Depois de escrever sobre Desiré Wilson neste espaço surgiram vários comentários de leitores sobre outras mulheres que disputaram corridas de carros. Bem, vamos ao assunto, pois há várias curiosidades.
Por via das dúvidas, para quem não me conhece ou lê pela primeira vez estas (não tão) mal traçadas linhas, vamos aos disclêimeres:
- Este texto não infere que mulheres dirigem melhor ou pior do que homens. Este texto é apenas sobre algumas mulheres que se destacaram em algumas categorias do automobilismo.
- Este texto não infere que deveria haver cotas para mulheres no automobilismo. Este texto sequer projeta a participação feminina nas diversas categorias. Este texto é apenas sobre algumas mulheres que se destacaram em algumas categorias do automobilismo.
- Este texto não tem qualquer caráter discriminatório com qualquer orientação sexual, etnia, religião ou cor de esmalte de unhas (ou sua ausência). Este texto é apenas sobre algumas mulheres que alcançaram relevância em algumas categorias do automobilismo.
- Nenhuma mulher cis, trans, hétero, homo, “gender fluid”, vir-a-ser mulher específica, mas não exclusivamente, foi ferida na apuração desta matéria. Este texto é apenas sobre algumas mulheres que alcançaram relevância em algumas categorias do automobilismo.
Comecemos pelo começo. Este ano promete ser importante para a participação feminina no automobilismo. A W Series, categoria de monopostos de nível Fórmula 3 com participação exclusivamente feminina será uma das três fórmulas que farão as corridas de abertura da F-1. Vamos aguardar, pois serão apenas oito provas, a primeira delas em Le Castellet, no dia 26 de junho, véspera do GP da França no Circuito Paul Ricard.
A categoria estreou em 2019, mas a programação de 2020 foi suspensa devido à pandemia do coronavírus. Estranho é que outras categorias como a própria F-1 disputaram diversos GPs, embora com alteração de datas e de locais. Como curiosidade, participam desta categoria 20 mulheres, incluindo a brasileira Bruna Tomaselli, que estreia na categoria este ano. Jamie Chadwick, campeã da primeira edição do W Series em 2019, é hoje piloto de desenvolvimento da Williams e corre na Extreme E, categoria de suves elétricos que tem duplas mistas de pilotos.
Bem, mas o fato de ter sido criada uma categoria exclusivamente com mulheres não quer dizer que a F-1 (ou outras) seja exclusivamente masculina. Não é. Na década de 1970, Lella Lombardi disputou diversas corridas. No início dos anos 1990 Giovanna Amati (foto abaixo) foi a última (até agora, ver diclêimeres em caso de dúvida) mulher a tentar se classificar em provas de F-1. Em 2014, Susie Wolf chegou a participar de treinos livres da F-1 — sim, já sei, muitos dirão que só o fez porque é esposa de Toto Wolff, diretor- executivo e proprietário de 33,3% da equipe Mercedes, mas o fato é que ela deve ter méritos também, se não como piloto talvez como dirigente de escuderia pois hoje é chefe da equipe Venturi Race, na Fórmula E. No entanto, ela se aposentou após a temporada de 2015 por achar que não teria lugar permanente num F-1.
Lella Lombardi é o primeiro nome feminino que vem a cabeça de qualquer fã de automobilismo, especialmente de F-1. Pessoalmente, não concordo com uma teoria bastante difundida de que mulheres teriam mais dificuldades em obter patrocínios e que por isso seriam em menor número nos grids. Assim como pode ter marcas que não queiram se associar a nomes femininos tem um zilhão de outras que fazem questão disso. Outro: como mulheres conseguem patrocínios em modalidades como provas de longa duração ou ralis? Não, não deve ser esse o motivo pelo qual há poucas mulheres na F-1. Para quem não é impaciente, tem uma teoria no final deste texto.
O panorama está mudando, inclusive nas categorias de base. A Ferrari contratou a piloto holandesa-espanhola Maya Weug para fazer parte de sua academia de pilotos. Quando passou pela avaliação do programa ferrarista, entre o final de 2020 e o começo de 2021, Maya teve o melhor desempenho já visto no conjunto de testes aplicados pela Ferrari a pilotos de sua academia de pilotos, que inclui nomes como Jules Bianchi, Charles Leclerc e Mick Schumacher, todos acabaram na F-1.
Mesmo para quem tem boa memória, há poucos nomes femininos para lembrar: apenas seis mulheres dirigiram durante os finais de semana de Grandes Prêmios, e dessas apenas duas realmente participaram de corridas — a própria Lella e a italiana Maria Teresa de Filippis, que participou do Grande Prêmio de Mônaco de 1958. Durante os treinos, apenas metade dos 31 pilotos que disputavam conseguiram se classificar e Maria Teresa não foi uma delas. Maria Teresa tentou se classificar em cinco corridas, das quais quatro com Maserati e uma com Porsche e conseguiu largar em 3 provas. Sua melhor colocação foi um décimo lugar no GP da Bélgica, em 1985, depois de ter largado em décimo-quinto lugar.
Já Lella participou de 17 corridas, largou em 12 provas entre 1974 e 1976 e continua a ser a única piloto da história a marcar pontos em corridas de F-1 — como expliquei em outra coluna, Desiré Wilson marcou pontos com um carro de F-1, mas num campeonato paralelo da própria F-1. Já Lella terminou em sexto no Grande Prêmio da Espanha de 1975, que, devido a uma tragédia que matou cinco pessoas, foi interrompida antes da metade, o que fez com que marcasse apenas meio ponto — mas ainda assim, uma marca histórica na F1.
Se Lella Lombardi é a mais lembrada, talvez a mais esquecida seja a piloto espanhola Maria de Villota, filha e irmã de pilotos. Ela perdeu um olho num acidente quando testava um Marussia de F-1, em 2012. Acabou falecendo no ano seguinte, de causas naturais, mas consequências neurológicas do acidente que sofrera no ano anterior.
Berço da F-1, a Grã-Bretanha tem um nome de destaque: Divina Galica, uma ex-esquiadora olímpica que foi para o automobilismo como segundo esporte. Em 1976, ela tentou se classificar no GP da Inglaterra de 1976, mas não conseguiu. Depois veio Desiré Wilson, que tentou classificar-se para o GP da Grã-Bretanha de 1980, mas não conseguiu. No mesmo ano, venceu a etapa de Brands Hatch, numa categoria chamada Aurora F-1, que era disputada com carros de F-1, mas com modelos anteriores aos da época, como já contei aqui.
Seguindo na ordem mais ou menos cronológica, depois veio a italiana Giovanna Amati que participou de três corridas em 1992. No entanto, ao não se classificar foi substituída pelo futuro campeão mundial Damon Hill — que, ironicamente, também não se classificou para seis das oito corridas seguintes.
Na sequência temporal ainda dentro da F-1, depois vieram Katherine Legge (que testou para a Minardi em 2005), Carmen Jordá (testes com a Lotus F-1 em 2015) e Tatiana Calderón (que está em programas de desenvolvimento da Alfa Romeo).
Entre dirigentes é pouco frequente, mas está aumentando, a participação feminina. Em 2012 tivemos Monisha Kaltenborn, a primeira mulher chefe de equipe de uma equipe de F-1, a Sauber. Teve também a Claire Williams, filha de Sir Frank Williams e chefe da Williams F-1 de 2013 a 2020, até que a empresa foi vendida à Dorilton Capital. Ela começou como executiva de Comunicação em 2002, onde ficou até 2013, quando foi nomeada vice-diretora da equipe — Sir Frank era o chefe da equipe.
Mas não é apenas a empresa de mudanças que gira. O mundo também e um comentário absolutamente machista (este sim) feito pelo ex-piloto de F-1 Jacques Laffitte teve um fim irônico. Depois de uma prova da Aurora em que o francês a bordo de uma Ligier jogou Desiré Wilson fora da pista quando se aproximava de John Surtees, teria dito: “Joguei a Desiré para fora da pista. Nenhuma mulher pertence à Fórmula 1 e farei qualquer coisa que seja necessária para mantê-la fora”. Pois é. Pagou a língua dentro de casa mesmo. Entre 2008 e 2013 a filha de Laffitte, Margot Laffitte, correu na World Series Renault na Eurocup Mégane Trophy e na Eurocup Clio. Em 2014 ela disputou o campeonato francês de Superturismo e terminou em 18º lugar. Em 2017-2018, Margot participou da temporada do Andros Trophy em dupla com Olivier Pernaut e de vez em quando corre com o marido Arnaud Tsamere. Em 2019 ela participou da série Asian Le Mans no circuito de Sepang (4 horas de prova) numa equipe exclusivamente feminina com a piloto dinamarquesa Michelle Gatting na equipe de Katherine Legge. As meninas terminaram em 13º lugar. Tomara que ela não encontre pela frente outros pilotos que pensem como o próprio pai ou, melhor ainda, que o pai tenha mudado de ideia.
Aliás, para quem discute participação feminina em diversos segmentos e tem suas próprias teorias sobre os motivos da falta de representatividade feminina, sugiro ler o estudo da Universidade de Missouri, baseado num exaustivo trabalho feito com 475.000 pessoas em 67 países sobre o interesse de mulheres por diversas profissões. É interessante ver que, mesmo quando estudadas populações de países notadamente mais igualitários como os escandinavos e onde a questão financeira não é algo relevante na hora da escolha, a maioria das mulheres escolhem profissões tidas como “não masculinas”. Eu sempre acharei que lugar de mulher é onde ela quer estar — se quer na política ou no automobilismo, que seja, mas se quer ser professora primária ou dona de casa, assim deve ser. Não gosto que ninguém seja obrigado a trabalhar numa área que não quer e forçar a participação feminina, nem acho razoável querer que todas as áreas sejam ocupadas 50% por mulheres e 50% por homens (grosso modo, vamos deixar outras opções sexuais fora disto desta vez). Pronto, acabo de abrir as portas do inferno para quem não é devoto de Nossa Senhora da Interpretação de Textos como eu.
Mudando de assunto: mais uma para minha coleção de piadas infames sobre veículos, tirada do Facebook (e, como se diz por aí, desculpem meu francês):
NG