Sabem aquela frase “puxei uma pena e veio uma galinha?” Pois é, como eu disse na semana passada, puxei uma pena e veio uma fantasia de Clóvis Bornay inteira. Abri uma caixa de Pandora ao começar a escrever sobre carros argentinos, pois um assunto levou a outro, que levou a outro, que levou a outro…
Preciso limitar-me a um determinado número de palavras a cada coluna, sob pena de torturar demais meus leitores. Por isso faço como aquele sujeito que, ao saber que teria de cortar o rabo do cachorro ficou com pena do bichinho e decidiu cortar um pouquinho por dia, em vez de tudo de uma vez, para que ele não sofresse tanto. Eis que eu comecei a escrever várias colunas sobre assuntos encadeando um tema a outro e parecem não acabar nunca. Mas, juro, não tenho a intenção de torturar meus leitores, não. É que vão surgindo assim mesmo, encadeados.
Conforme prometido semana passada, hoje vou falar de uma tentativa de se produzir carros na Argentina. Claro que teve o Torino, da Industrias Kaiser Argentina e alguns outros modelos, mas este caso é de carros em série, mesmo. Não sei se nem mesmo na época chegaram a pensar tão alto, mas seria, mais ou menos, como pensar numa Ford ou Volkswagen argentina.
Esta é a história da Autoar (Automotores Argentinos) e já vai aí um spoiler. Não, não foi a única, mas foi a primeira fábrica argentina de veículos em série. E, outro dia, vou falar da Industrias Aeronáuticas y Mecánicas del Estado (IAME).
Tentarei ter alguma disciplina e por isso vamos a alguma ordem cronológica. Entremos num túnel do tempo e voltemos para as décadas de 1920 a 1950. Assim como muitas coisas da Argentina, e todo meu lado paterno, esta história também tem origem na Itália.
Piero Dusio era um jogador de futebol da Juventus, um bom meio de campo nos anos 1921-1922, mas sua curtíssima carreira acabou quando sofreu uma lesão irrecuperável no joelho. Empreendedor (e jovem, tinha somente 22 anos) abriu uma fábrica de roupas esportivas que em pouco tempo virou fábrica de uniformes militares. Tristemente, a Europa era um bom mercado para esses produtos naquela época. Enquanto a produção de roupas andava muito bem, pois Dusio abastecia o exército italiano com uniformes ao mesmo tempo em que vendia tecidos ao exército alemão, Dusio continuou como dirigente do Juventus e se aventurou pelas corridas de carros, autofinanciado pela própria empresa. Correu a Mille Miglia entre 1929 e 1938 e um de seus carros chegou a disputar uma corrida de Fórmula 1, em 1952, na Itália. Correram para ele pilotos como Tazio Nuvolari e Piero Taruffi e trabalharam no design de seus carros além dos próprios Porsche (Ferdinand e Ferry) e nomes como Giovanni Savonuzzi.
O grupo cresceu, passou a se chamar Compagnia Industriale Sportiva Italia (Cisitalia) e unia, além da fábrica têxtil, uma cadeia de hotéis, a fábrica de equipamentos esportivos e até mesmo um banco. Em pouco tempo, a Cisitalia virou a patrocinadora das incursões de Dusio no automobilismo e depois a financiadora da fábrica de carros de Dusio na Itália. De sua fábrica, entre 1944 e 1947, saiu o Cisitalia 202, um cupê diferenciado — a carroceria era de alumínio, bem aerodinâmica e totalmente artesanal, Pela forma de produção, todo o processo era muito demorado e caro. Foram feitas somente 300 unidades entre 1947 e 1952 e quase levaram a Cisitalia à falência.
Vou discorrer muito rapidamente sobre a Argentina naquela época. O presidente era Juan Domingo Perón, e ele queria implementar uma indústria automobilística nacional no país — entre outros, muitos outros setores que ele achava que deveriam ser totalmente argentinos. Não vou discorrer aqui sobre as questões políticas do país, pois isso demandaria alguns terabytes de espaço. Digo apenas que em 1930 houve o primeiro golpe militar, que derrubou o presidente Hipólito Yrigoyen, do Partido Radical (apesar do nome é um partido moderado e de centro), e colocou em seu lugar o general José Fèlix Uriburu. De lá para cá já perdi a conta de quantos presidentes caíram por golpes (não processos legais como impeachments, mas golpes propriamente ditos), mas digo que apenas cinco presidentes democraticamente eleitos conseguiram terminar seus mandatos — e apenas o último, Mauricio Macri, foi o único não peronista a conseguir tal façanha.
Um dos participantes daquele golpe de 1930 foi o então capitão Perón, que ainda participaria dos golpes de 1943 e 1945 e que foi ministro entre 1943 e 1945 (duas pastas, Guerra e Trabalho) até ser eleito presidente em 1946. Tem gente que diz que o Brasil não é para amadores, mas política argentina é mais complicada que física quântica em gótico.
Depois deste parêntese, vamos relembrar o que escrevi no outro parágrafo, que Perón estava interessado em implementar uma sólida indústria automobilística no país.
Eis que aqui se junta a sorte ao momento para o nascimento da Autoar. Perón queria impulsionar a fabricação local de carros e autopeças e, ao mesmo tempo, criar um time argentino de pilotos e carros para competir internacionalmente — lembrem-se, caros leitores, do que eu já disse que na Argentina o sucesso de uma marca nas pistas de corrida acaba se refletindo em vendas de veículos nas ruas. Isso sem falar, novamente, na questão do autoentusiasmo argentino, já tantas vezes mencionado aqui.
Em janeiro de 1948, o piloto da categoria Mecánica Nacional (espécie de Fórmula 1 argentina, sobre a qual já falei aqui), Clemar Bucci, foi enviado à Europa pelo governo argentino para contatar fábricas e equipes e atraí-los para a Argentina. Quis o acaso que ele encontrasse quem? Dusio, é claro. O italiano convidou o piloto argentino a conhecer as unidades da Cisitalia e o modelo Grand Prix, desenhado por Ferdinand Porsche. Bucci viu nele o monoposto ideal para iniciar um time argentino de competição e a história concluiu com a instalação de Dusio e de sua empresa na Argentina. Por uma coincidência do destino (ou talvez não), em 1953 Bucci bate o recorde sul-americano de velocidade justamente com o Cisitalia-Porsche Tipo 360 Grand Prix de 12 cilindros — e até hoje é o único piloto do mundo a ter guiado esse carro
O monoposto de Dusio era um modelo encomendado a Ferdinand Porsche em 1946 por uma fortuna — dinheiro que teria sido utilizado pelo filho de Porsche para liberar seu pai da prisão francesa onde estava praticamente refém das autoridades, acusado como criminoso de guerra. O dinheiro foi dado como um adiantamento para um projeto de Fórmula 1 realmente inovador, mas terrivelmente caro. Dusio não se preocupava muito com essa parte das questões, mas em pouco tempo percebeu que não bastava ter o protótipo para competir — seriam necessários mais cinco carros para poder participar. Mas Dusio já havia empregado todos os recursos no protótipo e ficou no meio do caminho.
A mudança para a Argentina foi, pelo menos por um tempo, um acordo interessante para os dois lados. A empresa italiana conseguiu se capitalizar com os financiamentos generosos concedidos pelo governo argentino, abriu um novo mercado na América Latina e o governo de Perón recebeu uma fábrica de automóveis sem precisar desenvolvê-la desde o zero, justamente num momento em que os investidores estrangeiros relutavam em abrir fábricas de veículos na Argentina.
O governo peronista editou o Decreto 18.996 do Poder Executivo Nacional e no dia 10 de agosto de 1949 a indústria automobilística foi declarada de vital importância para o desenvolvimento econômico nacional. Pelo decreto, a recém-criada Autoar estava autorizada a importar livremente maquinário, materiais e até mesmo instalações necessárias para a construção de uma unidade industrial para a produção de tratores e automóveis.
A sede da empresa foi em Buenos Aires, capital federal, na rua Charcas. Também havia sido adquirido um terreno de 2,7 milhões de metros quadrados em Quilmes, na grande Buenos Aires, para a construção da fábrica, dos quais 755 mil seriam para a fábrica em si e o restante para fazer uma minicidade para os operários — que estimava-se seriam 5.000 para uma produção diária de 50 carros. Na época, os folhetos mostravam o que seria a linha de montagem: vários modelos de utilitários que incluíam uma station wagon (foto abaixo), um furgão e uma picape, todos com motor de 4 cilindros e 60 cv, além de modelos de luxo, como um sedã de 6 cilindros e motor de 2.000 cm³, e uma versão cabriolé.
Mas entre os planos e a realidade havia um longo caminho. No final, a fábrica foi construída na grande Buenos Aires, mas no distrito do Tigre, muito menor, com menor capacidade de produção do que havia sido anunciado e sem a tal cidade para os operários. As motorizações disponíveis eram apenas o motor Willys de 2.199 cm³ e 65 cv, Fiat 1.900-cm³ de 71 cv e o V-8 do Simca Vedette de 2.351 cm³ e 85 cv.
O primeiro modelo foi uma rural (perua) de carroceria de aço desenhada por Aldo Brovarone e montada sobre um chassis desenhado por engenheiros da Porsche. No final dos anos 1950 foi lançado o Micropanorámico e alguns derivados dele.
E vamos a um novo parêntese. Brovarone, de quem falei muito brevemente na semana passada, era um designer italiano extremamente talentoso que depois de ficar preso num campo de concentração alemão na Polônia ocupada durante a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para a Argentina onde acabou trabalhando na Autoar. De volta para a Itália, foi para a Pininfarina onde trabalhou no projeto do Peugeot 504 e, depois, nos icônicos Dino 206 GT e o Lancia Gamma Coupé. Faleceu em outubro do ano passado, na Itália.
Entre os modelos que seriam fabricados pela Cisitalia Argentina estava uma linha de sedãs e peruas a partir do Fiat 1900. A Cisitalia, dessa forma, passou a ter uma filial na Argentina. Reza a lenda (como já disse adoro as fofocas e os bastidores destas histórias) que também estava prevista a transferência para a Argentina do projeto de carro de grand prix (ainda não existia a Fórmula 1) que Dusio mantinha na Itália como uma forma de fugir dos furiosos credores que o perseguiam na Itália. Durante muito tempo, o italiano tentou convencer o presidente argentino a investir no projeto de carros de competição, mas Perón não se interessou e o carro acabou voltando para as mãos de seus criadores. Atualmente ele está no museu Porsche em Stuttgart, como Porsche Tipo 360 Cisitalia.
Em 1949 nasceu a Autoar e em 1951 Cisitalia Argentina. As tarefas estavam bem divididas — enquanto a Autoar fabricava carros em série e utilitários, como os Fiat 1900, a Cisitalia fazia maquinário industrial e agrícola ao mesmo tempo em que tentava montar modelos de carros esporte — nada realmente original, mas sim versões de carros Fiat, como o Fiat 750 e o 850 Abarth, modelos esportivos pequenos que tentavam dar ao dono um gostinho de carro esporte nos duros tempos pós-guerra.
Mas os números de Autoar foram deveras raquíticos. Entre 1950 e 1953 todos os modelos feitos a partir do Fiat 1900 não passaram de 1.500 unidades. O utilitário Micropanorámico não chegou a 1.000 unidades produzidas entre 1958 e 1962. Tentou-se, então, montar os carros alemães NSU da então Alemanha Ocidental para produzir localmente o pequeno NSU Prinz a partir de 1955, mas foi outro fiasco.
Na outra empresa, a Cisitalia Argentina, as coisas não andavam muito melhores: entre 1961 e 1962 saíram de lá exatas 171 unidades de carros esportivos, embora os projetos fossem muitíssimo mais ambiciosos. Em 1960 o governo havia aprovado a Resolução 164/60 que permitiria uma produção inicial de 1.000 unidades em 1962; 1.600 em 1963 e 2.360 em 1964. Os modelos previstos eram os Cisitalia Coupê e o Spider, além de dois modelos utilitários, sempre com modelos derivados de Fiat.
A fábrica da Cisitalia Argentina ficava na localidade de Pacheco, na Grande Buenos Aires, onde há décadas estão instaladas as principais unidades de produção das fabricantes de veículos e autopeças argentinas. O prédio tinha 15.000 metros quadrados, dos quais 10.000 eram cobertos. Trabalhavam lá 250 pessoas, entre técnicos e operários e tanto as vendas quanto a assistência técnica eram feitas pela rede de concessionárias Fiat.
É fato que a Autoar e a Cisitalia foram duramente atingidas quando Perón foi derrubado do poder em 1955. Afinal, ele continuava sendo o principal patrocinador de todo o projeto da Autoar.
A partir de então, foi uma sucessão de problemas. Em 1962 o governo argentino cassou a licença de produção da Cisitalia Argentina por descumprimento do acordo devido ao baixo conteúdo nacional dos carros produzidos e, mais uma vez, fofoca da época, pela proximidade de Dusio com o presidente deposto. Um ano depois, em 1963, a Autoar faliu.
Na Europa, as coisas também não iam melhor e no mesmíssimo ano a empresa, que continuara funcionando com 70 operários para produzir carros esporte de luxo, fechou suas portas. Dusio continuou morando na Argentina até sua morte, em 1975, mas empreendendo em outro ramo totalmente diferente: o da construção civil.
Mudando de assunto: mais uma corrida de Fórmula 1 em que aconteceu de tudo, esta da Arábia Saudita. E, mais uma vez, muitas lambanças da direção de prova, como tem sido característica o ano inteiro. O regulamento tem sido interpretado a bel prazer dos dirigentes, talvez de somente um, não sei. Alguém já tinha ouvido o diretor de prova oferecer uma determinada posição de relargada às equipes? Essa para mim foi a mais insólita, porém não a única. Algumas regras são cobradas dos pilotos e seu descumprimento é punido, mas em outros casos simplesmente nada acontece. E isso tem corrido mesmo quando as normas são claríssimas e não permitiriam interpretações. Sei não, está parecendo o Brasil e a peculiar interpretação das leis que por vezes Congresso e Judiciário fazem.
NG