Bom saber, e para começar, o que levou a Ford Motor Compay a esse desfecho não foram impostos, sindicatos, nem incertezas econômicas pré ou pós-pandemia, e sim foi o resultado de estratégias que acabaram deixando a operação brasileira carente de produtos. Todos os fabricantes instalados lidam com impostos e sindicatos, como em qualquer lugar do mundo.
Neste momento creio muitos estejam lamentando a decisão da Ford de encerrar as suas atividades produtivas no Brasil, uma marca presente aqui havia cem anos. Em vez de celebrar um centenário, que passou batido no ano passado, aos onze dias de janeiro da nova década tivemos um comunicado quase lacônico.
Cem anos é muito tempo e naturalmente muita história. Começou montando veículos CKD e fabricação real mesmo remonta o verdadeiro início de nossa indústria, i.e., 1957, parte daquele audacioso plano dos anos JK de industrializar o Brasil na esteira de Getúlio Vargas. Ainda assim são quase 64 anos como fabricante de verdade.
Tanto lá atrás quanto principalmente hoje, nosso mercado pouco ofereceu dimensões para que todos fabricantes aqui instalados pudessem ousar e projetar, construir e vender um veículo genuinamente brasileiro. Não que nos fizesse falta, apenas citando um fato que nos acompanhou desde sempre até os dias de hoje. Os modelos genuinamente nacionais são quase exceções, Gol, Voyage e Parati, Brasília, SP2, Corcel II e Del Rey, ultimamente nenhum exceto os atuais VW da família Gol. Heroicos.
Então, para os fabricantes aqui instalados produzirem um modelo, ele deveria já existir em outro mercado, ou que nas premissas de projeto este veículo fosse vendido em mercados suficientes para que o volume total justificasse os investimentos, numa conta que feche positivo. Isto significa que os custos totais de desenvolvimento de cada produto seriam diluídos por um maior volume, deixando-o competitivo para disputar os mercados pretendidos.
Desde os primeiros caminhões, picapes e automóveis, todos os Fords tinham origens no estrangeiro, exceto o Corcel — mesmo assim nem tanto, pois era projeto francês (Renault R-12) planejado pela Willys-Overland do Brasil e que acabou nas mãos da Ford quando ela se associou à Willys e depois absorveu-a completamente. Embora se tratasse do mesmo projeto, a versão Willys tinha linhas bem diferentes do R-12.
Pulando vários anos de história para tornar este texto suficientemente sucinto que dê ao leitor uma compreensão mais digerível, situarei os dados a partir de 1996, quando a Autolatina se desmanchou. Naqueles tempos, decidida a cisão da VW, a Ford precisava trazer um produto, num Brasil que produzia 1,8 milhão de autoveículos por ano (dados da Anfavea), como eles iriam suprir a lacuna aberta pelo divórcio com a marca germânica? Na verdade, a lacuna vinha de antes e acabou sendo um dos motivos das desavenças que levaram à separação. A Ford não tinha produtos para o mercado de automóveis chamados populares que rapidamente se expandia e seu ex-sócio lhe vinha negando dividir o Gol.
O Brasil sempre guardou mais semelhanças de seu parque automotor com o mercado europeu do que com o norte-americano, isto falando do mundo ocidental. E o foi por uma série de motivos, aqui vinham Fuscas, Kombis, Chevettes, Opalas, Escorts e Fiat 147s e Unos, todos devidamente tropicalizados ou mesmo desenvolvidos para atender as características típicas brasileiras.
A decisão da marca do oval azul foi então trazer da Europa o Fiesta, que era seu compacto de relativo sucesso por lá, com porte, características e propostas mais próxima dos automóveis que dominavam nosso mercado de grande volume. Esse modelo foi o Fiesta Mark IV (4ª geração, código BE91). Era derivado do Mark III em quase tudo, era o que eles tinham e, particularmente o julguei bastante adequado como proposta e produto, suficiente para um novo renascer da marca por aqui.
No segmento de utilitários, traria a Ford Ranger, a ser feita na Argentina e derivada direta do modelo feito para o mercado dos EUA, que se somaria à F1000, num segmento que competia a unhas e dentes com a outra full-size, a Chevrolet A/C/D20. Nos caminhões, seguiria fabricando os ótimos Ford Cargo e linha F. Somando as vendas dos modelos de automóveis e comerciais leves e dividindo pelo mercado total, ela beliscava os 10%. No segmento de brutos chegou a ter 20%, uma boa fatia também.
Automóveis fazem parte de um negócio industrial investimento-intensivo. Muito se grita aqui que o governo dá muitos subsídios, porém se olharmos o resto do mundo, eles existem em todos continentes dos dois hemisférios. Então, quem gosta de salivar com rancor contra subsídios, mereceria estudar um pouco. Eles abundam e fazem parte de políticas industriais e de geração de emprego. Mesmo com elevados índices de automação de hoje, fabricar carros gera muito emprego.
Outra coisa que a globalização trouxe ao país, e isso foi benéfico ao consumidor, foi uma coisa chamada ciclo de produto definido. Aqui fizemos, na época do mercado fechado, Opala por quase 24 anos, Chevettes por 19 anos, Corceis por 18 anos (contando as duas gerações), Kombis por 55 anos (recordista) e a abertura de mercado nos levou a tentarmos adotar as práticas de mercados mais competitivos, onde um modelo é produzido por cerca de oito anos, com um face-lift no meio do caminho. Para tornar o negócio ainda mais desafiador, fazer carros também passou a enfrentar barreiras regulatórias crescentes, mais segurança, airbag, ABS, menos emissões (os motores deveriam evoluir por período, passando a emitir menos que seus antecessores). Ou seja, adicionar-se-iam investimentos que deveriam ser diluídos pelo volume comercializado num tempo definido pelo ciclo do produto. Não vendeu, não recuperou o investimento.
Assim, os Fiesta que vieram para cá trazidos às pressas já tinham data para acabar dali a poucos anos e tinham o seu sucessor já definido. E assim foi, em 2002 veio o sucessor do B91, conhecido por B256 e B257, fabricado em Camaçari. O modelo Fusion europeu daria origem ao Ford de maior sucesso na história da marca aqui, o EcoSport, com bastante engenharia por trás e que inauguraria o segmento suve compacto globalmente.
O que aconteceu de lá para cá foi que a próxima geração desse Fiesta, o Mark VI marcaria uma nova etapa para a Ford local, o produto ficara distante do gosto do comprador brasileiro, não se enquadrando nas demandas de tamanho de cabine (pequeno por fora e pequeno por dentro) e custo. Ficara sofisticado demais, muita eletrônica e a decisão da marca americana foi trazê-lo como produto de menor volume, o que acabou resultando num nicho menor. Não foi só ele, os Corsas europeus de geração contemporânea à dele também não viriam para cá e a Fiat traria o Punto (seu concorrente direto na Europa) tentando o mesmo segmento que podemos chamar de compacto premium. Posteriormente, Sergio Marchionne, o chefão da marca italiana, desistiria desse segmento “B” na Europa por considera-lo poluído (muitos competidores), de baixas margens e muito dispendioso em capital.
Mas a Ford fez nova opção acertada e escolheu trazer o novo Ka, dividindo essa geração com a Ford Índia. O EcoSport que derivou era também bastante competitivo e reinava aqui com somente o Renault Duster como concorrente. O ciclo de vida desses Fords estava destinado ao sucesso comercial e de produto.
Porém, a futura geração do Ka, sempre pensando adiante, dependeria de o Ka na Índia ser bem sucedido. Não foi. Para piorar a situação, a Ford vem também balançando na Europa e na China ela fez escolha para competir com modelos maiores.
Naquela conta de oito anos de ciclo de produto, o Ka e EcoSport já têm nove e não tiveram aprovados investimentos para seus sucessores. O EcoSport que foi vendido na Europa e nos EUA ganhou um sucessor que a Ford julgou não caberia em nosso mercado. Em outubro de 2019 eles decidiram por fazer uma joint venture na Índia, abandonando o 4º maior mercado mundial e que acabou determinando o fim do Ka que dividia os custos com o nosso Ka e dividira os investimentos com a próxima geração que não veio.
Ou seja, a Ford Brasil vinha penando em tentar aprovar investimentos em sucessores de seus produtos sem volumes em outros países que diluíssem a conta. Sem sucesso. Agravou a situação outra decisão da Ford, ela, assim como a GM, decidiram se “desglobalizar”, retirando-se dos mercados onde perdem dinheiro. Ambas saíram da Austrália, GM saiu da Europa. Para nossa sorte, há seis anos a GM fechou a decisão que seu novo compacto global seria feito na China, chancelando a sorte do sucessor do Onix e todos vimos o sucesso que esse produto faz por aqui. A Ford não tinha um Onix global para brigar com ele.
Outra decisão estratégica da Ford, sair dos segmentos onde não vem tendo sucesso, portanto Focus nos EUA, Fiesta nos EUA, Fusion americano (e Mondeo europeu) deixaram de ser produzidos, em prol de eles centrarem esforços em suves e picapes e na eletrificação de seu portfólio.
No início de 2019 eles também desistiram de fabricar caminhões no país, que a grosso modo ajudara a fechar as contas positivas por muitos anos. Apesar de serem sempre na casa dos 20.000-30.000/ano (nos bons tempos), as margens elevadas de cada unidade contribuíram positivamente para os balanços da operação local. Pesaram na decisão outros fatores, os investimentos necessários para atender às regulações de emissões Euro6, previstas para entrar em vigor em 2022, seriam por demais elevados e a Ford já havia abandonado esse negócio globalmente, então não haveriam outros mercados para rachar a conta.
Se já não tínhamos compactos para dividir os custos com o sucessor do Ka/EcoSport, também ficamos sem os Fiesta e Focus.
As tentativas malsucedidas de encontrar soluções e alternativas para trazer novos produtos ao consumidor brasileiro acabaram por determinar a decisão comunicada ontem. Pegou de surpresa? Sim, sabíamos que sem carro novo ela iria sucumbir em algum momento e se houvesse um milagre de aprovarem novos Ka e EcoSport, ainda assim penariam por mais um par de anos com volumes declinantes e prejuízos operacionais até que eles estivessem prontos para serem lançados. Como nós sempre sonhamos e mantemos o otimismo, ficamos na esperança de uma improvável decisão que não veio e agora não mais virá.
O que nos espera
Do comunicado oficial da Ford de ontem ficou que Ranger ainda será produzida na Argentina, tiveram os investimentos de US$360 milhões para produzir a geração que sucederá a atual, assegurando a esse novo produto um futuro.
Porém questiono esse futuro expresso no comunicado. A Ford tem aqui 450 revendedores autorizados. Com zero produtos para vender, quantos deles sobreviverão? Ano passado vendeu-se 19.888 Rangers no Brasil, estimo que a produção total tenha batido nuns 25.000-30.000, ainda sem dados da Adefa, a “Anfavea” argentina..
Se ela não mais terá o mesmo número de concessionários, como conseguir desovar o mesmo volume de picapes?
Produção em massa sempre foi sindicalizada e no Brasil não foi diferente. Em 2010 vi a Ford Camaçari em maus lençóis com o sindicato local. Queriam equiparação salarial com São Paulo. Um fim de mundo dos diabos. A Ford conseguiu contornar a greve e aproximou os salários com aqui, sem sentido, mas foi a solução que lograram conseguir. A grande vantagem de custo em produzir veículos no NE fora para o beleléu.
Nos últimos dois meses do ano passado li dois livros que contavam a história da crise de ’08 nos EUA, “Once Upon a Car” e “Overhaul”. Objeto de estudos, tirei algumas lições e conclusões do que foi escrito. No “Overhaul”, Ratner, que foi o secretário do Obama especialmente designado para costurar uma solução para a GM e Chrysler, se perguntava, por que esses dois fabricantes haviam chegado à beira do colapso de novo e mais ainda, todos tinham fé que, ao anunciar o Capítulo 11 (recuperação jidicial aqui) para ambos fabricantes, os consumidores fugiriam das lojas, então eles definiram um prazo bastante curto para que os dois entrassem e saíssem dessa situação devidamente saneados nas finanças e operações. Conseguiram e ele concluiu que talvez o temor que os consumidores fugissem fosse exagerado. Não saberemos. Não aconteceu.
Aqui, ao anunciar o fechamento das três fábricas que a Ford tem no país e as demissões que se seguirão, o impacto na sociedade, quantos consumidores a Ford planeja reter com somente a Ranger e alguns modelos que virão do México (sob limitação de volumes ditada pelo novo acordo) e de outros países? Sem modelos flex?
A Ford vendeu no Brasil 214.526 veículos em 2019 e 139.255 no ano passado, que foi castigado pela pandemia. Não sabemos qual será o seu tamanho nos próximos anos. Licenciaram-se um total de 2,0M de veículos leves no ano passado e 2,7M em ’19. As projeções da Anfavea anunciadas na última sexta-feira, 8 de janeiro, são que o mercado se expandirá em mais 300 mil unidades, nenhuma da Ford, ou as que restam nos estoques, muito poucas. Todos tristes com isso, cada vaga em fabricante fechada nessas circunstâncias significa 9 outras nos fornecedores e concessionários, portanto um impacto de cerca de 50.000 postos de trabalho. Os outros fabricantes já devem estar lançando as fichas e organizando o seu tabuleiro para absorver esses clientes o mais possível.
Um bom ano a todos, com saúde segura, a vacina já vem chegando!
MAS