Muito bem, meus caros leitores. Depois de um interregno (eu e minhas palavras tiradas do baú da memória e, claro, da modéstia) para falar sobre outro assunto, volto agora às minhas andanças pelos Bálcãs.
Hoje discorrerei (estou impossível, não?) sobre dirigir em Montenegro. Primeiro, uma rápida explicação sobre este lindo país, que fez parte da República Socialista da Iugoslávia de 1945 até 1991, de 1991 a 2003 fez parte da República Federal da Iugoslávia e entre 2003 e 2006 do Estado de Sérvia e Montenegro. Em junho de 2006, após um referendo no qual pouco mais de 55% da população (o mínimo exigido pela legislação) votou pela separação, o parlamento montenegrino declarou oficialmente a independência do novo país. Pouco depois, ela foi aceita e referendada pela ONU. Montenegro não faz parte da União Europeia, mas para minha felicidade e a de muitos turistas, o euro é a moeda utilizada já que o Banco Central local não emite divisas.
Literalmente, o nome do país quer dizer exatamente isso, “montanha negra” em vêneto. Em montenegrino, o nome é Crna Gora e, claro, tem a versão em cirílico. Montenegro fez parte de diversos impérios, incluindo o otomano, mas do qual manteve alguma independência e era um principado. Hoje é uma república parlamentarista, mas que ainda tem certa união formal com a Sérvia. Enfim, não me peçam para explicar. pois é uma longa, longa história e ficaria sem espaço para falar de autoentusiasmo.
Já quase encerrando meu momento “wikipédia”, digo ainda que 75% da população é ortodoxa, mas há ainda católicos apostólicos romanos e uma parte da população segue o Islã. A população é pequena, apenas 650.000 habitantes.
Chama a atenção a quantidade de carros não apenas de turistas, mas de locais. Toda casa tem pelo menos um veículo — não raro mais e as calçadas e ruas estão cheias de possantes estacionados. Não é para menos. Montenegro tem 202.000 carros de passeio registrados (chegou a 207.000, seu recorde em 2017). Ou seja, um carro de passeio para cada pouco mais de três habitantes.
Como boa parte do território é montanhoso, mas tem uma costa de 300 quilômetros de extensão e absolutamente deslumbrante, dirigir em Montenegro é um desafio e tanto.
Não diria que o trânsito é muito selvagem nem que há grande desrespeito às normas, mas também não é assim uma Alemanha em termos de disciplina. As maiores confusões, no entanto, foram logo na nossa chegada ao país. O avião que nos levou desde São Paulo pousou em Podgorica, a capital de Montenegro. Pequenininho, mas funcional, o terminal é internacional. Lá mesmo pegamos nosso carro alugado — como já comentei, um Škoda Octavia Estate, perua. Saímos diretamente rumo ao mosteiro (ortodoxo) de Ostrog, encravado na montanha, perto da fronteira com a Bósnia, nosso seguinte destino. De cara, na estrada M18, ficamos cerca de 20, talvez 30 minutos, parados, pois há muitas rotatórias e ninguém parece respeitar preferencial. Nas várias ao longo do caminho era comum carros fecharem o cruzamento em vários sentidos. Para minha surpresa, ninguém parecia se incomodar muito — nem buzinas, gritos, xingamentos, nada. Todos esperávamos pacientemente dentro dos carros. Bem, pacientemente talvez não seja a melhor definição, pois alguns saíam dirigindo pela contramão, outros manobravam no meio da estrada para fazer um retorno… Mas devo dizer que fora isso no resto do país não tivemos maiores problemas com a forma de dirigir.
As estradas variaram desde bastante boas, como o trecho da M18 saindo de Podgorica por alguns (poucos) quilômetros (fotos 4 e 5) ou a P11, que liga a fronteira com a Bósnia a Kotor. Ainda razoável, mas com algumas deficiências, foi a combinação M2.3 com M18 que nos levou do alto da montanha Lovcén, passando novamente por Podgorica rumo ao Lago Skadar e à Albânia. Mas era um trecho de somente 60 quilômetros que leva pelo menos 90 minutos para ser vencido – isso sem nenhuma parada. Que, claro, são muitas, pois a paisagem da montanha é realmente linda. Novamente, nada terrível, mas não esperem “autobahnen”.
O caminho desde Podgorica até o mosteiro de Ostrog é, no mínimo, emocionante. Sinuoso, estreito, praticamente sem placas indicativas de nada. Acabei parando para perguntar quando encontrei três mulheres fazendo um lanche perto de onde eu achava sairia o caminho para o mosteiro. Não faço a menor idéia de como consegui me fazer entender e muito menos entender que elas me pediram para dar carona para uma delas, que estava com uma perna imobilizada por um robot-foot, até o topo do mosteiro. Como timidez passa longe de mim, fomos os três conversando no carro. Consegui entender (acho) que a mulher era da Macedônia do Norte, expliquei que éramos do Brasil… Felizmente, ela realmente sabia o caminho e quando chegamos no topo da montanha, na porta do mosteiro, gentilmente me deu uma correntinha com um pingente de uma cruz ortodoxa. Eu comecei a carregar comigo fitinhas de Nossa Senhora do Bonfim para dar para pessoas que por algum motivo me fizeram alguma gentileza. Explico brevemente o que é e peço licença para amarrar no pulso. Fiz isso e minha agora amiga macedônia agradeceu efusivamente.
Adotei a prática das fitinhas por serem leves, baratas, ocupam ínfimo espaço e tem a cara do Brasil. Distribuí algumas nesta viagem para pessoas que tiveram alguma atitude especial. Tive a idéia de fazer isso quando estava em Dubai e depois de passar toda uma tarde com um grupo de turistas, uma australiana me deu um bonequinho de um coala com a bandeirinha nacional – daqueles tipo clipe, pequeno e que pode ser prendido na roupa. Guardo até hoje, assim como a lembrança do gesto. Achei a atitude simpática e comecei a procurar algo semelhante. Com as fitinhas sou extremamente respeitosa, pois acho que religião (ou sua ausência) é algo muito particular e íntimo. Mas sempre digo que proteção de santo, virgem ou divindade é bem-vinda, não? Se algum leitor tiver alguma outra sugestão de objeto que possa levar e cumpra essa finalidade, aceito. Mas acho simpático ser algum tipo de embaixadora do Brasil.
Voltemos, então, às rodovias. Houve algumas estradas francamente assustadoras, como foi o caso do nosso caminho entre a fronteira da Bósnia com Kotor. Mas essa foi uma pegadinha do GPS. Vínhamos de boa pela P11, uma ótima estrada, embora de pista simples e mão dupla e, de repente, a geringonça nos manda virar a esquerda em algo que sequer parecia uma estrada. Caminho de terra, bem rústico. Mas, vá lá, o GPS mandou e eu não tinha no meu mapa pré-impresso esse detalhe de onde sair da P11. Como GPS e Gúgol Mépis são coisas meio messiânicas, tipo você acredita ou não, viramos e saímos da estrada. Nem diria que era uma estrada. Mais parecia uma picada e somente na volta para o Brasil é que descobri, fuçando mapas mil, o que aconteceu. Pegamos a Risan Downhill Road, um caminho que como diz o Gúgol Mépis, é para off–road. Sei lá quantas curvas em cotovelo descendo a montanha. No máximo uns 4 metros de largura, pedras no meio do caminho que haviam rolado montanha abaixo e, do outro lado, o abismo. O problema é que já era escuro, não encontramos absolutamente nada nem ninguém no caminho todo e meu medo era encontrar uma pedra tão grande que nos obrigasse a voltar até o asfalto — e boa parte teria de ser de marcha à ré, pois sequer havia lugar para manobrar. E, pior ainda, nem estávamos dirigindo um carro adequado, embora a Škoda tenha sido extremamente valente e aguentado tudo. Andávamos a não mais do que 20 km/h. Chegamos a Kotor já muito tarde, mas sãos e salvos, prova de que nossa condição cardíaca assim como a habilidade do meu marido ao volante, são excelentes. Para piorar, numa das curvas bem no estilo cotovelo demos de cara com uns burros pastando no meio da estrada. Coisa apenas para quem é muito, muito forte do coração.
Fora essa estrada, que deve ser muito interessante de dia e num jipe, andamos em outra maravilhosa. Meu marido e eu a escolhemos como a nossa favorita para exercer nosso autoentusiasmo: a estrada P1, especificamente o trecho chamado Serpentina de Lovcén, no parque nacional de mesmo nome (foto acima). Na verdade, nossa favorita não apenas desta viagem, mas de várias somadas. Para mim, foi comparável à linda “cuesta del Lipán”, no noroeste argentino — outro caminho lindo de montanha, cheio de curvas desafiadoras, cotovelos e ainda de brinde, paisagens deslumbrantes. De serpentina, propriamente dita, são apenas uns 8 quilômetros com pelo menos 16 ou 26 cotovelos bem pronunciados. Confesso que não contei e por isso não sei exatamente com qual número ficar, pois cada pessoa ou arquivo dá uma quantidade de curvas. Mas sem dúvida são muitas e muito seguidas. Um desafio e tanto para quem gosta de dirigir. No total a estrada tem pouco mais de 20 quilômetros com lindíssimas vistas. Não conheço (ainda) o Passo Stelvio, mas quem já fez os dois diz que Lovcén é mais desafiador. As condições do asfalto não são das melhores, mas com alguns recuos ao longo do caminho não é difícil dar e receber passagem nesta estrada que tem bastante trânsito — nesta época do ano menos, mas ainda assim foi dos poucos lugares longe das capitais em que encontramos vários carros num e outro sentido (fotos abaixo)
A serpentina ainda permite vistas dos fiordes montenegrinos. A montanha de Lovcén é um lugar sagrado para os montenegrinos — algo semelhante como o monte Ararat para os armênios. No pico de Lovcén está o mausoléu de Njegos, onde está enterrado Petar II Petrovic Njegos, importante poeta, soberano e príncipe-bispo de Montenegro. Até hoje é em Lovcén onde está a residência oficial de férias do mandatário do país. Diz a lenda que desde o alto da montanha em dias claros se enxerga não apenas todo o território montenegrino (!) mas também a Itália. Nós não enxergamos tanto assim, embora o dia estivesse muito limpo, mas paramos inúmeras vezes para curtir as vistas e, claro, a japonesa aqui tirou um monte de fotos
Engraçado foi numa curva que encontramos algo que eu achei seria uma homenagem a mim de algum admirador secreto (foto abertura). Para minha felicidade, Nora é um nome próprio não tão raro em muitos países do mundo – e isso inclui os Bálcãs. Não tive nenhuma dificuldade em me identificar e ser entendida (bem, pelo menos quanto a meu nome) em toda a viagem e obviamente não pude resistir à foto em plena serpentina. Mas não faço a menor idéia do que estava escrito naquela mureta — e aviso aos mais românticos: não é a caligrafia do meu marido, embora o montenegrino dele seja fluente (até parece!).
Os limites de velocidade nas estradas são extremamente razoáveis para as condições das vias. Nas estradas mais comuns, de pista simples ou dupla, sem acostamento, mão dupla, é de 80 km/h. O asfalto não era da qualidade (?) do da cidade de São Paulo mas também não são exatamente um tapete. E as estradas, como disse, são simples. Portanto, 80 km/h parecem muito adequados. Em áreas com obras na via ou mesmo quando ela está em construção ele pode cair até os 30 km/h. Por isso os tempos de deslocamento são consideravelmente altos. Vimos bastante policiamento nas estradas, mas sempre ostensivo. Assim como na Bósnia, não nos deparamos com guardas escondidos. Ao contrário, vimos comandos e carros ao longo da estrada, com giroflex e luzes ligadas. Nada de pegadinhas, portanto.
Basta a CNH do seu próprio país, desde que esteja em caracteres latinos. Não há necessidade de carteira internacional e das vezes em que fomos parados nos cinco países da viagem foi tranquilo — com apenas isso e a documentação do carro — incluindo um seguro “verde” que é obrigatório nos Bálcãs, providenciado pela locadora.
Aqui o combustível era um pouco mais caro do que nos outros países dos Bálcãs: por volta de 1,30 euro o litro (foto 10) e os postos que encontramos eram todos com frentista.
O uso de luzes durante o dia é obrigatório mas com a pouca luz natural nesta época do ano, parecia óbvio. Isso sem mencionar que, como já disse, as estradas são em sua maioria de pista simples e mão dupla. Ou seja, faz sentido a obrigatoriedade das luzes.
Foi comum cruzarmos com motoristas que piscavam as luzes para indicar que haveria policiamento à frente, mas como não sabíamos se era regular ou não, não fizemos isso com quem vinha no sentido contrário. Na maioria dos países fazer isso é ilegal. Desculpem, motoristas montenegrinos e outros, mas na dúvida, entre a camaradagem e a legalidade, vou pela legalidade. Para dirigir no país, o nível de álcool no sangue não pode ultrapassar 0,3 g/L, mas se o motorista tiver 24 anos ou menos ou se estiver nos seus primeiros 12 meses de carteira de motorista, a tolerância cai para 0,1 g/L. E, como deveria ser óbvio, usar o celular sem viva-voz é terminantemente proibido e sujeito a multa. Mas não sei quem seria louco de falar no celular com estradas estreitas e sem acostamento. Se é para se distrair, sugiro cuidado com as paisagens — essas sim, de nos fazer viajar na imaginação de tão lindas. A costa montenegrina entre Kotor e Budva, ou um pouco além, é absolutamente maravilhosa.
No geral, dirigir em Montenegro não é difícil — mas sugiro checar as opções dadas pelo GPS antes de se jogar numa picada como nós fizemos. Ou então estar atrás do volante de um veículo 4×4. Mas não dá para não dirigir defensivamente sempre.
Depois daquelas vistas incríveis em Lovcén, o caminho desde o final da serpentina foi bem mais tranquilo. A estrada M18 era muito boa e passamos novamente por Podgorica rumo a outro ponto alto da viagem — para nós, pelo menos: a visita a uma vinícola montenegrina, uma das maiores da Europa. Como apreciadores de vinho e totalmente desconhecedores de vinhos montenegrinos, valeu muito a pena. Excelentes explicações, maravilhosa degustação, tudo muito profissional e realmente de ótima qualidade. Fiquei fã da uva vranac. De lá, fomos para a fronteira com a Albânia. Mas essa parte eu conto na semana que vem.
Mudando de assunto: depois do fim da temporada de Fórmula 1 agora acabou a temporada da Stock Car. Daniel Serra manteve uma regularidade incrível o ano inteiro, herdou o talento do pai e agora ambos são tricampeões. Gosto de ver uma categoria tão brasileira, competitiva e com tantos pilotos e patrocinadores, mas até hoje sofro com tantas encostadas de um carro no outro. Sei que é normal, assim como na antiga Indy, mas não gosto de ver nenhum possante ser amassado. Me julguem, rsrsrs.
NG