O mundo dos supercarros é no mínimo curioso. Carros que aparentemente são de épocas e fabricantes diferentes podem ter relações escondidas que nem desconfiamos. Se pensarmos bem, é até compreensível, pois é um mundo muito restrito, e poucas pessoas se aventuram neste universo incrível e maravilhoso das máquinas dos sonhos.
Quando a Bugatti voltou à vida, há poucos anos atrás, e surpreendeu o mundo com o 16/4 Veyron, foi como o ressurgimento de um mito. A Bugatti do começo do século 20 era uma fábrica distinta, refinada, uma referência para o mundo todo de como automóveis deveriam ser feitos. Os mais conservadores podem dizer que o Veyron não passa de um VW anabolizado, mas não o vejo assim.
O Veyron pode ter sido criado a partir do grupo VW e pela engenharia alemã, mas manteve a aura dos Bugatti. É um carro feito sem poupar despesas, fabricado com um objetivo claro de ser o melhor, assim como os antigos Bugattis foram os melhores de seu tempo. Mas entre o último carro dos tempos de Ettore e Jean Bugatti e o Veyron de 1.000 cv e 407 km/h de máxima, existiu um modelo que não deixava nada a desejar perante seu passado. Este foi o EB110 GT.
Podemos dizer que o mundo deve a três homens o nascimento deste carro que marcou uma geração de supercarros. Nos anos 1980, a marca francesa que havia passado de mão em mão ao longo dos anos, estava associada a uma empresa de tecnologia aeroespacial, especializada em trens de pouso, chamada Messier-Bugatti-Dowty, e os direitos da marca Bugatti foram compradas por Romano Artioli.
Artioli era um italiano envolvido com carros há anos, melhor dizendo, envolvido com negócios. Ele era revendedor Ferrari, um dos maiores do mundo, e representante Suzuki na Europa. Muito bom de lábia e de negócios, Romano conseguiu mobilizar capital suficiente para erguer uma grande fábrica de carros em Campogalliano, perto de Modena (Itália), exclusivamente para sua nova empreitada. O desenho do prédio foi feito por Giampaolo Benedini, arquiteto parente de Artioli. Há quem diga que ele investiu boa parte do próprio bolso, outros dizem que ele levantou dinheiro dos parceiros de desenvolvimento do seu projeto. De qualquer maneira, assim nasceu a Bugatti Automobili S.p.A.
O novo projeto de Artioli que traria de volta o nome Bugatti era uma homenagem aos 110 anos do nascimento de Ettore, e assim foi chamado de EB110 GT. Romano queria um carro à altura dos feitos dos Bugattis do passado. Deveria ser superlativo, inconfundível e merecedor do nome Bugatti. Mas, reviver uma marca esquecida não foi por acaso.
Como o mundo dos supercarros é pequeno, poucas pessoas eram capacitadas para bolar e desenvolver algo tão grandioso como Romano queria. Na realidade, o novo Bugatti não existiria como o conhecemos se não fosse a Lamborghini. Na verdade, o Lamborghini, o signore Lamborghini. Isso mesmo, o EB110 era praticamente um filho bastardo de Ferruccio Lamborghini, pai da marca do touro enfurecido de Bolonha.
A idéia de construir um novo supercarro veio de Ferruccio e um de seus maiores engenheiros, Paolo Stanzani, que foi chefe de desenvolvimento da Lamborghini por muito anos. Eles tinham os planos e as idéias, e Artioli tinha o dinheiro. Após diversas conversas e jantares de negócios, Artioli mostrou sua pretensão de reviver o nome de alguma grande marca do passado, o que viria a calhar com os planos de Lamborghini e Stanzani. Ficaram entre Bugatti e Isotta-Fraschini, ambas esquecidas no mundo. Comercialmente, a balança pesou para a Bugatti, e assim foi.
Para desenhar o novo carro que levaria o nome Bugatti, quatro renomados designers foram convidados a mostrar propostas para a equipe de Artioli. Eram eles Paolo Martin, Giorgetto Giugiaro, Nuccio Bertone e Marcello Gandini.
Martin trabalhou na Michelotti e na Pininfarina, e apresentou o conceito PM1 Bugatti. Não atraiu muito os olhos da fábrica e foi descartado. Bertone não se acertou com o time da Bugatti, chegou a fazer uma proposta mas logo a destruiu. Giugiaro fez a proposta chamada Italdesign ID 90, que foi apresentada no Salão de Turim de 1990. Era bem conceituada, harmoniosa, mas também não se acertou com os homens da Bugatti.
O design oficial da primeira carroceria, bem intimidante e controversa, viria das habilidosas mãos de Marcello Gandini. Pelos seus belos trabalhos na Lamborghini, como o Countach, a equipe da Bugatti escolheu o mestre Gandini para desenhar sua criação. As portas tipo tesoura do Countach foram incorporadas ao EB110 GT original, bem como algumas linhas características dos Lamborghini.
A frente baixa e lisa dos primeiros protótipos remete ao próprio Countach, com linhas retas e vincadas. O EB110 final ficou mais arredondado e suave. Na verdade, o desenho de Gandini original parou nos primeiros protótipos, o design final não era mais dele, que inclusive não aprovou nem assinou o carro.
Um dos requisitos para o projeto do Bugatti dos anos 1990 era o desempenho. O custo do carro e os investimentos necessários para criar o mais marcante carro esportivo de todos os tempos estava sendo considerado. Contemporâneo de carros como Ferrari F40, Jaguar XJ220 e Porsche 959, o EB110 precisava ser mais rápido, mais moderno e mais desejado que todos eles.
Muitas inovações foram consideradas, e algumas chegaram até a ser testadas. Suspensão ativa derivada do conceito do Citroën SM chegou a ser considerada, mas descartada, assim como um novo sistema de freios de carbono, onde não se usariam pastilhas de atrito e uma pinça, mas sim discos de contato em carbono. Um disco central que girava com a roda seria o núcleo, e outros dois discos externos, fixos no que seria uma grande pinça, que se fechavam contra o disco do núcleo, como um sanduíche prensado. O sistema funcionou, porém o custo era estupidamente alto e mataria o planejamento de custos do carro todo.
O chassi foi desenvolvido com a empresa francesa Aérospatiale, com grande know-how em materiais compósitos de uso em aviação. Uma estrutura central de fibra de carbono seria o núcleo do carro, com elevada rigidez e baixo peso, um dos pioneiros neste conceito. Ainda uma novidade em carros de rua, a tecnologia da fibra de carbono estrutural era caríssima e exclusiva. O entreeixos de 2.550 mm era um intermediário entre o ágil Ferrari F40 (2.450 mm) e o enorme Jaguar XJ220 (2.640 mm).
Gandini desenhou originalmente o EB110 ao redor desta célula de compósito de fibra de carbono. Ao contrário de carros como o McLaren F1 que viria pouco tempo depois, o Bugatti tinha a carroceria feita em alumínio, com pouca função estrutural. Era como uma suave cobertura esculpida cuidadosamente sobre um forte chassi e sua mecânica.
Não apenas nas portas a essência da Lamborghini estava presente no novo EB. A parte mecânica foi desenvolvida pelo próprio Stanzani. Ele foi um dos primeiros funcionários da Lamborghini, contratado por Ferruccio em 1963 para projetar juntamente com Gian Paolo Dallara os carros que deveriam afrontar as máquinas de Enzo Ferrari. Stanzani era o responsável pelos motores e Dallara, pelo chassi. Juntos fizeram o Miura, o Urraco e outros, e depois Stanzani foi o responsável pelo Countach.
Com sua experiência da Lamborghini, Paolo Stanzani projetou um novo V-12 para o EB110. Com 3,5-litros nos doze cilindros, cada um com 81 mm de diâmetro e curso dos pistões de 56,6 mm, o motor já tinha um ar de Lamborghini. O ângulo entre as bancadas de 60° era igual ao motor do Miura, porém ele foi muito além.
Para conseguir a potência desejada, os cabeçotes especiais do EB110 foram projetados com cinco válvulas por cilindro e duplo comando de válvulas. Não bastasse tal quantidade de válvulas e comandos, nada menos que quatro turbocompressores IHI foram instalados no V-12, com resfriadores de ar (intercoolers) independentes.
A potência gerada era de 565 cv com 62,3 m·kgf de torque. Pela aplicação de quatro turbos e o motor ser relativamente pequeno, a reação era muito rápida aos comandos do acelerador, mas só acima de 4.500 rpm. Antes disso, o motor não rendia tão bem. Era mesmo um carro que para andar rápido, tinha que ser mais exigido, como um Lamborghini.
O sistema de injeção eletrônica multiponto foi desenvolvido pela Bugatti, exclusivamente para atender as necessidades de grande consumo do novo V-12. Até o lubrificante do motor era exclusivo, desenvolvido pela francesa Elf e similar ao usado na F-1, capaz de suportar as cargas do motor, além de ser biodegradável, mais amigável ao meio ambiente. Como se um V-12 de mais de 560 cv fosse amigável ao meio ambiente…
O motor era uma obra de arte da engenharia, mas a visão de Artioli não parava por ai. O EB110 deveria ir além, e recebeu um dos mais modernos sistemas de tração integral e câmbio de seis marchas. Assim como no Countach, o câmbio era montado na frente do motor, no centro do carro. Com um complexo sistema de três diferenciais, o EB110 tinha uma distribuição de torque inicial de 27% para o eixo dianteiro e 73% para o eixo traseiro, mantendo um comportamento similar ao de carros esporte com tração traseira. Com estes recursos, o EB110 arrancava da inércia até os 100 km/h em 3,5 segundos.
Até o surgimento do McLaren F1, o EB110 era o carro de produção mais rápido do mundo, com velocidade máxima de 335 km/h. A asa traseira com comando eletrônico ajudava a manter o Bugatti no chão, variando sua influência na aerodinâmica do carro conforme necessidade, recurso que depois foi aplicado em muitos carros, inclusive no Veyron. Os pneus Michelin Pilot SX MXX3, também franceses, foram projetados exclusivamente para o EB110 e sua velocidade elevada, nas medidas 245/40 para a dianteira e 325/30 na traseira, ambos aro 18”.
A suspensão independente nas quatro rodas era muito bem resolvida, nem firme demais, nem mole demais. Propiciava conforto e estabilidade para uma guiada esportiva. Curiosamente, em cada uma das rodas traseiras, dois conjuntos paralelos de amortecedor e mola eram usados.
Suas boas características dinâmicas renderam aparições em corridas do Mundial de Carros Esporte, com participações na 24 Horas de Le Mans (1994) e na 24 Horas de Daytona (1996), mas sem grandes feitos. As publicações da época elogiaram muito o comportamento do carro, mas o visual era controverso demais. Era difícil ver um comentário favorável sobre o design.
Como um verdadeiro Bugatti deveria ser, o interior do EB110 GT era refinado. Podemos dizer refinado para os padrões do começo dos anos 1990, na verdade. Como um verdadeiro superesportivo, praticidade não era seu forte, e espaço para bagagem era mínimo. Desta forma, até um jogo de malas especiais para o carro foi feito. O conforto era tido como muito bom, para os padrões de carro esporte deste porte, graças a uma boa calibração da suspensão.
A previsão de peso do carro era para ser algo em torno dos 1.200 kg, devido ao uso da fibra de carbono e do alumínio, mas com o sistema de tração integral e o V-12 com quatro turbocompressores, o peso final ficou em 1.620 kg. Isso poderia ter comprometido a dirigibilidade desejada, mas os pneus super-modernos e o avançado sistema de tração compensaram o peso.
Para atender as necessidades dos clientes, um pacote de garantia de três anos estava incluso na compra de um EB110. Isso incluía não só a mão de obra, mas também todas as peças necessárias para a manutenção dos carros, inclusive pneus, componentes de freio e amortecedores, peças consideradas de desgaste natural e que quase nunca são cobertas por garantia.
O carro tinha tudo para ser um sucesso. Levava o nome da Bugatti, era o mais rápido do mundo e um dos mais modernos também. Só que não foi bem assim. Com pouco mais de 130 unidades feitas, o EB110 não emplacou. Isso não quer dizer que tenha sido um fracasso, mesmo porque na época, nenhum supercarro vendeu muito mais que isso.
O EB110 teve ainda a versão SS, mais brava e mais leve, com trinta unidades feitas e diversas conversões da versão GT para a SS. Mesmo assim as vendas mantiveram-se baixas. A venda mais representativa talvez tenha sido de um SS amarelo para Michael Schumacher, então piloto da Benetton, que participou de uma avaliação comparativa para uma revista alemã entre o XJ220, Porsche 911 Turbo, Diablo VT, Ferrari F40 e EB110 GT, e se deliciou com o Bugatti.
Pouco antes do lançamento do carro, Paolo Stanzani e Romano Artioli se desentenderam e Paolo foi demitido. Não influenciou muito no projeto do carro, que já estava concluído em sua grande maioria, mas já eram indícios que as coisas não corriam nos conformes na empresa.
As finanças da Bugatti não iam muito bem, os investimentos foram gigantescos e Romano Artioli era um tanto quanto “bom com números e palavras”. A crise financeira veio forte em 1993, perdendo diversos investidores. Romano tentou de tudo para recuperar o dinheiro necessário para manter a fábrica, chegou até a comprar a Lotus (?!) em uma tentativa maluca de conseguir novos empréstimos e salvar sua marca. Não deu muito certo, e em alguns anos, a Bugatti estava falida e bloqueada pelo governo italiano.
Mas isto não foi o fim do EB110. Por quase dez anos depois da falência, o Bugatti ainda estava pelo mundo, de uma forma ou outra.
Dauer EB110 Sportwagen
Após muitos rolos e negociações, o que sobrou dos ativos da fábrica em Modena foram vendidos. Uma grande parte foi comprada pela empresa alemã Dauer Sportwagen, que ficou famosa pela sua investida com os Porsches 962 de Le Mans, tanto de pista como na versão de rua. Muitas peças e chassis incompletos foram comprados, e a Dauer terminou a montagem de alguns carros.
Os Dauer EB110 SS, como ficaram conhecidos, foram parcialmente reformulados. Jochen Dauer, responsável pelo carro e pela marca, simplificou a carroceria de alumínio, substituindo-a por uma mais leve de compósito de fibra de carbono. O carro agora pesava “apenas” 1.480 kg e era bem mais simples de se fabricar, com menos peças. Neste caso o know-how adquirido nos Dauer 962 foram fundamentais para criar a nova carroceria.
O V-12 quadriturbo também foi modificado. Para tentar sanar o problema de falta de vitalidade em baixas rotações, a Dauer remapeou o motor e ajustou os cabeçotes e a forma das turbinas trabalharem. A potência poderia chegar até a 710 cv nos modelos padrões. Agora o EB110 atingia 351 km/h e acelerava de zero a 100 km/h em 3,3 segundos. Mas dizem que o melhor de tudo é a quase que total eliminação do turbo lag. Há alguns exemplares que receberam o último upgrade desenvolvido pela Dauer para aumentar a potência do motor, chegando a quase 880 cv. Estima-se neste caso, que o EB110 poderia passar dos 370 km/h.
Desde os tempos do EB110 GT feito pela empresa de Artioli, o carro era fácil de dirigir, com comandos leves e que não eram cansativos, e Dauer deixou isto ainda melhor. Poucos carros completos foram feitos pela Dauer, e cada um agora vale uma fortuna. Um dos mais bonitos é justamente um dos primeiros carros concluídos, com a carroceria em fibra de carbono exposta, apenas com uma camada de verniz, acabamento que também seria visto no Veyron anos depois.
A Dauer também enfrentou problemas financeiros em 2008, e vendeu o estoque de peças para uma outra empresa alemã, que até onde se sabe, ainda pode oferecer peças de reposição. Mas o fim da Dauer não acabou com o EB110.
B Engineering Edonis
Com a falência da Bugatti, um grupo de ex-funcionários criou no final dos anos 1990 uma nova empresa chamada B Engineering (B era de Bugatti), perto de onde era a antiga fábrica de Campogalliano. Uma estrutura mais simples, não tão grandiosa, mas que seria capaz de produzir o Edonis.
Nomes como Jean-Marc Borel, que foi o vice-presidente da Bugatti Automobili SpA, o engenheiro Christian von Koenigsegg, que depois criaria sua própria empresa de supercarros que levaria seu nome, e Nicola Materazzi, agora o diretor técnico da empresa e que teve passagens pela Ferrari, Maserati e até na F-1, formaram o principal grupo de pessoas por atrás da B Engineering.
A ideia era usar o que sobrou do programa EB110 original, depois que a Dauer usou boa parte das peças, e criar um novo carro ainda mais espetacular que o Bugatti. Agora seria a vez Do Edonis.
A base era o chassi de compósito de fibra de carbono do EB110 SS, forte e conhecido o suficiente pelo time para estruturar o novo carro. Uma nova carroceria foi criada, muito mais ousada, mas com menos classe que o EB110 original. Estudos de aerodinâmica deixaram a carroceria adequada para o que eles esperavam de desempenho. Gandini havia sido convidado para redesenhar o carro, mas declinou a oferta por já não ter gostado do que fizeram no seu EB110 original. Giampaolo Benedini, o arquiteto, fez o desenho do Edonis.
O complicado sistema de tração integral foi removido, mantendo o carro apenas com tração traseira e seis marchas. O motor V-12 de Stanzani foi mantido, teve sua cilindrada total aumentada para 3,8-litros e os quatro turbocompressores foram substituídos por apenas dois, também da marca IHI, porém com maior capacidade. Agora o V-12 poderia chegar a 760 cv.
Em 2001, o primeiro carro foi mostrado ao público, com uma previsão de construção de apenas 21 unidades, em alusão ao século 21. Nos números apresentados pela fábrica, a velocidade máxima é de 365 km/h. Para isso, novos pneus Michelin especiais para suportar mais de 400 km/h foram feitos. E depois aproveitados no Bugatti Veyron, “por acaso”.
Missão cumprida
Romano Artioli conseguiu atingir seu objetivo. Reviveu uma grande marca ícone do automóvel mundial e fabricou um dos carros mais avançados de seu tempo, digno de seu nome. Ferruccio Lamborghini e Paolo Stanzani também conseguiram chegar em seus objetivos, criar um novo superesportivo capaz de marcar uma geração. E tudo isso ainda perdurou por anos.
Podemos dizer que estes três homens abriram caminho para a chegada do Veyron, concebido após a compra do nome Bugatti pela VW em 1998, e quer alguns gostem ou não, o carro que foi um marco na história do automóvel.
MB
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