Conheci milhares de pessoas na minha vida profissional. Pouquíssimas pessoas (talvez conte nos dedos) posso dizer que foi um privilégio. E Osamu Iida, ou simplesmente Iida San, foi um dos maiores privilégios. O executivo japonês, que implantou a fábrica de Manaus e planejou a industrialização da Honda CG 125 nacional, foi também o salvador das motos no Brasil.
Eu havia lançado a Duas Rodas em 1974 e revista ia muito bem. Crescendo e com números de vendas comparáveis aos da Quatro Rodas. Aí, no início de 1976, veio a proibição de importações. Mortal para um mercado que praticamente vivia de motos importadas. Duas Rodas e meu futuro profissional afundavam rapidamente.
Osamu Iida havia chegado ao Brasil em 1971, com uma pasta cheia de planos e projetos. Nunca havia estado no Brasil, mas desceu do avião falando português perfeito com sotaque brasileiro. Avisado por Shoichiro Honda com antecedência de sua missão no Brasil, Iida foi para uma universidade em Tóquio para estudar português e fazia questão de ter aulas apenas com professores brasileiros. Sabia que não seria tão bem-vindo com sotaque luso. Assim, nossa língua foi se juntar na cabeça de um japonês que já falava pelo menos seis ou sete idiomas.
Por uma questão de sobrevivência mutua nos tornamos amigos rapidamente desde 1974 com o lançamento da Duas Rodas. Conheci o projeto da CG nacional e a fabrica de Manaus antes da fábrica no Amazonas produzir uma única moto.
Quando vi o projeto da CG, que já havia sido lançada na Ásia, briguei muito com Iida. “Que moto sem-vergonha, Iida. Isso é uma bicicleta motorizada. Tem que ser alguma coisa com motor maior, comando no cabeçote, freio a disco na dianteira”.
“Isso vem depois, dizia Iida (e realmente veio, começando com a Turuna), precisamos de uma moto simples, resistente, que possa ser consertada pelo próprio dono lá no meio do sertão”.
Sua visão e seu plano para os 20 primeiros anos da Honda no Brasil, previam tudo. Ele só precisava de pessoas como eu para afinar sua visão do nosso País e tentar entender as tradicionais trapalhadas dos governos brasileiros, tudo para ajustar detalhes de seu minucioso planejamento.
No meio de nossas discussões, regadas por um bom uísque, Iida misturava as línguas e começava a argumentar em inglês, francês, espanhol, italiano… As línguas que eu arranhava ia junto, para desespero dos garçons do hotel onde Iida residia, que observavam dois malucos brigando, às vezes cada um falando uma língua. Quando ele começava a perder a discussão falava em japonês. Eu o xingava em alto e bom português. Iida sorria, levantava, fazia aquela mesura bem japonesa e agradecia por aumentar seu vocabulário também em palavrões.
Quando finalmente vi que vinha a CG mesmo, desafiei Iida: “Se você acha que essa encrenca é assim resistente, virei rodando de Manaus para São Paulo com uma das primeiras que saírem da linha de montagem”. Iida topou com a condição de que tivesse notícias minhas (e do Kato San, da Honda, meu companheiro de aventuras) todas as noites, o que nem sempre era possível.
E assim Iida salvou a Honda e o destino da Duas Rodas, e eu pude contar uma aventura master, no final de 1976 com uma das primeiras Honda nacionalizadas. E a CG até hoje continua a moto mais vendida do País. Iida tinha toda razão.
Nos anos 1980 (1983 a 1987) voltou a presidir a Honda brasileira, sendo “rebaixado” para assumir o posto, pois já estava em posição profissional mais elevada na hierarquia mundial da Honda. Mas, a filial brasileira começava a sair dos trilhos e Iida, novamente, era o executivo certo para a missão. Um dia, em 1984, ele me liga dizendo que “precisamos jantar hoje”. “Por que hoje, não pode ser amanhã?”. “Não. Hoje é uma data importante”
Jantamos. Iida levantou um brinde, dizendo que finalmente éramos amigos.
“Como assim, Iida, somos amigos há muito tempo.” “Não, éramos conhecidos. Hoje faz 10 anos que nos conhecemos. Ninguém é amigo antes de uma década”.
Anos mais tarde, Iida estava nos Estados Unidos, cuidando dos interesses da Honda em Washington, e nos encontramos no aeroporto de Frankfurt. Era um grupo de cinco ou seis jornalistas brasileiros e Iida deu um cartão de visitas para todos, menos para mim. Esperei todos irem para o voo e ele pegou um cartão e colocou seus dois celulares de Tóquio e Washington: “Você é meu amigo. Se for para Tóquio ou Washington e não ficar na minha casa, vamos brigar muito novamente”.
Nos despedimos, como de hábito, com uma mesura à japonesa e um abraço bem brasileiro.
Apegou-se ao Brasil, conseguia ter nosso calor emocional e descobriu o significado da palavra saudade. Depois de aposentado, voltava sempre ao Brasil, acompanhado de um bando de amigos japoneses que aqui vinham para operar seus olhos a laser. O custo da operação era tão elevado no Japão que mesmo com as despesas de viagem era mais barato vir para o Brasil.
Claro, almoçávamos juntos e os velhos tempos do lançamento da Honda CG 125 ganharam cores novamente.
Iida foi, sem dúvida, uma pessoa com qualidades impensáveis, uma mistura difícil de nacionalidades: um samurai e um gentleman, com boas pitadas do melhor do brasileiro. Faleceu dia 24, no Japão, em consequência de um câncer.
Procurei saber sua idade atual, mas não encontrei. Supondo que tenha chegado ao Brasil em 1971 com 35 anos, somados aos 50 anos decorridos ele estaria com 85 anos. Ou algo muito próximo disso.
Que Deus, ou Buda, o tenha.
JS
(Atualizada em 29/01/21 às 18:08,, inclusão de duas foto, uma delas inédita)