O brasileiro médio não liga para segurança quando o assunto é carro. Claro que ele diz que isso é muito importante, que valoriza o bem-estar da sua família, blábláblá. Só que a realidade é diferente: ele compra carrão do ano com várias bolsas infláveis (que já vêm de fábrica, portanto sem opção de escolha), mas deixa o filho pequeno solto no banco da frente, ignora o uso do cinto na parte de trás e acha que limite de velocidade só se aplica aos outros.
Digo isso como jornalista especializado que, por mais de 25 anos, acompanhou de perto o gosto do público que gosta de ler e comprar carros. Com base nessa experiência, escolhi três exemplos de como o brasileiro largou tudo só para ter o design tão desejado, três em que a segurança ficou em segundo plano e um exemplo que combina as duas situações.
Onix: nota zero sim, e daí?
O que pode acontecer se um carro líder absoluto de vendas é reprovado num teste de colisão? No caso do Chevrolet Onix, nada (foto de abertura¨e o vídeo acima). Em maio de 2017, o Latin NCAP, instituto que avalia a segurança dos veículos da América Latina, deu zero estrela (de um total de cinco) para o hatch, no quesito de proteção para adultos. Foi a pior avaliação de um compacto segundo os critérios da época. O assunto foi amplamente noticiado por aqui, a GM divulgou que cumpria todos as normais dos mercados locais e a vida seguiu assim mesmo.
Na verdade, parece que até ajudou, já que suas vendas não pararam de crescer. Se o Onix emplacou 12.689 unidades em abril, saltou para 15.007 carros em maio, recorde no ano. Essa marca cresceria ainda mais: 17.236 em setembro e 18.611 em novembro.
Hilux: derrapada no teste do alce
Em 2007, a Toyota Hilux levou bomba no teste do alce realizado por uma revista sueca. Esse teste avalia a estabilidade de um veículo durante um desvio abrupto da trajetória. A coisa foi tão grave que a picape chegou a tirar duas rodas do chão. Gerou grande repercussão mundo afora, mas por aqui seus donos não ligaram muito.
Nove anos depois, a mesma revista repetiu o teste com uma nova Hilux e outros seis concorrentes. Mais uma vez a picape da Toyota levantou as duas rodas. E foi a única fazer isso. Novamente virou assunto no mundo inteiro. No Brasil, deu origem a algumas piadas, mas não fez diferença para quem sonhava em ter uma Hilux. Até hoje ela é líder de vendas do segmento, apesar de ser umas das mais caras. Em março, ela somou 2.971 unidades, muito acima vice-colocada, a Chevrolet S10, com 1.582 unidades.
Novo HB20: o estilo que afundou as vendas
Não há melhor prova da importância do design para o brasileiro do que o novo Hyundai HB20. Assim que chegou ao mercado, em setembro do ano passado, houve enxurrada de críticas para o desenho. Até o vice-presidente global da marca e responsável pelo estilo do carro, Simon Loasby, não negou que o desenho era polêmico. “O desafio do designer é romper com padrões. Se 50% das pessoas odiarem, mas 50% amarem, então estamos no caminho certo”, disse na apresentação oficial aos jornalistas no Brasil.
Para um modelo que sempre teve o design entre seus méritos, isso era um problema. O hatch, que até então costumava ser o vice-líder do ranking de vendas, caiu para o sétimo lugar em dezembro, o pior resultado em mais de cinco anos. Foram 7.697 unidades, contra uma média de 8.830 no primeiro semestre, uma queda de 12%. Não parece muito, mas lembre-se de que o mercado já sabia que o HB20 iria mudar, portanto é comum deixar de comprar a versão que sairá de linha para esperar a nova. E as vendas caíram ainda mais em janeiro: 7.042 unidades.
Renegade: forte de desenho, fraco de motor
Ninguém discute que o Jeep Renegade tem como principal atributo o design: clássico, icônico e cheio de personalidade. Porém, também é consenso entre seus proprietários que a motorização 1,8 flex (a mais vendida) tem desempenho fraco e consumo elevado. Por isso, virou alvo de várias piadas na internet. Como aquela que diz que se o dono abastecê-lo de motor ligado, a bomba de combustível nunca vai conseguir encher o tanque…
Brincadeiras à parte, um teste recente da revista Quatro Rodas dá uma ideia do quão limitado é esse motor. Na reportagem que reuniu 12 suves compactos, o Renegade foi o pior de todos nos testes de aceleração de 0 a 100 km/h, de consumo urbano e de consumo rodoviário. Influenciado também pelo preço alto e porta-malas abaixo da média, ele ficou na última posição como opção de compra. É algo semelhante ao que se viu nos comparativos de outras revistas e sites especializados.
Nada disso, porém, tem atrapalhado a vida do Renegade. Desde que foi lançado, em 2015, ele não sai das primeiras posições do ranking da categoria. Já estamos em 2020 e o pequeno Jeep voltou a ser líder do segmento, segundo números de março, em que bateu o recém-chegado VW T-Cross.
Seu design é tão bem resolvido que foi um dos poucos carros que eu já vi que passou pela reestilização de meio de ciclo de vida (em 2019) e praticamente não sofreu mudanças no design. Afinal, não se mexe em time que está ganhando.
Veloster: comprando só pela foto
Outro caso de desenho que fez as pessoas perderem a cabeça é o Hyundai Veloster, em 2011. Instigados pelas linhas ousadas e pelo diferenciador das três portas (duas no lado direito), muitos compraram o carro sem ao menos fazer um test drive. O que é estranho considerando que era um modelo com pretensões esportivas. O furor consumista era tamanho que havia filas de espera e muitos assinaram o cheque depois de apenas ver as fotos do folheto, pois ainda não havia o veículo nas concessionárias.
Se você se perguntou se o Veloster não é aquele que virou caso de Justiça, acertou. A marca divulgava no Brasil que seu motor tinha 140 cv, era de injeção direta (GDI), mas na verdade era uma versão de 128 cv, de injeção no duto (MPFI). Além disso, ele não trazia alguns equipamentos prometidos nos anúncios. Os proprietários moveram ações e ao menos dois deles ganharam a causa.
Renault Clio: a bolsa inflável que ninguém queria
Quando bolsa inflável e freios ABS ainda não eram obrigatórios no Brasil (o que só ocorreu em janeiro de 2014), a Renault resolveu usar a preocupação com a segurança como mote publicitário. O ano era 1999 e campanha de lançamento do Clio fazia questão de dizer que era o único do segmento com bolsas infláveis de série. “Um acessório você pode comprar na loja, uma bolsa inflável só pode sair de fábrica”, dizia com orgulho o presidente da Renault. Mas a estratégia de apostar na vida não deu certo. Pesquisas do fabricante mostravam que o equipamento não era argumento suficiente para seduzir o comprador. A marca, então, seguiu o exemplo dos seus concorrentes e alguns anos depois as bolsas infláveis deixaram de ser item de série.
Outra prova de que esse tipo de equipamento não enche os olhos dos brasileiros foi quando a Fiat passou oferecer em seus carros o kit opcional HSD (High Safety Drive) a um preço bem menor que a média do mercado. Por R$ 1.750, valores de 2012, o consumidor podia acrescentar as duas bolsas infláveis e os freios ABS. Não deu certo. No final das contas, o comprador preferia levar um conjunto de rodas de liga de alumínio, que custavam quase o mesmo.
Volvo: agradando a gregos e troianos
Há décadas a Volvo é reconhecida como referência em segurança, seja no Brasil ou no mundo. Mas parece que isso nunca foi suficiente, já que suas vendas sempre foram tímidas no mercado nacional.
Nos últimos anos, a fabricante sueca passou a investir no design como nunca se viu antes. Chegou até a ser eleita a marca com a melhor linguagem visual do mundo no prêmio Car Design Award de 2016.
A partir daí, o cenário começou a mudar no Brasil. Em 2018, a Volvo viu suas vendas de automóveis crescerem 96% em apenas um ano, contra uma média mundial da marca de 12,4%. Foi seu recorde histórico, com 6.836 carros, suficiente para ultrapassar a Jaguar Land Rover. Em 2019, outro recorde: um aumento de mais 15,7%, com 7.910 unidades. Resumo da ópera: para o brasileiro ter um carro bonito é mais importante do que ter um carro seguro.
ZC
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