Sempre digo que carros e bom senso são duas das minhas manias — números talvez sejam a terceira, mas a verdade é que minha segunda mania costuma ser cruelmente solapada por pessoas que não tem nada de bom senso e sequer sabem o que isto venha a ser. Quando se junta o desrespeito às duas coisas, então, tenho vontade de cortar meus pulsos com um biscoito champagne.
Na semana passada, o leitor Fábio R. me chamou a atenção para um fato que é para lá de comum. Minhas amadas estatísticas são massacradas a cada feriado. No desta semana não foi diferente. Assim como temos (e teremos) o inefável “está tudo pronto” logo antes do próximo carnaval, ao fim de cada feriado temos o não menos inefável balanço de acidentes de trânsito nas estradas. Os repórteres soltam aqueles números sobre acidentes, mortos e feridos nas mais diversas estradas e os comparam com os do ano anterior e, geralmente, mostram estatísticas que dizem que “este foi o pior feriado da Proclamação da República dos últimos ‘x’ anos em número de mortes”, por exemplo.
Sempre fui favorável à segurança no trânsito e sempre serei. Gostaria que tivéssemos zero acidentes, mas nem por isso vamos violentar a matemática ou as estatísticas, não? (foto de abertura). Que tal usar um pouco de bom senso e dar aos coitados dos telespectadores ou leitores algum contexto? Como bem disse o leitor Fábio R., devemos considerar as diferenças entre os períodos comparados. Se no feriado de 2020 naquela mesma estrada havia sol e este ano chuva ou neblina é óbvio que as condições são diferentes e, óbvio, piores em termos de dirigibilidade.
Para quem, como eu, gosta de Fórmula 1, é como comparar uma volta realizada num mesmo circuito com e sem chuva. Dá para comparar? Claro que não. Os tempos serão muito, muito diferentes e é bem provável, para não dizer certo, que o número de acidentes ou quase acidentes (rodadas, saídas de pista) sejam bem mais numerosos sob chuva. Nem os comentaristas esportivos fazem essa comparação — ao contrário, sempre destacam essa diferença, assim como qualquer fã do esporte medianamente informado. As equipes, ao menor sinal de nuvens carregadas, fazem questão de colocar seus carros na pista para fazer seus melhores tempos. E pergunto: se nesse caso é tão óbvio, por que não nos questionamos quando isso não é feito nos noticiários de trânsito?
Estudei Exatas no então Colegial e até hoje me lembro que para definir problemas que envolvem as variações dos gases temos que estabelecer as condições normais de temperatura e pressão. Sem que tenhamos uma base comum para eles, não podemos definir ou estudar o volume de substâncias gasosas diferentes. Mais uma vez, parece tão óbvio, não?
No caso do trânsito, não há como fazer como no golfe, em que se calcula um handicap para igualar os jogadores. Se no ano passado o tempo estava bom e este ano choveu, simplesmente não dá para comparar volume de acidentes de um ano para o outro, mesmo que se faça a observação. No máximo, dar os dois números, fazendo a ressalva, mas é meio inútil.
Tem mais: algumas estradas sofrem alterações ao longo do tempo. Como comparar volume de acidentes de uma estrada que tinha uma única interligação e recebia veículos de apenas uma via em 2019, mas que desde então foi interligada a outras quatro estradas e passou a receber mais trânsito desde então? É justo comparar acidentes em 2019, quando circulavam por lá sei lá, 500 veículos por mês com 2021 quando trafegam pelo mesmo caminho 2.500? parece óbvio que não. É como comparar maçãs com carneiros. Absolutamente nada, nada a ver.
Atrevo-me (ênclise bem, bem simples, mas, vá lá) a dizer que isso é preguiça de jornalista que acha mais fácil pegar apenas os números do que analisar mais a fundo as variáveis. Afinal, pesquisar algo além de simples números dá trabalho. Demanda tempo e conhecimento e, claro, estraga a pauta, pois ela não se sustenta – e então o colega teria de buscar algum outro assunto o que, convenhamos novamente, dá trabalho, enquanto o outro tema é óbvio e já está mastigadinho, ou, como se diz por aí, como bola quicando esperando para ser chutada. Criar uma jogada dá mais trabalho.
Há ainda outros componentes que nunca são levados em consideração neste tipo de, vá lá, informação. E aqui não me refiro apenas a acidentes, mas também à informação sobre lentidão. Muitas vezes são realizadas obras de manutenção e o trânsito é desviado de uma via para outra que, mais uma vez, pode sofrer com mais acidentes pelo aumento de veículos em circulação, assim como lentidão — apenas questão de estatística. Nunca, nunquinha, ouvi esse tipo de ressalva, embora eu mesma já tenha sido vítima desse tipo de problema. Alguns anos atrás, voltando de um réveillon em Angra dos Reis, não conseguimos voltar por Cunha porque um ônibus havia capotado e fechado totalmente a estrada nos dois sentidos, durante não lembro quantas horas. Fomos desviados para o caminho via litoral e depois subimos a serra até Taubaté. Nós e sei lá quantos veículos — na verdade, todos. Ficamos todos juntos, os que já vinham por esse caminho mais os que pretendíamos subir a serra por Cunha. Obviamente, durante muitas horas o volume de acidentes pelo caminho Ubatuba-Mogi-Taubaté deve ter aumentado, assim como o volume de carros com problemas. Passamos por dezenas deles com o capô aberto esperando esfriar — a maioria carros velhos no sentido da palavra, não antigos, mas velhos, sem manutenção, mesmo. No caso de estradas com algum sistema de guincho, seja operado pelas concessionárias privadas, seja pelo sistema público, quando se compara número de veículos removidos também não se faz essa ressalva e o público fica com a impressão de que houve um aumento na falta de manutenção de veículos (e aí vem aquelas pautas sobre a queda do poder de compra dos brasileiros, aumento da pobreza, aumento dos custos de manutenção de carros, etc.) quando, na verdade, o que houve foi um aumento na quantidade de veículos naquela via. Resumindo nosso réveillon daquele ano: levamos seis horas para fazer o caminho São Paulo-Angra dos Reis na ida e onze horas Angra dos Reis-São Paulo na volta. Pelo que me lembro, nenhuma das duas cidades mudou de lugar naquele ano nem as placas tectônicas se movimentaram. Mas foi como se tivéssemos saído de Pangéia e, na volta, tivéssemos que cruzar a Gondwana.
Mudando de assunto: não estive entre os felizardos que foram ao autódromo assistir ao GP do Brasil deste ano. Esses realmente amortizaram o ingresso, pois tiveram o privilégio de assistir uma classificação realmente emocionante, uma sprint race idem e uma corrida fantástica. Pessoalmente, não gosto do critério de sprint race para estabelecer as posições de largada da corrida, acho que deveria ter pontuação reduzida, mas critérios de corrida, mesmo. Também não acho justo que a punição a Hamilton na classificação tenha permitido que ele trocasse componentes do motor na sprint race, justamente na corrida que define as posições na corrida verdadeira. Como a regra diz que a punição na classificação é cumprida na sprint race (não concordo, mas, vá lá) pelo menos não deveria ser permitida a troca do motor. Se não é como o sujeito tomar uma penalidade de 5 segundos e cumprir no pit stop ao mesmo tempo que troca os pneus. Não, não é? Tem que ficar parado, sem mexer no carro durante 5 segundos e só depois troca os pneus. Ou, numa outra analogia, é como alguém cometer um crime e ser condenado a 5 anos de prisão, cometer outro crime e ser condenado a 3 e em vez de somar e cumprir 8 anos, descontar uma pena da outra e cumprir apenas 5. Mas há tempos acho que na F-1 atual tem regras demais, está tudo muito engessado — mas se é para fazer assim, que seja um sistema justo. De qualquer forma, teremos fortes emoções até o final do campeonato. Aliás, este tem sido o melhor ano em muitos.
NG