Como meus leitores já sabem, gosto de uma boa discussão, mas sempre com dados que embasem meus argumentos. Se é para dizer “é que eu gosto”, ok, mas aí não vamos defender o indefensável. Nem discutir fatos, pois estaremos no campo das preferências, do subjetivo. Vamos falar de gostos, manias, etc.
Alguém me dizer que acha a cor azul bonita, sem problemas. Mas não dá para dizer que azul é uma cor quente, pois isso é física e quimicamente impossível.
Nos últimos tempos tenho visto inúmeras discussões desse tipo. As pessoas confundem convicções e preferências com fatos — e sim, continuo na minha campanha pelo uso correto do idioma. Nada de filme “baseado em fatos reais”. Se é fato, é real. Se não, é versão ou narrativa, para usar um termo da moda. Basta dizer “baseado em fatos”. Ponto.
Uma das teorias que tenho visto é de que tem caído a emissão de Carteira Nacional de Habilitação (CNH), que menos gente usa carro e um arrazoado de motivos. O mais batido é “eu vejo entre meus amigos”, “na minha família…”. Vamos primeiro aos fatos.
Desde 2014 até 2018, a emissão da primeira carteira de habilitação tem apresentado seguidas quedas. Em 2014, exatas 2.995.294 pessoas receberam sua primeira habilitação em todo o Brasil. Em 2018, esse número caiu para 2.086.820 — ou seja, quase 30% menos.
Claro que não dá para cravar que todas as primeiras CNHs sejam de jovens, mas é lícito supor que quase todas sejam. É exceção e não regra alguém tirar a primeira habilitação aos 35 anos de idade. Acontece, mas é a minoria da minoria.
E é aí que começam as panes mentais com os dados. Na última década, isto é, entre 2011 e 2020, o número total de CNHs válidas subiu 38%, passando de 53,9 milhões naquele ano para 74,3 milhões neste ano. Isso, é claro, foi um aumento bem acima do crescimento da população, que subiu 10% no mesmo período
Olhando com uma lupa para estes dados, entre 2011 e 2014 o número de emissões de CNH como um todo, isto é, para todas as faixas de idade, se expandiu 5% ao ano, todos os anos. A partir de 2015, com a recessão, houve uma desaceleração nesses volumes também no todo e não apenas em determinado segmento.
No entanto, entre 2018 e 2019 o crescimento foi de 2,9% ajudado, em boa parte, pelos vários incentivos dados à indústria automobilística, como a redução de IPI, que facilitaram a compra de carros. A questão é que nem todas as faixas etárias procuraram CNHs na mesma proporção. Nesta última década, a proporção de condutores com mais de 61 anos saltou de 11% para 17% no total de motoristas, mas caiu de 29% para 21% a parcela dos motoristas com até 30 anos. Homens ainda são maioria, mas o total de mulheres habilitadas já cresceu 3,4 pontos porcentuais na última década
E aqui vai um prato cheio para as feministas: a participação de mulheres cresceu na última década provavelmente porque as mulheres têm uma dinâmica familiar diferente — geralmente têm mais responsabilidades na manutenção da vida familiar, pois além dos deslocamentos trabalho-casa tem também as idas ao mercado, buscar filhos na escola… e aí o carro é mais necessário
Sempre achei que a dinâmica familiar é um acerto interno. Nós é que devemos combinar com nossos cônjuges e filhos quem vai fazer o quê. Não acredito que haja tarefas como ir ao supermercado ou lavar louça que sejam femininas ou masculinas, da mesma forma como em casa eu levo o carro para a revisão, ao posto de combustível e cuido para que os pneus estejam calibrados. Na minha casa tudo depende da disponibilidade de cada um. Em tempos pré-pandemia, quando meu marido viajava muito, era eu quem fazia muitas dessas coisas. Agora com ele mais tempo em casa, depende de quem pode fazer. Exceto, é claro, manutenção elétrica de qualquer coisa que, como meus leitores mais fiéis sabem, é algo que eu não faço nem sob tortura, até porque mexer em fio elétrico para mim já seria a própria tortura. Não faço nada além de trocar uma lâmpada. Não mexo nem na campainha… Mas, com eu disse, para mim essas coisas são acordos internos. E a cara-metade é engenheiro eletrônico/eletricista e adora essas coisas.
Aí fui pesquisar o motivo de ter aumentado a quantidade de CNHs entre a população mais velha e me deparei com alguns dados muito interessantes. Segundo o Instituto Ipsos, com dados da CNH de 2013 a 2019, as hipóteses para isto incluem: aumento na longevidade dos idosos e presença de tecnologias assistenciais como câmera de ré, sensor de estacionamento e câmbio automático, todos itens cada vez mais comuns e que facilitam que os mais velhos dirijam ou continuem dirigindo. Para mim, faz sentido e numa pesquisa de campo e granja do DataNora com amigos sem absolutamente nenhuma metodologia nem base científica, constatei que sim, é um comentário comum entre os mais idosos. Dirigir ficou mais fácil, pois a tecnologia acaba suprindo algumas deficiências e mesmo inseguranças que vêm com a idade.
Já no caso do menor interesse dos jovens por licença para dirigir, o resultado é meio triste. Segundo o próprio Instituto Ipsos, muitos deles acham o processo de tirar habilitação algo “chato”. A maioria reclama dos perrengues que passa no transporte coletivo, mas não quer se dar ao trabalho de enfrentar o processo de tirar a CNH.
As prioridades dos jovens mudaram desde 2015, segundo uma reportagem que li na Folha de S. Paulo sobre o interesse dos jovens em obter a CNH. O volume total de emissões passou dos 3 milhões em 2014 e caiu para 2,1 milhões em 2018, segundo levantamento da empresa de pesquisa Ipsos a partir de dados fornecidos pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Segundo o diretor de pesquisa automotiva da Ipsos, “muita gente pensa no custo-benefício de ter um carro e, por tabela, de tirar a carteira de motorista”. A pesquisa aponta que houve queda de 20,6% na quantidade anual de carteiras emitidas de 2014 para 2017 para jovens entre 18 e 21 anos. Nordeste e Sudeste foram as regiões em que o declínio se mostrou mais acentuado.
A Junior Mackenzie Consultoria também fez uma pesquisa em 2018 que indicou que 55,4% dos jovens brasileiros entre 18 e 22 anos simplesmente não tiraram a CNH. O estudo foi realizado em novembro e dezembro de 2017 com 1.537 estudantes, em nove regiões metropolitanas do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Goiânia e Brasília. O custo é a principal justificativa para os que não tiraram a CHN, com 58%, mas também 9% dos entrevistados no estudo das capitais assumiram a falta de interesse em dirigir.
E aqui vem um dos meus já famosos parênteses. Assisti, assim como meia humanidade, ao docu-drama “O dilema das redes” (The social dilema), que destrincha os bastidores das mídias sociais. Basicamente, são ex-executivos e engenheiros desses meios que contam os truques para nos fazer dependentes dessas mídias, nos empurram propaganda e nos manipulam. Para mim, que já trabalhei em empresa de modelos analíticos e algoritmos durante vários anos e sempre me interessei pelo assunto, nenhuma novidade. Mas para quem não sabe como funcionam essas redes é um belo documentário, embora não deixe de ser irônico ver aqueles que participaram da construção do circo malharem os palhaços. Há várias coisas interessantes. Uma das frases ditas é que não há nada grátis. “Quando você não paga pelo produto é porque você é o produto”. Nada mais verdadeiro do que isso. Como meu marido conseguiu dormir durante o filme dois dias seguidos (culpa do trabalho, não do filme) e somente o assistiu inteiro no terceiro, eu bati o recorde de ver o documentário três dias seguidos — parte do meu TOC me impede de desistir de ver um filme a não ser que ele seja realmente mais do que insuportável. Se não, vou até o fim, como foi o caso desta vez e acabei vendo três dias seguidos o mesmo filme. OK, ele é interessante e não reclamo.
A outra frase que me marcou foi sobre a geração Z, aquela que nasceu a partir da segunda metade de 1990. No filme, o depoente diz que é uma geração mimada, que não quer (ou não sabe) correr riscos mesmo que os menores. Basicamente, são medrosos. Eu complemento o raciocínio: obter CNH significa passar por um exame em que se pode fracassar — e a maior parte desta geração não sabe lidar com isso, não tolera o fracasso. Sair atrás de um volante é uma responsabilidade, pois há vidas em risco, situações que devem ser administradas, toleradas e previstas, e boa parte desta geração simplesmente não quer fazer nada disso por puro medo de assumir riscos e responsabilidades. Preferem a bolha em que estão e onde alguém (geralmente os pais) resolvem os conflitos por eles. Por isso usam alegremente Ubers e outros tipos de transporte que não necessariamente os de massas. Não tem nada a ver com consciência ambiental (como alguns falsamente alegam) nem com empatia com o próximo ou com agir como os mais pobres financeiramente ou mesmo se misturar a eles. É apenas medo.
E isto tem pouco a ver com poder de compra. Tanto que segundo os dados do Denatran, há no Brasil 106 milhões de veículos automotores, ou 1,4 para cada motorista habilitado. Piauí e Maranhão são os que tem mais automóveis por habitante. Distrito Federal o que tem menos, apesar de ter sido planejada para carros (suprema ironia). Acre, Amapá e São Paulo, vêm na sequência, com um número menor de automóveis por condutor. E aqui faço minha costumeira ressalva, de que estes números são meio ficcionais, pois no Brasil não se dá baixa nos veículos – mas neste caso, a distorção deveria ser a mesma para todos os Estados. Logo, o ranking deve ser esse mesmo.
No caso dos jovens que tiram menos CNHs, tem também a responsabilidade de ter um veículo hoje em dia, principalmente na questão financeira, que significa, novamente, assumir responsabilidades. São custos com seguro, revisão e combustível, uma série de encargos, mas também de outro tipo: levar o carro ao posto para abastecer e calibrar pneus, fazer as revisões, as trocas de óleo. Em fim, responsabilidades, algo do qual a maior parte desta geração foge sempre que pode.
É a “geração canguru”, aquela que demora mais a se emancipar dos pais (alguns nunca o fazem, na minha opinião pessoal), aliada a aplicativos como Uber, usados a rodo quando não se quer ficar espremido no transporte coletivo ou demorar horas para chegar ou voltar da balada. Mas, claro, isso só se aplica a uma parcela mais abonada da população, pois para os jovens da periferia o carro potencializa a liberdade e a autonomia, já que permite que experimentem a cidade, uma vez que onde moram a infraestrutura de transportes é muito ruim. Pronto, falei. Agora que venham as pedradas.
Mudando de assunto: numa decisão colegiada aqui em casa optamos por expandir nossa coleção de carrinhos de Fórmula 1 para alguns modelos também na escala 1:43. Continuaremos comprando aqueles com o piloto para manter alguma uniformidade, mas para ter vários a mais só mesmo diminuindo a escala. Agora preciso bolar uma estante nova para as futuras aquisições. Procurando outras miniaturas, me deparei com uma que achei de péssimo gosto e por isso nem vou postar a foto. Digitei “Gilles Villeneuve miniatures F1” e uma das alternativas era uma miniatura da metade (!) do carro dele, no dia do acidente que lhe custou a vida, em 1982 em Zolder. Eu que nem revejo acidente e em hipótese nenhuma os fatais, gostaria de “desver” isso e conseguir tirar essa imagem da minha lembrança. Não entendo como alguém pode fazer algo assim e menos ainda outro comprar.
NG