Mil novecentos e sessenta e nove é o ano em que eu pela primeira vez me lembro de alguma coisa em minha vida, e sei exatamente o que era: a chegada dos astronautas americanos à lua. Não me perguntem que horas eram, que dia da semana, se eu estava vendo ao vivo ou reprisado, mas sei que foi numa televisão de imagem preta e branca, marca Emerson, de gabinete de madeira clara e seletor de canais “de girar”, na casa de minha avó. Eu tinha três anos e quatro meses.
Habitantes da Terra em outro mundo, algo difícil de imaginar e aceitar como real, como muita gente ainda não acredita.
No mesmo ano, esse carro foi apresentado, criado num lugar ainda hoje pouco conhecido dos brasileiros, a Austrália. Lá, para nós brasileiros reféns de governos ruins, é outro mundo também.
Olhando fotos do Holden Hurricane, me lembrei de um carrinho de plástico que tive quando criança. Era mais ou menos do tamanho de um telefone celular grande, e veio como brinde para quem comprasse duas latas de Ovomaltine. Naquele tempo, o Ovomaltine tinha o sabor original de malte, não havia sido violentado com a adição de chocolate. No Brasil, o original desapareceu, morto pela ditadura chocolateira do paladar nacional. Não é mais algo exclusivo como era. Fora do Brasil há os dois sabores, claro.
Aquele brinquedo era muito similar ao Hurricane, criado pela Holden, a marca australiana da General Motors cujas fábricas já foram condenadas à extinção programada, para 2017. Ao que se sabe, a marca deverá continuar existindo, mas não mais produzida na Austrália. Maldição sobre o Hemisfério Sul? Pode ser…
Esse carro conceito apareceu ao público pela primeira vez no Salão de Melbourne em maio de 1969, e depois de alguns percalços ao longo dos anos, hoje está restaurado e novo em folha.
Os carros-conceito são muitas vezes o futuro que não chega nunca, mas aqui muita coisa veio para as produções de várias marcas, sendo até itens comuns.
Foi estilizado pela própria Holden, sendo o primeiro trabalho do grupo de Research and Development (pesquisa e desenvolvimento) junto com o já estabelecido Advanced Styling Group, no Centro Tecnológico de Fisherman’s Bend. A designação de projeto é RD001, e teve muitas inovações.
Sistema de auxílio de estacionamento com sensores de distância e até mesmo câmera de ré com tela no console central, que na verdade não era acionada apenas com a marcha à ré engatada, mas sim quando a ignição fosse ligada, já que não há visibilidade para trás por vidro traseiro, nem há espelhos externos. Essa câmera tem lente grande angular para maior campo visual e célula fotoelétrica para ajuste automático de luminosidade, de forma que a imagem seja sempre clara e bem definida em qualquer condição de luz.
Os cintos de segurança precisam estar afivelados para que o motor possa ser ligado. Havia também o sistema de navegação primitivo, o Pathfinder, que trabalharia em conjunto com aparatos magnéticos instalados na estradas, numa antevisão do que hoje já é experimental em alguns países, mas tem outro objetivo, nefasto para quem gosta de dirigir: o carro autônomo (arrepio e asco somados).
Além disso, tinha também um sistema de ar-condicionado automático, com regulagem de temperatura de acordo com sensores para manter o clima constante dentro do carro. Era chamado de Comfortron. O rádio tinha sistema de busca automática de estações, uma novidade experimental também.
Para complementar o quanto o Hurricane antevia tecnologias do futuro, o quadro de instrumentos é digital, algo que já foi futuro, deixou de ser depois de várias tentativas com resultados ruins e voltou com as enormes flexibilidades de projetos de telas que existem hoje, quando há marcadores e ponteiros virtuais, para quem não gosta de números que mudam a todo instante (a maioria das pessoas que gostam de dirigir não apreciam).
A estrutura central do carro é em chapas de aço, com a parte central traseira em tubos de aço soldados, incluindo uma barra de proteção para cabeças ou “santantônio” (roll bar). Na dianteira, uma estrutura separada onde são fixadas caixa de direção, suspensão dianteira e outros componentes menores — no mesmo conceito de carros de corrida de longa duração.
A carroceria por sobre esse chassis é em compósito de fibra de vidro, detalhada em túnel de vento para melhorar a eficiência. Peso total do carro é de 1.021 kg a seco.
Mais baixo uma polegada que um Ford GT40, o Hurricane tem 39 polegadas (990,6 mm) e para entrar, teto e vidros se levantam, sendo um inconveniente se estiver chovendo, claro.
Essa cobertura tem acionamento elétrico, bem como os bancos, que se erguem para facilitar entrada e saída por sobre as altas soleiras. Além disso, giravam para fora do carro.
Uma curiosidade aconteceu quando dois dirigentes da matriz americana visitaram a Holden, após o carro já ser funcional, mas antes de sua apresentação pública. A Holden havia iniciado o projeto e feito o Hurricane com recursos próprios, sem aprovação dos americanos, e eles quiseram ver para crer no que tinha resultado esse trabalho “pirata”.
Esses dois foram convidados a andar no carro no campo de provas de Lang-Lang, existente até hoje, e num dia de muito calor, ficaram presos dentro do carro, já que a cobertura parou de funcionar. Conta a lenda que o vidro teve que ser quebrado para que saíssem, e que depois do fato, uma alavanca puramente mecânica foi adicionada para destravamento da cobertura em emergências como essa. De qualquer forma, fica-se pensando o que aconteceria no mundo real se o carro capotasse.
Para os ocupantes, cintos de segurança com carretilha retrátil, algo que hoje é regra geral.
Motor V-8 de 4,146 litros (253 polegadas cúbicas) e 261 cv a 6.000 rpm com torque máximo de 36 m·kgf a 3.800 rpm, taxa de compressão 10:1, instalado em posição central-traseira, com embreagem de acionamento hidráulico. Alimentação era por carburador quádruplo e esse motor entrou em produção mais tarde no mesmo ano, na linha HT da Holden.
De 0 a 100 km/h gastava apenas 5,4 segundos, e percorria o quarto de milha (402 m) em 13 segundos, valores muito bons ainda hoje.
Para segurança, tanque de combustível preenchido com espuma para evitar explosões em batidas fortes, também um conceito de carros de corrida; capacidade de 43,2 litros.
Os freios traziam novidade. Os dianteiros são multidisco fechados dentro de um invólucro, refrigerado a óleo e sem pastilhas. O reservatório de óleo é dentro dos tubos do subchassi dianteiro, mesmo local onde está fixado o radiador para esse fluido. O invólucro é de alumínio, e há três discos móveis (girantes) e quatro discos fixos, que são atuados por um pistão único. O óleo circula do alojamento dos discos para os radiadores, havendo um para cada roda dianteira.
Na traseira, discos ventilados, diâmetro de 298 mm. Freio de estacionamento atuante por tambores pequenos e exclusivos, no “chapéu” do disco, como nos Omega nacionais, por exemplo. O circuito hidráulico era duplo cruzado.
A suspensão dianteira é por geometria de braços desiguais superpostos com mola helicoidal e amortecedor atuando no braço inferior. Os braços contam com tensores longitudinais seguindo em ângulo fechado em relação ao tubo do subchassi, fixando-se bem na extremidade dianteira deste e acompanhando o centro de articulação dos braços, numa solução muito elegante e eficaz.
Na traseira, braço triangular inferior, com tensor no braço superior, e semi-árvores saindo direto do transeixo na extremidade traseira. Molas helicoidais também, como na dianteira, e amortecedores fixados no braço inferior e na estrutura tubular. As rodas são de 6×15 polegadas na frente e de 8×15 atrás.
Os pedais tem posição ajustável, para maior conforto e segurança, em curso de 89 mm. O volante de direção tem ajuste de altura e distância, permitindo um ajuste essencial que é dirigir com o volante no lugar certo, algo difícil de ser encontrado há 45 anos passados. A direção tem três voltas entre batentes, não excepcionalmente rápida, mas aceitável por não ser assistida.
As luzes de freio são longas e baixas, pegando boa maior parte de largura do carro, e são seqüenciais, apontando para fora, para o sentido que se quer virar (lembrei-me dos Opalas, que tinham esse acessório vendido em lojas especializadas). As lâmpadas da lanterna traseira funcionam com dupla intensidade, mais fortes para dia e mais suaves para noite, algo que deveria ser obrigatório por lei hoje (esse modo de operação já começa a aparecer em alguns Mercedes-Benz).
Depois da apresentação, o carro fez um tour por vários concessionários australianos, até que o vidro do pára-brisa trincou e ele foi devolvido à fábrica para ser armazenado, sem conserto, até 1985. Do começo da década de 1990 até 2004, o carro foi emprestado a um museu particular, com uma restauração simples tendo sido feita anteriormente. Apenas em 2004 um clube de colecionadores pediu à Holden o carro para que fosse restaurado à condição original, mais ou menos ao mesmo tempo em que Ed Welburn, o vice-presidente de estilo da General Motors, em visita à Holden, viu o carro e lembrando-se de quando tinha 18 anos, pediu que fosse restaurado. Mais uma boa ação de um grande executivo da indústria. Welburn é um confesso entusiasta, elogiando até mesmo desenhos de carros não-GM, o que mostra sua sinceridade. Ele se lembrava do Hurricane vivamente, de seus tempos de estudante sonhador.
Para que o trabalho pudesse ser feito adequadamente, alguns engenheiros e um dos designers que trabalharam no carro 40 anos antes foram convocados.
Totalmente desmontado e refeito como merecido, em 2011 ele voltou à forma original, imaculado e maravilhoso, em seu estilo super-simples e efetivo como carro esporte futurista.
Mas eu tenho quase certeza que era ele o “carrinho do Ovomaltine”.
JJ
Mais fotos (NetCarShow e GM Media):