria o ápice de qualquer carreira, mas a dele continuou sempre em alto nível, e hoje trabalhando para a Audi, Raul está baseado em Munique, esta linda cidade do sul da Alemanha, e que se tornou um ímã para empresas high-tech.
Fomos juntos até o museu da Audi, que fica a pouca distância do novo prédio de design da Audi, que custou a bagatela de 100 milhões de euros e abriga 450 designers e especialistas da área de Design em um só teto.
O museu é tímido em comparação com a grandeza e proezas da marca e tem um belo conteúdo, em especial e surpreendentemente pela quantidade de motos, oriundas do início da fusão das marcas.
Mas revendo alguns dos carros expostos no museu, nosso papo, que, aliás, não consegue descolar do mesmo tema, automóvel, nos levou à qualidade, não só do design dos carros expostos, como o Avantissimo, o Stepenwolf, e outros, criados na era do Sr. Hartmut Warkuss, mas também a qualidade dos Designers da época.
Trabalhei diretamente com o Warkuss, que nos ajudou a emplacar muito carros brasileiros, especialmente o Fox, onde ele foi a figura imprescindível para a aprovação do projeto.
Mas a maior contribuição do Warkuss foi, do meu ponto de vista, a maneira que ele agregou grandes designers ao seu redor, designers vindos não só da Alemanha mas de todo o mundo,
Foi ele que semeou um nova geração de designers de alta categoria, permitindo e incentivando a criação e o Design sem politicagem, todos unidos e envolvidos profundamente em um processo limpo e eficiente de onde nasceram não só grande automóveis mas também, grande Designers.
Peter Schreyer (Kia/Hyundai) Klaus Bischoff (Volkswagen), Thomas Ingenlad (Volvo), Stefan Shilaff (Audi), Mercedes-Benz, Škoda, Ford, foram somente alguns dos mestres formados dentro da filosofia Warkuss.
E a filosofia Warkuss era baseada em um dos mais difíceis temas em qualquer área do design: simplicidade, solidez, balanço, enfim, bom gosto e qualidade de superfície de design baseado na essência das marcas.
Ele era um homem carismático e superpoderoso, daqueles que ultrapassam seus limites e assumia completamente a responsabilidade do seu trabalho.
Embora houvessem pessoas com cargos mais altos que ele, sua palavra era a final e poucos se atreviam a enfrentá-lo.
Muitas vezes ele permitia que interferências externas modificassem seus objetivos, permitindo nas reuniões de decisão, que seu design fosse alterado.
porém, espertamente ele dizia, após a reunião a seus grupos: agora sim começa nosso trabalho.
Isso significava que mesmo tendo sido decidido algum desvio, devido a pressões políticas, ele sabia como desfazer e reconstruir seus temas nas fases pós-decisão, onde os burocratas, perdidos em seus papéis, perdiam o foco nos modelos aprovados.
Este era o momento de, com aliados na engenharia e na produção, retornar aos seus temas, baseado em razões de viabilidade técnica de manufatura e engenharia.
Quando os burocratas viam o carro pronto, ou em fase avançada, alguns percebiam que o tema aprovado tinha sido modificado conforme o desejo inicial do Warkuss, e devido ao timing do programa, não poderiam mais ser modificado conforme a aprovação formal.
Mas a grande maioria destes burocratas nem se quer percebiam as mudanças, já que o negócio deles não era design.
Com os que percebiam a mutreta, o Warkuss envolvia com seu carisma e poder de dissuasão e jogavas panos quentes sobre a questão.
Outra característica do Warkuss era a de escolher temas baseados em pequenos esboços, e não nos sketches e renders de alta qualidade.
Nos pequenos esboços ele via a essência da ideia, e depois do temas escolhido ele se mantinha fiel ou tema, fazendo com que os designers não perderem o tema inicial durante o desenvolvimento do modelo.
Ele acompanhava pessoalmente o desenvolvimento dos modelos, não em apresentações grandiosas, mas visitando diariamente os inúmeros modelos em trabalho nos vários estúdios do grupo, oque não era uma missão fácil, já que haviam muitos modelos sendo desenvolvidos não só fora na matriz da VW em Wolfsburg, onde estava seu escritório, mas em muitos estúdios do grupo na Alemanha, como a Audi e Porsche, estúdios terceirizados, estúdios em outros países da Europa, como o da Škoda e Seat, e também estúdios-satélites no Brasil, Califórnia e na China.
Em resumo, o homem estava sempre e literalmente no ar, voando de um lado para o outro, muitas vezes no avião da companhia ou pilotando seu próprio avião ou o de amigos.
Um genuíno rock-star do design internacional.
O resultado deste padrão são obras de arte da indústria automobilística, como o Bugatti Veyron, Bentley continental GT, Audi TT, Audi R8, e uma seria de show cars belíssimos como o Avantissimo, Stepenwolf, e muitos, muitos outros.
Infelizmente a coisa toda mudou muito de lá para cá.
Hoje o trabalho em todas grandes companhias é muito mais burocrático e político do que criativo e eficiente.
A coisa vai mais pela quantidade de ideias que vão sendo sistematicamente e parcialmente anexadas a um modelo final, tornando-o um caleidoscópio de clichês, decidido por políticos e doutores com muita teoria e pouca experiência que puxam a sardinha para o lado que mais lhe convém, atropelando a visão dos designers baseados em pesquisas encomendadas de cenários atuais e não do futuro.
O resultado, pôde-se perceber claramente, são carros sem alma, com muitas linhas e de gosto duvidoso.
Poucas são as marcas que mantém uma tradição, que buscam uma linguagem pura, baseada no seu DNA.
Talvez eu possa ser chamado de velho, que para mim significa experiente, mas para muitos significa ultrapassado.
Estamos na fase do efeito WOW!, do impacto a primeira voltado para pessoas sem uma direção, sem uma opinião, para Marias-vão-com-as-outras, esquecendo que o que é bom nunca morre e que a beleza tem suas regras e limites.
LV