Em momento de pura e singela inspiração Milton Nascimento escreveu “Encontros e despedidas”, canção que explora o cotidiano de uma estação de trem, algo bem apropriado para uma categoria como a F-1 que vive se exibindo mundo afora. O próximo fim de semana encerra uma tournée marcada não apenas pelo domínio avassalador da Mercedes-Benz e de Lewis Hamilton como de um número de mudanças suficiente grande para garantir embarques, desembarques, sonhos e pesadelos para 2021, a começar pela renovação da parceria dos seus principais protagonistas. São as chegadas (foto de abertura) e partidas de uma mesma viagem como Nascimento escreveu em um dos versos daquela canção.
Até a manhã desta terça-feira 8 de dezembro Lewis Hamilton ainda não havia renovado seu contrato com a Mercedes-Benz, o que deixa em aberto se ele vai em busca de um oitavo título mundial. À chegada de um fato inédito na história da categoria contrapõe-se a partida de alguém que tem um estilo de vida peculiar para os padrões da F-1, aprecia tanto desfrutar o que uma fortuna considerável permite e quanto enveredar por novos caminhos, como a criação de uma equipe voltada à provas fora de estrada com carros elétricos. Sua fortuna pessoal, próxima dos US$ 300 milhões, algo superior a R$ 1,5 bilhão, permite escolhas de tal magnitude.
Conta nessa decisão o movimento de seu guru e patrão Toto Wolff, sócio da equipe anglo-alemã e que vive situação semelhante: ficar na Mercedes significa o compromisso de manter o time acima dos rivais. Isso pouco acrescentaria em um currículo que teria muito mais a ganhar em repetir esse feito junto à futura equipe Aston Martin Racing, empreitada que tem tudo para ser transformada na marca de supercarros do grupo Daimler. Sem Toto na equipe Mercedes é discutível a manutenção de Hamilton no cockpit que ele ocupa desde 2013.
No pôquer milionário da F-1, Hamilton não se abalou em aceitar a primeira oferta e dobrou sua aposta ao adiar as negociações para depois de garantir o título de 2020. Cortesia do covid-19, passageiro semiclandestino nessa viagem, o inglês de Stevenage certamente não contava com a chance de ser contaminado e ver o compatriota George Russell brilhar a bordo do Mercedes-AMG F1 W10 nº 44, o carro que ele pilotou este ano até o GP de Bahrain. No pseudo-oval de Sakhir Russell mostrou desempenho geral superior a Valtteri Bottas, largou na primeira fila, liderou boa parte da prova e apenas uma estratégia equivocada da equipe impediu um resultado consagrador e que poderia ter sido a vitória.
Há alguns anos adotado pelo programa de desenvolvimento de pilotos da equipe alemã, George Russell é apadrinhado por Toto Wolff e seu currículo o classifica como um campeão com algo mais que potencial para tanto. Sua estrela, porém, parece brilhar em defasagem com suas atuações e o imprevisto que impediu um provável primeiro triunfo repete outros que marcam sua passagem pela equipe Williams. De qualquer maneira, a ele está destinada uma poltrona no vagão de primeira classe dessa viagem.
O mesmo não se pode dizer de veteranos e novatos do cenário atual. Vencedor da prova do fim de semana após cair para o último lugar na primeira volta, Sérgio Pérez segue fora da lista de inscritos para 2021. De quatro vagas potencialmente disponíveis para o ano que vem, as chances de o mexicano herdar uma elas concentram-se na Red Bull e na Williams. A primeira ainda pressiona o anglo-tailandês Alex Albon, que em temporada e meia mostrou altos e baixos a bordo de um equipamento que é um verdadeiro prato temperado ao gosto do primeiro piloto da equipe, o holandês Max Verstappen.
O vazio de caixa provocado com a saída do patrocínio da Aston Martin poderia ser preenchido com os dólares dos patrocinadores pessoais de Pérez e ajudar a comprar a propriedade intelectual do motor Honda. Rebaixar Albon para a equipe AlphaTauri seria anular o embarque de Yuki Tsunoda e afetaria a negociação com a marca japonesa.
A opção da Williams seria a grande reviravolta do mercado: envolveria a possível aposentadoria de Hamilton, a transferência inevitável de Russell para ocupar seu lugar e a oferta de uma pintura ainda virgem de patrocinadores sadios. Esta equação seria um prêmio para a Dorilton Capital, empresa de investimentos que salvou a equipe de Frank Williams da falência e tem amplo conhecimento nas regras do jogo praticado no mercado de capitais. A proposta da Liberty Media, proprietária dos direitos comerciais da F-1, em melhorar o caixa e a competitividade das equipes menores pode garantir ao time de Grove um bem-vindo upgrade para a classe executiva após algumas temporadas viajando sem direito a embarcar sequer com uma mala de mão.
Em outro extremo do grid, a confirmação do russo Nikita Mazepin como piloto da equipe Haas para 2021 é assunto para o vagão da classe turista. Disposto a ter uma equipe de F-1 para chamar de sua, Dmitry Mazepin concorreu para comprar a Force India em seu momento de maior penúria, mas foi derrotado por Lawrence Stroll, que hoje associou o time à Aston Martin, outra empresa administrada pelo consórcio canadense onde ele é o comandante. Tal qual o magnata canadense, o russo também aposta no potencial do seu filho, que ainda carrega a imagem de piloto rápido, porém irregular e afoito. Mais, no último fim de semana envolveu-se em dois acidentes na prova de F-2, um deles provocando a saída de pista do brasileiro Felipe Drugovich, um dos maiores vencedores da categoria nesta temporada. A julgar por seu retrospecto, os US$ 40 milhões investidos na Haas poderão ter mais retorno com o alemão Mick Schumacher, filho do heptacampeão Michael e adotado oficial da Ferrari, que fornece motor, caixa de câmbio e uma infinidade de componentes a equipe que, por enquanto, ainda tem Gene Haas como maior acionista. Não se surpreenda se o trem de 2021 marcar a viagem de volta desse empresário norte-americano.
WG
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