Ano novo, mas ainda com pauta pendente do ano passado… Bem, culpa da indústria automobilística argentina que é tão cheia de histórias interessantes.
Cá estou eu renovada depois de uns dias de descanso na praia que, dizem, ajuda a carregar as energias. Espero que funcione, pois estava realmente cansada. Como prometido, hoje vou falar do Rastrojero, um dos veículos argentinos que foi produzido durante mais tempo — e olha que falamos de um país que fabricou durante décadas carros como o Falcon…
O Rastrojero tem um lugar no coração e na memória dos argentinos, pois foi durante muitos anos sinônimo de veículo de carga confiável. Uma das lembranças que tenho da minha infância em Buenos Aires é a de ver esses veículos estramhos (o design não era lá grande coisa), parados na frente dos pequenos comércios do bairro onde fui criada, na charmosa Florida, em Vicente López e, especialmente, no da minha avó, em Munro. Era usado pelos típicos fornecedores pequenos e pelos comerciantes de bairro (foto de abertura).
O Rastrojero começou a ser fabricado no longínquo ano de 1952 pela IAME (Industrias Aeronáuticas y Mecánicas del Estado) sobre cuja história escrevi neste espaço, em duas semanas seguidas (primeira parte e segunda parte). O conceito era bem simples: uma cabine metálica de chapas perfiladas e moldadas e uma caçamba de madeira com carga útil de meia tonelada. A opção pela caçamba de madeira era prosaica: apenas para reduzir custos e encurtar o tempo de produção, mas depois de alguns anos foi lançada uma versão com caçamba metálica e com cabine dupla. O chassi era muitíssimo parecido com o do Ford 1937. Mais rudimentar e eficiente, impossível.
O veículo foi concebido pelo engenheiro Raúl Gómez e o primeiro protótipo foi construído em somente 87 dias. Gómez contava que muitas vezes dormiu na fábrica mesmo, geralmente no ambulatório, para ganhar tempo. É fato que, como muitos modelos saídos das linhas de montagem da IAME, tinha como base ou inspiração modelos pré-existentes num perfeito exemplo de lei de Lavoisier: na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
Assim como critiquei a falta de márquetchim para dar nome à empresa estatal de carros, acho realmente fofo o nome “Rastrojero”. Vou tentar explicar o que significa, mas a sonoridade para mim já seria suficiente para gostar do nome. “Rastrojo” é o resto de uma colheita que fica espalhado no solo e Gómez sugeriu esse nome porque queria transmitir a ideia de que este veículo seria forte o suficiente para andar por cima destes resíduos. Parece-me muito óbvio agora que ninguém jamais pensou em exportar este utilitário — ou certamente não com esse nome. Já pensaram um gringo falando “rastrojero”? Sempre achei difícil para qualquer um que não fosse nativo de língua espanhola juntar na mesma palavra o erre duplo (ou no início da palavra, já que o som é o mesmo) e o “j”. Me divirto quando ouço brasileiro dizer: “jarrón rojo” (vaso vermelho). Definitivamente, não é fácil e eu mesma tive dificuldades com essas letras até meus 5-6 anos.
Pois é, ano novo, velhos hábitos de entrar em eternas digressões. Mas vamos lá, Norinha, foco. Voltemos ao Rastrojero: ele foi produzido até 1979. As primeiras exatas 2.361 unidades usavam um motor Willys a gasolina derivado dos 2.500 tratores Empire importados pelo IAPI (Instituto Argentino de Promoción del Intercambio) e que jamais funcionaram no país. Tanto que deles foram extraídas outras peças, utilizadas no Rastrojero. Com o aumento da demanda — decorrente do preço proporcionalmente baixo, custo de manutenção idem e da ótima aceitação por parte do público — em 1955 o motor foi substituído por um a diesel — combustível larguissimamente aceito na Argentina desde sempre.
Primeiro se tentou usar nos protótipos motores Diesel Fiat e Perkins, mas os resultados foram um fiasco e por isso optou-se por um motor Borgward,, alemão, de quatro cilindros em linha, 1.758 cm³ e potência de 42 cv a 3.400 rpm. Lembrem-se, caros eleitores, que na década de 1950 um dos planos do então presidente Juan Domingo Perón era fazer todo tipo de indústria nacional e para abastecer a IAME destes motores não foi diferente: foi construída a primeira fábrica argentina de motores Diesel no município de Isidro Casanova, na Grande Buenos Aires.
A fábrica da Borgward Argentina estava instalada num terreno de 16 hectares, com área construída de 25.000 metros quadrados e além de motores saíam de lá diversos componentes como virabrequins, árvores de comando de válvulas e cabeçotes de motor, entre outros. A partir de 1971, graças a um acordo com a Peugeot francesa, começaram a ser produzidos motores Diesel leves para a fabricante francesa, além de motores Indenor de 4 cilindros em linha de 62 cv, um motor Indenor de 6 cilindros em linha de 100 cv e um motor Diesel Indenor de 70 cv com quatro cilindros em linha.
O Rastrojero foi um sucesso de vendas durante todo o período em que foi produzido. No total, foram produzidas 60.000 unidades. O sucesso foi tão grande que duas décadas depois de seu lançamento, exatamente em 1975, de cada 10 picapes a diesel vendidas na Argentina, 8 eram Rastrojeros.
O utilitário teve um irmão: a Gauchita, também originária do desmonte dos tratores Empire. A Gauchita era uma station wagon que usava motor Diesel D4M18 Borgward e era parecida com a produzida pela americana Willys.
Além do utilitário tipo picape, foram produzidas outras versões do Rastrojero como um caminhão leve, fabricado de 1969 a 1979 com a carroceria do Borgward B611, um ônibus usado principalmente para transporte de escolares, e um sedã 4-portas para uso como táxi.
Além da robustez, o sucesso do veículo se deveu à enorme facilidade de financiamentos que acompanhava o Rastrojero. Até hoje encontram-se alguns Rastrojeros circulando por aí, especialmente fazendo entregas em bairros. Não é algo muito comum, mas não é como ver um unicórnio, mesmo depois de 70 anos de seu lançamento. Houve algumas tentativas de relançar o modelo, inclusive uma há uns sete anos e que previa um Rastrojero elétrico, o Rastrojero Amperion. Mas, até agora, nenhum vingou e teremos de viver com este valente utilitário apenas na memória ou, de vez em quando, com a felicidade de encontrar um por aí.
Mudando de assunto: numa parada que fizemos na volta do réveillon em Angra dos Reis para abastecer e tomar um café, um certo motorista (um tanto desatento, é verdade) fez o favor de obrigar meu marido a entrar pela porta do carona. Pois é, nem todo mundo consegue fazer caber um carro de passeio numa vaga enorme, mesmo tendo tido o tempo todo o seu lado esquerdo totalmente livre. Querem me fazer começar o ano de mau humor…
NG