Bem, meus caros leitores. Aparentemente estou me convertendo em correspondente para assuntos automobilísticos argentinos dentro do AUTOentusiastas, mesmo sem sair de São Paulo. Acho que estou inaugurando uma modalidade de correspondente sui generis, diga-se. Talvez algo próprio de tempos de pandemia e de restrição de movimentação. Correspondente que não sai do lugar. Bom, podemos culpar o “novo normal” por isto, não?
Assim, para não variar, volto ao meu tema mais recorrente nas últimas semanas e jogo uma luz, uma lente de aumento talvez, num caso que sempre achei muito peculiar: a invenção de um carro-conceito argentino, com propulsão por hélice (foto de abertura). Mas era um carro, mesmo, terrestre, ao contrário de outros protótipos que voavam.
Sim, algo que poderia vir diretamente de um episódio dos Jetsons, mas, novamente, uma ideia avançada que tem mais de meio século. Não quero ser saudosista, até mesmo porque não vivi essa época, mas vamos convir que a década de 1950 foi pródiga em ideias originais no automobilismo argentino. Não necessariamente viáveis, mas originais, sem dúvida.
Vamos, então, sem mais delongas, ao Aerocar, um carro convencional exceto pelo seu sistema de propulsão a hélice. Não havia sistema de transmissão de potência às rodas, ou seja, nada de câmbio, cardã ou diferencial A ideia foi de Eugenio Grosovich e Gianfranco Bricci — sim, de novo dois argentinos, um descendente de italianos, e ambos da província de Córdoba. Como quase sempre.
O carro tinha um motor traseiro Chevrolet 6-cilindros de 90 cv A hélice de duas pás estava na parte posterior Seu diâmetro não era lá muito discreto, 1,75 metro A colocação da hélice era, ao contrário da maioria dos protótipos deste tipo, na parte posterior, como em alguns aviões. A hélice não tinha nenhum tipo de proteção, impensável num veículo para trafegar nas ruas A hélice era acionada mediante correias trapezoidais.
A simplificação evidente levou a um peso do veículo, de apenas pouco mais de 1.000 kg e que só tinha dois pedais, freio e acelerador, como se fosse um carro de câmbio automático. Na parte dianteira estavam o estepe e o tanque de combustível (foto frente).
A publicidade da época alardeava que era tão fácil de acionar o Aerocar que “até uma mulher poderia fazê-lo sem sujar as luvas”. Ok, leitores, lembrem-se de que estamos falando da década de 1950, portanto, nada de búlin nem acusações de machismo com esta escriba, certo?
Em termos construtivos, o Aerocar era o clássico de carroceria montada sobre chassi. A suspensão era independente nas quatro rodas e “muito macia”, segundo relatos da época. O carro tinha 4,3 metros de comprimento e entre-eixos de 2,46 metros. O Aerocar tinha diâmetro de curva pequeno (embora não informado qual) e podia transportar seis passageiros em seus dois bancos inteiriços. A carroceria de duas portas sem vidro traseiro era toda metálica e seu desenho visava eficiência aerodinâmica, lembrando muito o checoslovaco Tatra T77. O modelo atingia 160 km/h. (foto vários).
Obviamente, nem tudo era positivo. Os principais contras eram o ruído provocado pela hélice (reza a lenda que ao ser testado nas ruas de Buenos Aires voaram chapéus e saias) e a fraca aceleração. Não consegui achar os números, mas naquela época se criticava no modelo que ele somente adquiria algum ritmo depois de 60 km/h — algo que demorava uma eternidade para se atingir. O fato é que o Aerocar foi considerado muito, muito lento de arrancada, mesmo para a época e seria um dos motivos para inviabilizar seu uso urbano.
O desenvolvimento do carro-conceito, mais uma vez, se enreda na história com o projeto do então presidente Juan Domingo Perón de ter indústrias automobilísticas nacionais em vários segmentos. Por isso, Grosovich e Bricci partiram de algo já criado para reduzir custos e encurtar prazos. Eles pensavam que mesmo um carro-conceito deveria ter alguma viabilidade comercial. Pegaram, então, o chassi do sedã Justicialista (sobre o qual já falei em várias ocasiões nas últimas semanas).
Nos primeiros testes foi usado um motor aeronáutico arrefecido a ar, mas depois resolveram partir para o citado motor Chevrolet. Os idealizadores apresentaram o projeto a Perón em outubro de 1953, em Buenos Aires, que lhes deu o apoio do Instituto Aerotécnico que funcionava dentro das instalações da IAME (Indústrias Aeronáuticas e Mecânicas do Estado), sobre o qual já escrevi neste espaço na parte I e parte II.
O outro Aerocar
O modelo argentino era homônimo de um carro voador americano desenvolvido por Moulton Taylor em 1949. O primeiro Aerocar era um carro pequeno, só dois lugares, ao qual foi acrescentado um par de asas, uma cauda com leme e uma hélice na traseira, desmontáveis.
O motor traseiro era um 4-cilindros boxer aeronáutico Lycoming de 5,2 litros e 150 cv e tinha transmissão às rodas, com câmbio de três marchas, para o uso terrestre. Atingia 100 km/h em terra e 160 km/h no ar, com alcance de 480 quilômetros.
O Aerocar americano teve vida curta. Nos anos 1950 foram produzidos somente seis unidades devido a problemas com as licenças para conduzir o veículo — havia questões aeronáuticas e de solo.
Já o modelo argentino morreu de inanição, mesmo, como tantos outros projetos daquela época. Chegou a ter sido alvo matéria na revista americana Mechanix Illustrated e de ter despertado o interesse de um fabricante da Califórnia, cujo nome se perdeu na História. A Chrysler chegou a iniciar negociações para comprar a patente e os planos do projeto, mas os planos não progrediram.
A história do Aerocar argentino terminou em 1955, quando o projeto perdeu os subsídios governamentais quando, naquele ano, Perón foi derrubado da presidência por um golpe e quase todos seus projetos foram revistos, engavetados ou apenas descontinuados. O Aerocar nunca teve um real projeto de fabricação ou comercialização. Aparentemente, a ideia era mais provocar e instigar do que ser produzido em série. Confesso que não consegui descobrir o quanto foi investido no modelo, muito menos o que foi feito com os subsídios nos dois anos que se passaram entre seu anúncio/apresentação em outubro de 1953, e seu fim dois anos depois.
O único exemplar de Aerocar que chegou a ser construído foi transferido, ao que tudo indica, para uma fábrica na localidade de La Falda (na mesma província de Córdoba) onde foi retirada a hélice com o objetivo de transformá-lo num carro convencional. Mas ele acabou virando é sucata, mesmo.
Já li que a IAME era mais um parque de diversões para adultos do que uma empresa com produtos com um mínimo de viabilidade comercial. Não discordo disso, tendo em vista os resultados. Sou a favor da experimentação, mas acho que há limite para tudo, especialmente financeiro. Acho que o dinheiro dos contribuintes merece respeito. Mas, o Aerocar rendeu mais uma interessante coluna, não é mesmo?
Mudando de assunto: adoro Fórmula 1 e sigo vários sites e páginas sobre o assunto, mas cansei, cansei mesmo, de comentários sobre a última prova do ano, a atuação do Michael Masi, a tal “injustiça” do campeonato, etc., etc., etc. Todo mundo deu opinião sobre o tema —especialmente quem não entende do assunto. Prefiro esperar, caso haja, alguma novidade, diretamente da FIA, a esse respeito. Até lá, chega para mim.
NG