Eu costumo criticar muito os departamentos de marketing de todo tipo de empresa. Vez por outra encontro alguma barbaridade que, juro, fico pensando quem foi a criatura iluminada que achou que aquela ideia daria certo, tamanha a obviedade do cenário de fracasso que se pode antever. Mas tem também muita coisa boa — menos do que eu gostaria e certamente muito menos do que seria possível se houvesse um pouco mais de juízo, experiência e até mesmo cultura dentro das empresas.
Este é um caso de bom marquetingue: no ano passado, em novembro, um rim ficou disponível para transplante na cidade italiana de Pádua. Ele era ideal para um paciente em Roma, mas que estava a 503 quilômetros de distância da capital italiana. Claro que em circunstâncias normais um helicóptero seria o meio de transporte óbvio, pois órgãos para transplante têm curtíssima vida fora do corpo. Mas, nessa época do ano é comum a ocorrência de nevoeiro e entre as duas cidades ficam as montanhas dos Apeninos. Ou seja, era a chamada tempestade perfeita. Mas como tem gente que tem espírito prático, a polícia federal italiana (Polizia di Stato) resolveu levar, ela mesma, o fígado, de carro.
Mas claro que para vencer os 500 quilômetros em pouco tempo, não podia ser qualquer carro – um convencional levaria seis horas. Um policial assumiu o volante de um Lamborghini Huracán LP610-4 Polizia e chegou a Pádua em duas horas – à velocidade média de 233 km/h.
No final, a polícia postou um vídeo com o feito e com uma frase sensacional e com uma frase sensacional: “Per salvare una vita non servono superpoteri anche solidarietà, technology and effective aiutano” ou, numa tradução livre: “Para salvar uma vida você não precisa de superpoderes. Mas solidariedade, tecnologia e eficiência ajudam”. Também fizeram questão de agradecer ao Ministério de Saúde e, claro, à Lamborghini.
Assista ao vídeo:
Várias coisas se depreendem desta incrível notícia.
A primeira é porque não foi usado um helicóptero. Bem, fazendo uma conta meio de padeiro, um helicóptero Esquilo, que é o mais comum neste tipo de operação, atinge velocidade máxima de 287 km/h — ou seja, com tempo bom, não muito mais rápido que o Lamborghini. Mas, friso, com tempo bom, o que parece não era o caso em todo o trajeto. Porém, o helicóptero depende de um heliporto no destino — ok, muitos hospitais tem um — mas o Lambo — ora, é um Lambo. Ele pode parar na garagem do hospital, não?
A segunda coisa que me chamou a atenção foi o enunciado. A Polícia italiana tem um Lamborghini Huracán que custa US$ 260.000 a sua disposição? A resposta é, sim. Fui acometida por um misto de inveja pelos policiais que tem acesso às chaves desse bólido e fui pesquisar. Eles tem esse carro desde 2017 e, embora tenha luzes, giroflex, sirene e outros dispositivos comuns às viaturas, incluindo toda a pintura de acordo com a frota de veículos (Ok, essa parte me doeu um pouco. Pintar qualquer coisa que não seja uma cor única num carro desses… ) ele foi especialmente modificado para a função de servir à Força, com, inclusive, a colocação de um compartimento refrigerado na frente do veículo, sob o capô, usado para transporte de vacinas, plasma ou órgãos para transplante.
Tem, ainda, um sistema de câmeras de vídeo com tela no centro do painel e câmera perto do retrovisor, computador, equipamento de gravação de áudio e vídeo, rádio na frequência da polícia e um desfibrilador. Esse carro faz de 0 a 100 km/h em 3,2 segundos e atinge os 325 km/h, mas tem também computador ligado à polícia que lhe permite fazer operações banais como checar documentação, velocidade e até mesmo, claro, que seus ocupantes multem outros motoristas. Mas, convenhamos, seria pouco usar essa máquina com motor 5,2 V-10 de aspiração natural, 610 cv a 8.250 rpm, câmbio robotizado de dupla embreagem sete-marchas e tração nas quatro rodas para multar motoristas nas rodovias, não? Detalhe: este Huracán substitui outros dois modelos Lamborghini Gallardo, destruídos em operações policiais. Todos doados pela Lamborghini.
A terceira é: em quais situações se fazem operações como esta? Segundo o Ministério de Saúde italiano e o Centro Nacional de Transplantes da Itália, casos como este são muito raros e acontecem em situações muito específicas. Este era um caso de doação “crossover”, um intercâmbio de órgãos entre casais incompatíveis em que o cônjuge de um dos pacientes que aguarda o transplante doa um órgão a outro paciente cujo cônjuge doa, em troca, um órgão ao outro paciente. Fui pesquisar e este foi o segundo caso deste tipo na Itália em 2020.
O quarto destaque é: caramba, que ótimo saber que a polícia italiana tem gente que dirige bem assim. Não consegui descobrir que tipo de preparo têm, mas vai ser bom assim no inferno, não? Imagino que seja treinamento semelhante ao de um condutor de ambulância, mas o sujeito tem de fazer tudo isso não com um furgão, mas com um supermegacarro esporte a até 300 km/h. Não é para qualquer um.
O quinto ponto desta história é: pode-se fazer uma boa ação e, ainda, usá-la como marketing. Nada de errado com esta atitude, que é totalmente diferente de uma pseudocelebridade doar duas cestas básicas e ficar se gabando disso aos quatro ventos.
E, por último, claro que eu, como oriunda, me interessei por esta façanha, mas, sério, tem coisa mais italiana do que tudo isto?
Mudando de assunto: atualização sobre mensagens de áudio por WhatsApp. Segui o conselho do leitor Marcus Lahóz e coloquei no meu status no uotizápi: “Não mande áudios. Escreva.” Mudou algo? Apenas o enunciado dos áudios. Os mais observadores dizem: eu sei que você não gosta de áudios, mas é que assim fica mais fácil…”. E dá-lhe mensagens de 3, 3h30 minutos para dizer: “preciso que você me mande o desenho do aparador para que possa concluir o orçamento.”
NG