Muitos ficaram perplexos com a nota zero que o Renault Duster fabricado no Brasil recebeu no teste de impacto do Latin NCAP, na última sexta-feira, quando a entidade recomendou que ele deveria passar por recall devido a um vazamento de combustível. Mas para mim a notícia não foi uma surpresa.
Que fique bem claro que o resultado apresentado no crash-test não é exclusividade da Renault. Se o Latin NCAP fizer a mesma avaliação nas mesmas condições com veículos de outras marcas à venda no Brasil, podemos nos preparar para ver alguns desempenhos semelhantes. Aliás, já vimos essa história em 2017, quando o Chevrolet Onix levou a mesma nota zero, com o agravante de ser uma época em que os critérios eram bem menos rigorosos do que agora.
Vou ser mais direto: quando se trata de segurança, os fabricantes no Brasil colocam o tema em segundo plano. Design, conectividade ou consumo são atributos que serão sempre mais valorizados. De fato, a preocupação com o meio ambiente hoje é muito mais importante para eles do que a segurança de seus veículos, mesmo que o discurso oficial seja outro.
Essas empresas estão mobilizando muito dinheiro e recursos para mostrar como estão empenhadas em neutralizar todas suas emissões nos próximos anos — incluindo das fábricas e escritórios e não apenas dos seus carros.
As marcas falam dos veículos elétricos e híbridos buscando a redução de poluentes, investem em projetos sustentáveis mesmo que sejam de outras empresas, exigem que fornecedores tenham processos produtivos ou usem matérias-primas mais amigáveis ao meio ambiente. Não ouvimos, porém, nenhuma delas clamar por aí que a partir de agora só venderão veículos que sejam cinco estrelas nos testes de impacto. E nem ouviremos.
Cinto? Cadeirinha? Dirigir após beber?
Os fabricantes não se preocupam verdadeiramente com isso por uma razão simples: porque nós, como consumidores brasileiros, não damos a mínima para segurança dos nossos automóveis.
Se nos perguntarem, claro que sempre diremos que valorizamos muito. Mas nossos atos mostram o contrário. Poucos se lembram de usar cinto de segurança no banco traseiro, continuamos a beber e dirigir achando que o problema são os outros motoristas e comemoramos quando a pontuação necessária para suspender a habilitação ficou muito mais camarada.
Na hora de escolher nosso automóvel, preferimos comprar um modelo mais bonito ou uma central multimídia mais moderna a escolher uma marca que tenha mais equipamentos de segurança ou uma estrutura mais resistente a impactos.
Eu sei que essas palavras incomodam, mas é a pura verdade. Lembra daquele Chevrolet Onix que tirou nota zero em 2017? Saiba que logo depois o modelo registrou aumento de procura e fechou o ano como líder do ranking brasileiro, vendendo 80% mais que o segundo colocado, o Hyundai HB20.
Você vai me dizer que foi um caso isolado? Então vamos voltar ao fim de 1999, quando o Renault Clio estreou por aqui. O fabricante dizia com o maior orgulho que era o primeiro carro popular do Brasil com bolsas infláveis de série. Resultado: o público não ligou para isso, obrigando a empresa a tornar o equipamento opcional, pois o consumidor buscava mais preço do que segurança.
Quase ninguém quer pagar por segurança
Algo não muito diferente aconteceu com o Volkswagen up!. Lançado em 2014, foi o primeiro compacto nacional a conquistar as 5 estrelas do Latin NCAP, além de ter o poderoso argumento de ser um dos veículos mais econômicos do Brasil. Nada disso adiantou. O público só enxergava que era um modelo mais caro que seus pares, apesar da modernidade do seu projeto cheio de qualidades — até hoje seu espaço interno comparado ao tamanho externo é notável.
A Kombi é o perfeito exemplo da falta de preocupação do brasileiro com segurança. O projeto era basicamente o mesmo desde sua concepção (ela foi apresentada ao mundo em 1950), já havia sido substituída na Alemanha em 1979 por uma versão mais moderna (a geração T3) e, mesmo assim, foi um sucesso até 2013, quando saiu de linha no Brasil (e no mundo) apenas porque não era viável instalar as bolsas infláveis que seriam obrigatórias no ano seguinte.
Qualquer um que já andou numa charmosa Kombi sabe que a segurança passa longe ali. Estabilidade, frenagem, reforço estrutural… tudo é um exemplo do que não deveríamos ter em um veículo do uso cotidiano no século 21. Ainda assim era líder disparada de vendas.
Basta ver o vídeo abaixo de um teste de colisão para entender do que estamos falando. Eu sei que filmagem mostra uma versão picape com carga em alta velocidade, por outro lado a avaliação foi feita com uma T3, versão mais moderna. Assista e se surpreenda.
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Por favor, não me venham argumentar que o problema é o bolso curto dos brasileiros, que os obriga a investir em modelos mais baratos. Essa desculpa não cola. Fosse isso verdade, eles estariam comprando câmbios manuais e veículos sem ar-condicionado aos montes.
A verdade, porém, é que 97% dos carros vendidos no Brasil são equipados com ar-condicionado e 50% têm câmbio automático, segundo números da Anfavea já desatualizados de 2019. Significa que esses itens entregam conforto e comodidade que faziam valer os mais de R$ 4 mil que se pagava neles há alguns anos.
Outro bom exemplo são os suves, que este ano se tornaram a categoria de veículo mais vendida do Brasil. Todos sabem que eles são mais caros que hatches, sedãs e peruas equivalentes. Mas quem liga para isso?
Eu já falei em outra coluna, mas é sempre importante repetir: as marcas não se importam com a segurança porque o brasileiro médio também não liga para isso.
Somos o país da tragédia da Boate Kiss, cujo incêndio matou 242 pessoas e feriu outras 680 em 2013 e até agora ninguém foi condenado, em um incidente que muitos classificam como fatalidade, não crime.
Somos o quinto país do mundo que mais mata no trânsito, segundo relatório da OMS (Organização Mundial de Saúde) de 2018 que analisou 178 nações.
Somos o país em que alguém dirige bêbado e, ao ser parado numa blitz, pode se recusar a soprar o bafômetro.
Somos o país onde o motorista alcoolizado mata outras pessoas e pode ser liberado se pagar fiança. Ou pagar cestas básicas se for condenado.
Portanto, se nós não nos importamos com a segurança ao volante, por que as marcas deveriam?
ZC