Recentemente escrevi neste espaço sobre os carros produzidos pela IAME (Industrias Aeronáuticas y Mecánicas del Estado) e mencionei o motor Taravella. Não entrei em maiores detalhes porque, para não variar, esse não era o cerne da coluna mas, atendendo ao pedido do leitor “Fat Jack”, vamos aqui a mais detalhes desse motor.
Claro que estamos falando de um desenvolvimento da década de 1950, mas ele era extremamente promissor e, mais uma vez, vale o registro de como a indústria automobilística argentina fez coisas realmente notáveis em décadas passadas. Sem patriotada, vamos a mais detalhes desta inovação.
Ambrosio Luis Taravella é talvez mais conhecido do público em geral por dar nome ao Aeroporto Internacional de Córdoba, a província argentina onde, por diversos motivos, acabou se concentrando boa parte da produção de veículos e autopeças do país.
Então, vamos primeiro a um pouco de contexto: Taravella nasceu em 19 de abril de 1893 na província de Buenos Aires, na cidade de Saladillo (uns 180 quilômetros a sudoeste da capital Buenos Aires ou Cidade Autônoma de Buenos Aires, CABA). Era engenheiro aeronáutico, formado pela Escola Superior Nacional de Aeronáutica e Construções Mecânicas de Paris. Começou sua vida profissional trabalhando como mecânico, aos 20 anos, na incipiente Escola de Aviação Militar. Em pouco tempo chegou a Chefe da Oficina de Reparos e Manutenção de aviões da Escola. OK, acabou o momento LinkedIn.
Como sói acontecer, seu destino teve um toque de acaso. Em 1911, 11 anos antes de se formar engenheiro aeronáutico, Taravella encontrou o famoso aviador argentino Jorge Newberry, que, na época, era o presidente do Aero Club Argentino. Ambos tiveram uma longa conversa que parece ter selado a vocação de Taravella. E vamos à primeira digressão: sim, se o nome Jorge Newberry soa familiar é porque é o nome do aeroporto doméstico de Buenos Aires, também conhecido como Aeroparque e que fica no lindo bairro de Palermo, às margens do rio da Prata. Newberry é considerado o pioneiro da aeronáutica argentina. E mais um momento cultural: Newberry, filho de um americano e de uma argentina, fez parte de seus estudos nos EUA. Na faculdade de engenharia elétrica foi aluno de Thomas Edison e foi, desde 1900 até seu falecimento, executivo da empresa de iluminação da prefeitura de Buenos Aires.
Voltemos, então, a Taravella. Ele sempre foi considerado um excelente projetista de aviões e de motores a combustão. Em 1953, época em que Juan Domingo Perón era o presidente da República, Taravella apresentou à diretoria da IAME o projeto de um motor de combustão interna arrefecido a ar. O objetivo era substituir diversos tipos de motores por uma única família de motores de quatro tempos — leves para a aviação, semipesados para a indústria automobilística e pesados para a indústria em geral. A gama era bastante ampla e abrangia diversas potências, de acordo com as necessidades.
O projeto foi aprovado com a condição de que todos os modelos fossem integralmente nacionais — vamos lembrar, novamente, do plano de Perón de ter empresas que produzissem itens totalmente argentinos, como parte de uma política industrial.
O bloco do motor estava construído em semiblocos de dois cilindros, o que justamente permitia essa variedade, num autêntico conceito de modularidade com diversas cilindradas e potências de acordo com a configuração utilizada.
Diferentemente de outros motores semelhantes, o desenvolvido por Taravella tinha o arrefecimento a ar forçado mediante uma turbina axial, complementado pelo óleo lubrificante por meio de um radiador dedicado. A solução não é novidade, foi usada no checoslovaco Tatra T87, que tinha motor traseiro V-8 de 2,9 litros.
Foram então construídos dois motores V-8 a 90º para testes, ambos em dois blocos de 4 cilindros. Os cilindros tinham 75 mm de diâmetro com curso dos pistões de 80 mm (2.827 cm³), com taxa de compressão 7:1. A alimentação era por quatro carburadores duplos Solex 30 AAI e a ignição usava distribuidor Mallory de dois platinados, e velas Champion
No dia 7 de abril de 1954 foi colocado em funcionamento o primeiro motor V-8 de Taravella. O fato aconteceu no Laboratório de Testes de Motores do Instituto Aerotécnico, do IAME. Ele foi testado durante 50 horas e entregava 116, cv a 4.300 rpm. Um segundo motor, com diâmetro dos cilindros de 77 mm (2.980 cm³) e taxa de compressão de 7,5:1, produziu 120 cv a 4.450 rpm e foi instalado no Institec V8 GT, que foi apresentado na 42ª edição do Salão do Automóvel de Paris em agosto de 1955. Também foi instalado numa série especial, o Justicialista Gran Sport V8 Gran Turismo 1955.
No Institec V-8 GT o motor era dianteiro. A tração era traseira, combinada com suspensão De Dion e feixe de molas transversal. A suspensão dianteira independente era por triângulos superpostos com mola helicoidal e amortecedor telescópico. O desenho da carroceria também teve fortes influências de Taravella e uma certa influência do design italiano como um todo, algo muito comum na época. Não se sabe ao certo o que aconteceu com esse carro, mas o fato é que ele desapareceu. Há versões de que com o golpe de 1955 ele teria ficado na França e outras que dizem que o carro teria voltado para a Argentina, mas se perdeu.
Algum dia vou pesquisar por que tantos bons engenheiros e mecânicos argentinos desenvolveram tantos motores V-8. Não fiz as contas, mas suspeito que seja o queridinho de muitos deles — bem, é um dos meus queridinhos, devo reconhecer.
Um segundo carro recebeu o motor V-8, o Justicialista Gran Sport V-8. Era um modelo do tipo roadster de dois lugares. Como o motor era maior do que o Porsche boxer de 4 cilindros que equipava os veículos de série, foi feita uma mudança no compartimento do motor para que coubesse o 8- cilindros. Entre as, digamos, peculiaridades do carro estava o fato de que ele tinha apenas uma porta, e do lado direito. O para-brisa era dividido e o carro não tinha teto ou capota. Sei lá, até hoje acho todo o design esquisito .
Em 1955, com a derrubada de Perón do governo, fica suspenso o projeto do motor modular V-8 de Taravella e, em pouco tempo, todos os veículos da IAME são afetados.
Taravella morreu na cidade de Córdoba no dia 3 de março de 1988, aos 95 anos e continua sendo um ícone entre os apreciadores da aeronáutica e dos motores.
Mudando de assunto: momento ternurinha e puro autoentusiasmo. O tricampeão Nélson Piquet com sua netinha, Penélope.
NG