A Parati GLS que sempre importou mais para nós, entusiastas, nasceu apenas em agosto de 1988 quando ela, além de ser a versão mais luxuosa da perua, também ganhou uma personalidade que flertava descaradamente com a esportividade. Ao herdar o motor de 1.781 cm³ da pesada linha Santana — peso-pena nos dias de hoje— a versão GLS adentrou pela porta da frente no segmento dos carros com viés esportivo no Brasil da década de 1980. Meter um motor “grande” em carro pequeno era uma fórmula quase universal que dificilmente dava errado naqueles dias, na época — muito antes do advento dos turbos seriados no Brasil — era o modo mais utilizado pelas fabricantes para extrair mais desempenho dos nacionais.
Não à toa que logotipos com o número da cilindrada do motor, fosse ela em centímetros cúbicos ou em litros, eram exibidos com orgulho na tampa do porta-malas e/ou para-lamas dianteiros dos carros do passado — hoje esse tipo de coisa vem sendo substituído pelos números de torque mas numa unidade que ninguém usa ou entende no Brasil, o newton·metro, de símbolo N·m.
Mas por mais estranho que isso possa parecer essa estratégia faz sentido do ponto de vista mercadológico, pois ninguém irá arregalar os olhos ao ver 1.0 ou 1.4 na traseira dos suves que tomaram o mercado; mas voltando lá atrás, numeral de 1,8 para cima — dependendo do modelo — a gente já esticava as antenas atentos. Essa cilindrada, exposta na família BX, sempre denunciava algo rápido e ágil de verdade, com grande facilidade de produzir boa velocidade.
O 2,0 era destinado ao topo dos carros de luxo — então antes do Gol GTi — como o Monza e o Santana 2000, e o emblemático 4.1/S era feudo exclusivo de um carro que era amado e rejeitado em doses iguais por uma multidão de entusiastas. O Opala era para alguns — os que o odiavam — um enorme desperdício de motor num carro velho e ultrapassado, cujo paquidérmico motor era chamado da mesma coisa, exigindo muita gasolina pelo relativamente pouco que entregava — “Ah, se ele tivesse o mesmo desenvolvimento da linha AP” – imaginavam sonhadoramente muitos de nós…
Sim, os Alta Performance (nome comercial, o de produto é EA 827) eram cultuados de verdade pois originalmente entregavam um desempenho de grande categoria em relação à sua cilindrada. O Chevette até 1988 era realmente lerdo em números absolutos — quando o carro é exigido ao extremo — e o Escort era um foguetinho se o CHT Fórmula fosse padrão em todo Escort até o Ghia, mas esse motor era solenemente enterrado pelo visual de briga do belíssimo XR3 que evocava emoções verdadeiramente fortes atrás do pequeno volante de 36 cmmm de diâmetro, expectativas que o pequeno 1,6 (e que não era grafado na tampa traseira) simplesmente não tinha como prover, mesmo com a engenharia da Ford tirando tudo dele.
O Monza 1.8 (e 2.0) tinha um motor moderno e de ótima potência, mas as relações de marchas eram mais conservadoras nas versões não esportivas e o carro era mais pesado. Muito veloz em condições de Autobahnen brasileiras se estas existissem, mas mesmo naqueles dias, quando existia bem menos fiscalização rodoviária, o mestre da Motor 3 — nosso saudoso JLV — já apontava que o nosso tráfego era conceitualmente estranho aos carros projetados nessa filosofia: ritmo muito agressivo na cidade e muito devagar nas estradas. O Uno “só existia” na versão esportiva R, que extraía um ótimo rendimento do motor e isso se refletia nos números de desempenho, ótimos para um motor de apenas um litro e meio, mas não era um carro barato na realidade.
Então tínhamos os Gols, Paratis, Passats, Voyages e Saveiros que realmente ganhavam vida com o MD 270 e o seu sucessor o AP 600, e eram relativamente baratos pelo desempenho que promoviam. As versões mais peladas do Gol, por exemplo, eram capazes de causar alguns sustos em automóveis bem mais caros e teoricamente mais dedicados ao desempenho, fosse pela linhagem (XR3, S/R 1.8) ou tamanho do motor (Opala seis a gasolina, Monza SL/E); mas esse ímpeto era ligeiramente arrefecido nas versões mais caras e pesadas da linha de luxo dessa família, o Voyage e a Parati. Andavam bem sim, mas não o suficiente para contar vantagem aos amigos numa mesa de bar.
Mas a Volkswagen tinha problemas mais sérios em relação a imagem dos seus carros realmente de topo de linha, o Santana e a Quantum. Apesar de moderno e bem construído, inaugurando um padrão totalmente inédito para a marca aqui no Brasil, todo aquele luxo, acabamento e frisson de novidade era empurrado por um motor que não repetia o destaque dos outros itens. Seu motor da família EA 827 melhorado para mais desempenho fazia a glória do leve e irrequieto Gol GT, mas trabalhado para fornecer torque e potência em giros mais baixos no carro grande da marca. O resultado global era apenas mediano no Santana, que ainda tinha conspirando contra si marchas bem longas exceto a primeira. Perdia em desempenho para o Monza por pouco, apesar de parecer mais rápido em virtude da relação do acelerador e da caixa sempre mais leve e precisa, e nem dava para o cheiro diante da linha Diplomata de seis cilindros, só batendo com força no pobre Del Rey mesmo.
Os anos se passaram e algumas melhorias foram feitas: bielas longas e marchas curtas acabaram por melhorar o desempenho do carro em todas as situações, mas só encontrando realmente uma solução definitiva quando o motor de dois litros entrou em cena, finalmente, tornando o Santana mais apto a enfrentar seu grande arquirrival da GM, o Monza.
Bom, tudo isso foi dito apenas para destacar o processo natural de evolução que seria trazer para um patamar superior os carros imediatamente abaixo em tamanho, que roçavam a linha básica da linha Santana e Quantum, e a adoção do motor maior seria um impulso grande para a perua pequena da marca, quase uma nova Parati GLS, mas agora com o 1.8 registrado orgulhosamente em 3 pontos da carroceria, rodas novas e todo o jeito de ter nascido como futuro clássico.
Propaganda da Parati GLS na mídia impressa quando do seu lançamento (Captação de revista)Como adiantamos no primeiro parágrafo, é chover no molhado escrever como esse carro ficou bom com um motor maior. Mesmo ainda não tendo a receita do 1,8S que equipava o Gol GTS de então, a Parati GLS era um carro quase tão rápido quanto o Monza Classic 2,0 e o Santana GLS 2000 mesmo que perdesse em acelerações e em velocidade máxima apenas 5 km/h em média mais lenta, mesmo com aquela aerodinâmica bem primária, nos testes da revista Quatro Rodas.
Mesmo em outras publicações cujas retas proporcionavam um desenvolver de mais velocidade, essa diferença nunca chegou a 10 km/h, e nas retomadas, não era comum ver a pequena perua sumindo na frente. Mesmo perante o esportivo mais rápido da Volkswagen da linha 1988, o Gol GTS, a diferença em final era ainda menor e os outros esportivos com motores menores como o Escort e o Uno, podiam passar por sérios apuros diante de uma Parati bem dirigida, o pai reduzindo duas marchas na estrada e as crianças no banco de trás te dando tchauzinho a medida que você era deixado para trás, imaginem a cena…
Bom, não temos como reproduzir essa cena em especial, apenas imaginada, mas alguma coisa vamos rememorar hoje com essa linda Parati GLS 1994/1995 1,8S bege Urano do novo-velho amigo Elton Souza Cardoso, professor de educação física de Porto Alegre, RS, que está aos cuidados do Jeison Paim — velho conhecido dessa página após a publicação sobre a magistral busca e recuperação do Santana GLSi que pertenceu a frota da Quatro Rodas, e que têm experiência de sobra, talento nato e entusiasmo para procurar e recuperar esses carros que nos causam torcicolos no pescoço; além de monitorar para que nosso texto não tenha tantas imperfeições técnicas e históricas.
A Parati GLS do Elton
Apesar de terem se passados tantos anos desde o encerramento da produção da Parati quadrada, a visão de uma delas nas ruas é ainda algo quase normal, incapaz de revirar os olhos, pois como ela foi feita em grandes quantidades ainda existe uma boa quantidade delas por ali, a maioria em condições apenas razoáveis de conservação sendo poucas as que se destacam no quesito. Mas se somarmos a condição impecável com a versão mais cara e luxuosa do modelo, aí sim a coisa começa a ficar séria de verdade e a gente para e presta bastante atenção.
É o caso desta Parati que visualmente é muito bem melhorada na origem pela sua fabricante, e parece ter saído semana passada da linha de montagem; as rodas pingo de água que entraram na linha 1993 fizeram um bem tremendo a esse carro, não importa se eram saldão de estoque antigo de GTi e GTS, as “patas” maiores preencheram melhor a lateral do carro pontuando que esta é uma Parati de briga sim, a pequena sigla GLS no para-lama dianteiro — na melhor linguagem Santana GLS — dá um toque de luxuosidade discreta que conversa muito bem com os frisos, as rodas e a cor elegante.
As dimensões exíguas da carroceria, motivo de crítica ao final dessa geração, agora parecem sedutoras e quase exóticas perante os carros (suves em sua maioria) cada vez maiores que encontramos todos os dias no trânsito. Existe algo de acolhedor nessa perua pequena que não precisa mais se preocupar com espaço interno, estilo ou eficiência aerodinâmica moderna, essas responsabilidades de ordem prática não são mais cobradas e a Parati GLS quadrada, agora, pode ser dar o direito de ser apenas bela, e isso basta.
Abrindo a ampla porta entra-se no carro e parece que estamos sentando num Ford dos anos oitenta e noventa, pois o veludo usado no interior é macio e quente ao toque, e seu tom bege predominante vêm coadjuvado por um painel que mistura preto com marrom, mesma cor usada nas molduras das portas. Existe uma coerência e harmonia muito bonita entre esses três tons, bem de acordo com o que a luxuosa sigla GLS pede. Ainda dentro do bege predominante — nos bancos e portas — encontramos um delicadíssimo jogo de cores em pontos minúsculos que misturam azul, verde e vermelho; algo muito discreto e elegante, a ponto de o Jeison comentar que se fosse possível, faria a cama da casa dele usando apenas esse material.
A cabine é pequena, baixa e estreita, um carro tido como subcompacto (up!) é bem mais amplo dentro em todos os sentidos, dois adultos de bom porte não encontram muitas dificuldades no banco de trás, mas precisam abrir as pernas como asas de borboleta para contornar os assentos dianteiros, três pessoas no banco de trás é realmente bem complicado. Mas como eu disse antes, é acolhedora apesar de tudo.
Voltando ao posto do motorista, ao sentar no banco dianteiro, percebo imediatamente que não consigo me encaixar naturalmente nos bancos Recaro, sensação estranhíssima, os ombros macios desse Recaro mais “civil” não querem me abraçar como faziam os dos GTS e GTi de outrora. Será que engordei tanto assim com o passar dos anos? Nem tanto, apesar de não ser esbelto como um toureiro espanhol, é o tipo de coisa que não deveria acontecer. Talvez essa família de bancos tenha as medidas ligeiramente mais exíguas também no seu miolo, e não apenas nos ombros e suporte das coxas como nos Gols mais esportivos. À frente, o famoso volante de direção alemão de 380 mm de diâmetro, quatro raios e quatro botões de buzina, de aro fino cujo toque nas mãos é absolutamente delicioso. Pedal da embreagem duro, câmbio sendo manejado antes de ligar o carro, espelhos ajustados…hora de partir.
Gol GTS perua!
A chave é acionada para acordar o motor e ele responde com um suave estrondo, uma voz inesperadamente encorpada que denuncia que seu sistema de escapamento não é exatamente original, mas sim um conjunto em 4×1 que vai te atazanar o tempo todo para acelerar mais. Vamos saindo do posto e pegando imediatamente a estrada, tentando se acostumar com o banco dianteiro estreito, buscando microcorreções aqui e acolá na sua distância e inclinação, tentando melhorar a má condição ergonômica. O motor desde o começo, mesmo puxando leve, parece irrequieto não apenas pela nova voz que ganhou nessa Parati, mas ele realmente é mais vivo que o AP 2000 injetado do Santana da última matéria, ele está disposto a crescer de giros com mais vontade e ímpeto, e se é isso que ele quer fazer, é o que vamos dar a ele.
A caixa já está quente e temos muitos quilômetros de estrada quase livre para andar explorando boa parte do que o carro é capaz. O “H” básico do câmbio é uma delícia como já é regra nesses Volkswagens, a ele se junta à quinta marcha que também pode ser feita em ato contínuo (rápido) para a frente saindo da quarta, o desvio até seu engate é curto, mesmo com os giros bem elevados. Em 90% do tempo ela vai aceitar qualquer tipo de troca, só que as vezes é preciso pausa brevíssima em ponto morto, e depois a alavanca sendo conduzida para a quinta. Provavelmente falha minha, mas acredito que uma alavanca de GTi ou de Santana melhoraria esse detalhe, já que o pomo original é menos anatômico.
O dueto motor e caixa PV (curta) trabalha em perfeita harmonia, as marchas se sucedem o e o giro cai pouco, os 97 cv originais — número que hoje parece inofensivo como um filhote de Coala — empurram de verdade. Mesmo com 26 anos nas costas e com aerodinâmica de relíquia soviética, o motor está o tempo todo cheio e à vontade, promovendo ultrapassagens sólidas e mantendo velocidades indicadas de 120 km/h com enorme facilidade. Claro que o consumo não vai ser “moderno” a esse ritmo, mas o desempenho para a maioria das situações é: basta baixar de quinta marcha para quarta, ligar o pisca da esquerda e ultrapassar.
A maravilhosa sensação táctil de puxar a alavanca para baixo ao mesmo tempo que o motor “invade” a cabine é absolutamente viciante, de ficar sorrindo sozinho.
O trânsito aperta, a velocidade cai, toquinho no pedal de metal da direita e a terceira entrando como faca quente na manteiga, vamos pedir potência de novo e o motor vai cantando com vigor até uns 5 mil giros nas trocas subsequentes, exigir mais do que isso é inócuo pois já vieram quase todos os cavalos e ele começa a ficar áspero dali em diante. A alimentação é via carburador eletrônico, e o motor tranqueia um pouco quando se solta o pé com menos cuidado, diferente do comportamento do AP com injeção. Exigindo um pouco mais numa reta em suave declive, esticamos a quinta marcha até perto dos 5.200/5.300 rpm, o que correspondeu a 170 km/h indicados no velocímetro, não muito longe dos 175 km/h reais que as versões a álcool conseguiam no plano. O ruído aerodinâmico é alto e parece que estamos a uma velocidade maior, melhor diminuir o ritmo, o motor já provou que está plenamente em forma.
Motor alerta, caixa rápida, aquele painel na tua frente, som ardido de Gol GTS, como então não andar como se de fato estivesse no Gol esportivo? Motor 1.8S é o mesmo, relação de marchas também, rodas e pneus a mesma coisa, apenas os bancos são bem mais macios e a alavanca de câmbio é diferente. A direção é hidráulica e por isso exige menos esterçamento na cidade e na estrada, é excelente em tráfego urbano, mas na rodovia a gente percebe que ela continua leve mesmo em alta velocidade, algo que foi apontado nos testes do Gol GTi quadrado quando equipado com esse sistema. Mesmo que a Parati ande menos que o Gol e que o perfil do seu público seja mais sossegado, é evidente que a direção hidráulica dessa época merece um pouco mais de atenção para andar rápido.
Em trajeto ligeiramente mais sinuoso, nenhuma grande dificuldade já que as curvas eram longas em sua maioria, e as tomamos com cuidado sem forçar realmente o carro, que adernava pouco e seguia a linha que eu decidia sem qualquer desvio. Mesmo não andando no limite, percebe-se que o nível de aderência de uma Parati GLS com pneus modernos e rodas 14 é bem apreciável, como bem reportavam os testes das revistas. Nessa parte da história, quase que como por encanto, a gente se acostuma e parece que se encaixa de forma mais natural no banco, coisas de carro antigo, que merecem tempo e aclimatação do motorista.
Enfim, tudo de bom, não é? Confirmou os pergaminhos elogiosos e tal, hein? Bem, nem tudo são flores mesmo contextualizando a época do carro; a resposta dos freios é francamente pobre, o pedal é borrachudo e parece quase flexionar nas solicitações (apenas sensação) de frenagem, e em nenhum momento abusamos do sistema para interromper altas velocidades, eram apenas situações normais de trânsito urbano e rodoviário – os freios ventilados fazem uma falta enorme nessa peruinha, pênalti sério para um carro que foi planejado para levar gente e carga a boas velocidades médias.
Por que quadrado mágico?
Dirigir um carro antigo é adentrar (ou retornar) a um ecossistema repleto de sensações. Pode ser como voltar para casa para alguns motoristas mais vividos, ou entrar num novo parque de diversão para os neófitos. E nem sempre temos boas lembranças de casa ou um parque novo é garantia de boa diversão. Gostar e curtir de carro antigo decididamente não é algo que funciona para todos.
Seja boa ou seja ruim a experiência, uma coisa eu posso garantir: ela nunca será chata, isso não! Eu não esperava ter as dificuldades que eu encontrei inicialmente ao testar esse belo carro — que nem antigo ainda é — praticamente uma criança em relação ao antigomobilismo de fato. Freios ruins, algum cheiro de gasolina no interior, a lenta um pouco oscilante, pedal da embreagem que fica bom só na estrada, primeira e segunda um pouquinho dura na cidade, etc.
Ela exige coisas que muitos motoristas de hoje não tolerariam, mas para os que entendem que esses defeitos eram características do estágio tecnológico da época do carro, a esses ela devolve em troca um monte de coisas legais: conexão sem filtros com a estrada, comandos francos, um motor melhorado para uso esportivo que vibra e ronca maravilhosamente, nada de eletrônica e telinhas para te tirar a atenção do volante. Todos os anos que essa Parati GLS acumula em si, parece que foram retirados das nossas costas (as minhas e a do Jeison), como se o carro fosse uma mistura portátil de máquina do tempo com Fonte da Juventude… Como ser mais mágico do que isso?
“Fórmula Finesse”
Bento Gonçalves, RS
Jeison Paim
Farroupilha, RS