Deu a louca no mercado depois da pandemia. Automóveis de luxo e suves de alto valor conquistaram espaço nas vendas, enquanto os carros de entrada baratinhos despencaram. Nem parece que vivemos uma das maiores crises da história. É uma situação que eu nunca vi em mais de 25 anos acompanhando a indústria automobilística.
Afinal, alguém imaginaria que uma marca como a BMW venderia mais que Citroën, Mitsubishi, Caoa Chery, Peugeot ou Kia? Tal anomalia mercadológica aconteceu em junho, quando o fabricante alemão registrou 1.269 vendas. Só o Série 3 (foto de abertura) foi responsável por 579 unidades. É quase o mesmo que o Nissan Versa (596) e mais que Honda City (475) e Toyota Etios Sedã (329), que são até 75% mais baratos que o BMW.
Carros de luxo em alta
Alguns vão argumentar que é apenas mérito da BMW, que tem feito um excelente trabalho em modernização de imagem, reposicionamento de mercado e diversificação da linha de produto. Essa é só parte da verdade.
A verdade completa é que outras marcas premium têm mostrado fôlego de fazer inveja às tradicionais líderes de vendas. Em maio, a Porsche (com preços a partir de R$ 339.000) bateu seu recorde histórico de vendas para esse mês. No primeiro semestre, a McLaren (cujos carros começam em R$ 1,8 milhão) registrou o mesmo número do primeiro semestre de 2019. E quem acreditaria que o novo Audi R8, lançado em maio, esgotaria depois de semana, apesar da tabela de R$ 1,24 milhão?
Mesmo os fabricantes premium que não cresceram na pandemia comemoram uma redução menor do que a média. A Volvo prevê redução nas vendas de 12,5% até o fim do ano, frente a uma estimativa de 30% a 35% para o mercado geral.
Picapes e suves bem no ranking
Não pense que são só os modelos de luxo ou superesportivos que estão se dando bem na crise. Suves, picapes e sedãs acima de R$ 80.000 estão ocupando posições no ranking de vendas que antes eram exclusivas dos espartanos hatches de entrada.
Basta conferir os números de abril, mês que sofreu o maior impacto da paralisação do mercado: Toyota Hilux em 5º lugar, Fiat Toro em 6º, Toyota Corolla em 11º e Chevrolet S10 em 14º. No começo do ano, a normalidade era Toro em 10º, Corolla em 16º, Hilux em 20º e S10 em 28º.
Em julho, a situação ficou ainda mais inusitada. O VW T-Cross bateu dois recordes: tornou-se o primeiro suve da história a liderar as vendas e o primeiro a quebrar a barreira das 10.000 unidades. Também apresentaram bom desempenho o Chevrolet Tracker (4º lugar), Jeep Compass (7º lugar, vendendo mais do que antes da crise) e Renegade (9º). Todos ficaram à frente de VW Gol, Renault Kwid e Ford Ka. Quem diria!
Carros de entrada em queda
Antes de explicar a razão dessa reviravolta, é importante perceber que não foram só os modelos caros que passaram à frente do ranking em tempos de pandemia. Ao mesmo tempo, despencaram os carros de entrada, que são os veículos mais baratos do país. Veja uma comparação entre fevereiro (pré-crise) e julho:
Onix/Joy (a partir de R$ 55.200): caiu de 1º para 2º e perdeu 45% das vendas
Ka (R$ 49.900): caiu de 4º para 12º e perdeu 48%
Gol (R$ 52.000): caiu de 5º para 10º e perdeu 25,5%
Kwid (R$ 37.000): caiu de 7º para 11º e perdeu 26,5%
A explicação do fenômeno
Não é difícil entender por que assistimos a essa dança das cadeiras. Com uma economia de juros baixos (o menor nível da história) e uma volatilidade na Bolsa de Valores, os compradores endinheirados ficaram mais à vontade para realizar um capricho e investir em automóveis de luxo e superesportivos.
Eles aproveitaram que esses modelos foram importados com o dólar mais barato e apostaram no aumento da moeda americana ao longo do ano. Com sorte, em 2021 esses usados custarão o mesmo de quando eram novos.
No segmento de entrada, a justificativa é mais simples. O público tradicional que compra os zero-km do segmento de entrada perdeu o emprego, teve seus rendimentos reduzidos ou se endividou durante a crise. Não é o cenário em que alguém pode se dar ao luxo de pensar em carro novo.
Muito analistas estimam que as vendas dos modelos de entrada devem se recuperar no segundo semestre. Desculpem, mas tudo aponta para o sentido oposto, tanto a tendência histórica quanto o cenário pós-Covid.
Primeiro vamos dar uma olhada no gráfico acima. Percebe-se claramente que o mercado brasileiro já vinha tirando o pé dos veículos de entrada antes da atual crise. Entre 2016 e 2019, a participação do hatches de entrada entre os automóveis caiu de 20,7% para 12,1%. Do outro lado, ganharam espaço os hatches pequenos (classificação da Fenabrave) e os suves, que são mais caros.
Já na conjuntura atual, além da demora na recuperação dos empregos e da renda para os níveis pré-pandemia, a falta de confiança na retomada da economia deixará o consumidor mais conservador, especialmente quem está na base da pirâmide.
Vamos lembrar que 60% das vendas de novos são financiadas. Assim, quem será que vai correr o risco de parcelar um carro neste ambiente de incertezas? Para piorar, caiu o nível de aprovação dos financiamentos: antes da pandemia, 7 em cada 10 pedidos eram aprovados; agora são apenas 5,5.
Usados mais baratos
Eu sei que alguns especialistas contam com o aumento da demanda motivada pelo medo do contágio. Quem usava transporte coletivo ou motoristas de aplicativos agora pensar em comprar um automóvel próprio. Concordo, mas será uma parcela pequena do público e, ainda assim, a maioria vai preferir investir em um veículo usado.
Afinal, o que vimos na pandemia foi a queda de preço de boa parte dos usados, empurrados pelas lojas multimarcas que precisava esvaziar seus estoques para garantir fluxo de caixa quando o comércio estava parado. Na outra ponta, os zero-km ficaram mais caros, para recompor prejuízo com o fechamento das fábricas e por causa do aumento do dólar nos componentes importados.
Por fim, uma segunda razão vai dificultar a vida dos veículos mais baratos. Outra fonte da venda desse segmento são os frotistas e locadoras, que representavam 42% do segmento de automóveis. Em alguns modelos, a participação chega a 66% das vendas, como no caso do Gol.
Com a pandemia, motoristas de aplicativo que alugavam carro apenas para esse propósito tiveram que devolver os veículos às locadoras, assim como pequenos negócios fecharam as portas ou reduziram suas frotas.
Pelo jeito, a vida do segmento de entrada nunca foi tão difícil.
ZC
Zeca Chaves publica a coluna “Panorama” no AE quinzenalmente aos sábados às 10h00.
A coluna “Panorama” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
E você, o que acha? Faça um comentário ou dê uma sugestão para as próximas colunas no espaço em seguida à matéria, que terei o maior prazer em responder