Novamente aqui estou atendendo uma solicitação de leitor, especificamente de Hernán Saavedra Herrera, um dos meus mais fiéis seguidores e certamente dos mais rápidos em ler e curtir minhas escrevinhações.
O assunto é ótimo: o Grande Prêmio Turismo Standard da Argentina de 1962 ou, mais exatamente, o VI Gran Prémio Internacional Standard Supermovil YPF. Prova de estrada duríssima, teve uma originalidade: foi vencida por uma dupla de mulheres: a piloto Ewy Rosqvist von Korff e a copiloto. também sueca, Ursula Wirth, nascida em 1934 e falecida em 2019. Elas venceram na classificação geral com um Mercedes-Benz 220 SE e chegaram incríveis 3 horas, 8 minutos e 25 segundos à frente do segundo colocado . A prova foi concluída por somente 43 carros dos 258 que efetivamente largaram (embora houvesse 286 inscritos, em sete diferentes categorias). Elas também quebraram o recorde de velocidade ao atingir a média de pouco mais de 126 km/h.
Ewy nasceu Ewy Jönsson no dia 3 de agosto de 1929 em Stora Herrestads, próximo de Ystad, na Suécia. A família era de agricultores e ela frequentou a escola agrícola, tornando-se assistente de veterinária. Nessa profissão, Ewy visitava até oito fazendas por dia, de carro. No total, ela percorria cerca de 200 quilômetros por dia, sempre por estradas de terra e a maioria pouco mais do que picadas, como conta no seu livro “Fahrt durch die Hölle” (Dirigindo pelo inferno, numa tradução livre). Preocupada em conduzir o mais rapidamente possível pelos caminhos para completar seus deslocamentos e conseguir dar conta de todas as saídas, ela começou a registrar os tempos que fazia com seu carro e a correr cada vez mais.
Em 1954, Ewy se casa com o engenheiro sueco Yngve Rosqvist e se muda para Skurup, onde continua trabalhando como assistente de veterinária. É nesta época que a vida dela começa a mudar, pois o marido e o sogro eram pilotos — o marido havia participado de algumas corridas e o sogro, apaixonado por ralis, já havia participado de muitas corridas de moto. A primeira experiência dela num rali foi justamente com eles dois, quando, em 1954, foi o “terceiro homem” — sim, não havia preocupação com gêneros naquela época e hoje talvez fosse apenas a “terceira pessoa”, mas vamos deixar esta questiúncula para lá — no Rali do Sol da Meia-Noite. No entanto, a sorte não estava do lado deles naquela ocasião e logo nos primeiros 1.000 quilômetros receberam uma penalização que os mandou para o final da tabela de classificação. Para piorar, na última etapa e já bem perto da bandeira quadriculada, um pneu do carro furou.
Ewy chegou a dirigir o carro em algumas etapas intermediárias da prova e apesar do resultado final ser desanimador, ela já havia sido mordida pela mosca dos ralis. Treinou bastante com o marido e em 1956 estreou como piloto ao lado de Majbritt Clausson, sua copiloto — novamente, no Rali do Sol da Meia-Noite. Novamente uma série de problemas mecânicos as fizeram abandonar. Daí em diante, houve participação em outras provas menores, com resultados variáveis. Quase sempre em dupla com a cunhada, Anita Rosqvist — uma não muito boa piloto, segundo Ewy, mas brilhante como copiloto. Tudo bancado por ela mesma.
Ewy ganhou quatro vezes o troféu feminino do Rali dos Mil Lagos, na Finlândia e outras provas em seu próprio país. Ganhou também o Campeonato Europeu em 1959, 1960 e 1961. Mas os problemas só aumentavam, pois ela não conseguia trabalhar cuidando de animais para ganhar para sustentar seu hobby, que era o mesmo do marido, e cada vez tirava mais folgas do seu trabalho para participar das provas. No campo pessoal, os mesmos problemas terminaram em divórcio.
Em 1960, Ewy assina contrato para dirigir pela Volvo e dois anos depois, a Mercedes-Benz compra seu contrato e ela começa a correr pela fábrica alemã, dando início à etapa internacional de sua carreira. Ganha o Rali do Sol da Meia-Noite em 1959, 1960, 1961 e 1962, posteriormente batizado como Rali da Suécia. Ewy também alcançou vitórias na classe 2,5 litros no Rali de Montecarlo e em Nürburgring.
Em junho de 1964, ela se casa com o diretor da Mercedes, Alexander von Korff, então chefe da divisão esportiva da fábrica.
Mas, vamos, então, à mais famosa vitória de Ewy Rosqvist. A dupla venceu todas as seis etapas da prova (o que até então era algo inédito), que tinham trechos entre 515,4 e 863,5 quilômetros; bateu o recorde de velocidade (era de 121 km/h e as suecas o elevaram para 126,87 km/h) e, como já disse, chegou mais de 3 horas à frente do segundo colocado. Outra originalidade: as suecas eram as únicas mulheres entre mais de duas centenas de carros pilotados por homens.
Em 1962, a Mercedes-Benz havia enviado quatro equipes para a Argentina, sob o comando de Karl Kling. No ano anterior, Manfred Schock e seu copiloto Manfred Schieck haviam vencido o Grande Prèmio pela Mercedes-Benz pela primeira vez O Mercedes-Benz Benz de Hans Herrmann e Rainer Günzler terminou em segundo lugar.
Além das duas suecas ao volante de um Mercedes 220 SE com o número 711 e placas S-LH 839, também estavam na competição Hermann Kühne e Manfred Schieck, também com um 220 SE (número 719); Eugen Böhringer e Peter Lang (número 731) e Carlos Menditegui e Augustin Linares (número 703), cada um num Mercedes série W112 300 SE. Juan Manuel Fangio, o piloto argentino de F-1 com Mercedes W196 em 1954 e 1955, também acompanhou a equipe alemã no Grande Prêmio de 1962.
A prova de estrada, de velocidade pura, tinha 4.626 km, pelo centro e norte da Argentina. A prova começava em Buenos Aires, seguia para Villa Carlos Paz, San Juan, Catamarca, Tucumán, Córdoba e de volta a Buenos Aires. Havia um dia de descanso ao final de cada etapa. Das quatro equipes Mercedes que participaram, somente a feminina conseguiu completar a prova e, nota triste, um acidente fatal tirou a vida de Hermann Kühne durante a segunda tapa da prova. O calor podia ser muito e a Mercedes pintou o teto do carro com tinta reflexiva para reduzir o incômodo dentro do carro..
Inicialmente, houve desconfiança e algumas piadas sobre a participação de duas mulheres no Grande Prêmio, mas, assim que venceram a primeira etapa, o público e a imprensa se referiram ao feito como algo de enorme importância. Quando venceram a segunda parte, todos passaram a devotar genuína admiração e torcida pela dupla.
A prova foi completada pelas suecas em 34:51:03 horas. Mais de 3 horas depois, chegaram o segundo colocado, Stipic e A.V. del Carril, terceiro colocado. Ambos com carros Volvo.
O veículo com o qual Rosqvist e Wirth venceram a corrida era quase um carro de série, um dos modelos W 111. A Mercedes-Benz havia usado um veículo com direção sem assistência, pois isso dava melhor sensibilidade da direção, embora nas difíceis etapas da montanha certamente Ewy teria preferido um carro com direção assistida hidráulica, como ela mesma contou em algumas entrevistas. Textualmente, ela disse: “Hoje eu daria tudo por um sistema de direção hidráulica!”.
Nos anos seguintes, Rosqvist ficou em segundo e terceiro lugares (em 1963 e 1964 respectivamente) no GP da Argentina, mas com domínio ainda dos carros da escuderia alemã. Em 1963 e 1964, Eugen Böhringer e Klaus Kaiser foram vitoriosos com modelos Mercedes-Benz 300 SE. Em 1963, Ewy Rosqvist terminou em terceiro lugar mais uma vez com Ursula Wirth como copiloto em um 220 SE, e em 1964 ela novamente garantiu o terceiro lugar, desta vez com Eva-Maria Falk em um 300 SE.
Ewy parou de participar de grandes corridas depois que a Mercedes-Benz desmontou sua equipe de rali em 1965 quando ficou claro que os novos fabricantes tinham carros mais leves, tornando o Mercedes relativamente pesado e muito menos competitivo. Ewy Rosqvist recebeu uma proposta para dirigir pela Audi, mas optou por encerrar sua carreira em corridas de primeira linha, fazendo, no entanto, participações em outras provas.
Ewy Rosqvist parou de competir em 1967. Seus troféus e carros de corrida são exibidos no Museu da Mercedes-Benz em Stuttgart, onde trabalhou por muitos anos como guia e piloto de testes para os novos modelos da Mercedes.
Com a morte de von Korff em 1977, Ewy ficou mais uns anos na Alemanha, mas acabou voltando para a Suécia, onde conheceu Karl Gustav Svedberg, chefe da empresa Philipson Bil AB, importadora e revendedora de automóveis Mercedes-Benz, e viveram juntos até a morte dele, em 2009. Ewy continuou participando de diversos eventos ligado ao automobilismo como convidada de honra. Ewy está com 92 anos.
No Youtube tem um curto filme com imagens da prova e com comentários da própria Ewy. Vale a pena ver:
https://www.youtube.com/watch?v=NAMo2QHGs2E
Mudando de assunto: mais uma linda prova de F-1, o GP da Arábia Saudita. Novamente, muitas disputas (e não apenas para o primeiro lugar) e algo que gosto muito: brigas limpas, mas aguerridas. Lindo ver os Ferraris novamente competitivos. No quesito “momento Kimi Räikkönen” adorei o rádio do Nico Hulkenberg. Engenheiro: “Me diga como está o balanço aerodinâmico”. Hulkenberg: “Não sei, estou ocupado dirigindo.”
NG