Como acontece com toda empresa de longa vida, a Maserati, apesar de ser tradicionalíssima e ter traços de personalidade mantidos desde sempre, mudou muito. Existem na realidade quatro fases bem distintas, praticamente quatro Maseratis diferentes, quase mutualmente exclusivas. Muitos historiadores separam a história da companhia conforme os seus donos: Alfieri Maserati e família (1926-1937), Adolfo Orsi e família (1937-1968), Citroën (1968-1975), Alejandro de Tomaso (1975-1993) e Fiat/Ferrari (1993-hoje). Eu prefiro dividi-la olhando os seus produtos: A fase em que a ênfase eram competições (1926 até 1957), a fase de ouro dos carros de rua de Giulio Alfieri (1957-1975), a fase dos Biturbos e derivados de Alejandro de Tomaso (1975-1994), e finalmente a fase atual, onde a empresa, parte do conglomerado Fiat, é coadjuvante de sua antiga rival Ferrari.
Muita coisa em sua história, como acontece na de tantas outras empresas criadas pela paixão e não pela razão, é recorrente: a falta de dinheiro e a falência. Como na história da Aston Martin que contamos aqui, parece que o dinheiro não é o principal objetivo nesse caso, parece que sempre existirá alguém disposto a salvar a empresa, mesmo que os prognósticos de sucesso sejam sempre de incertezas. Parece que a morte de uma empresa, algo que devia ser corriqueiro, é quase uma heresia nesses casos. O que prova que automóvel é algo diferente: isto nunca aconteceria com uma fábrica de aspiradores de pó.
A primeira fase é a inicial, que inicia com a fundação da empresa por Alfieri Maserati. Ela vai, portanto, de 1926, com o aparecimento do tipo 26 de competição (com um oito-em-linha DOHC supercomprimido de 1,5 litro de deslocamento, mostrando desde o início uma vocação para motores sofisticados), até 1957, exatamente 10 anos depois dos irmãos Maserati terminarem seu contrato na empresa em 1947, e 20 anos depois de terem vendido a companhia para Adolfo Orsi em 1937. Os Orsi eram de Modena, e mudaram a empresa para a famosa cidade natal da rival Ferrari pouco depois que a compraram em 1937. Os irmãos Maserati, e a sua empresa, eram de Bolonha, cidade portanto importante não somente por seu molho de macarrão. Em Bolonha inclusive, na famosa Piazza Maggiore, existe uma estátua de Netuno carregando um tridente que, claro, é o logotipo que adorna a frente orgulhosa de um Maserati desde tempos imemoriais.
Existiam seis irmãos Maserati, que em ordem de nascimento eram: Carlo, Bindo, Alfieri, Ettore, Mario e Ernesto. Carlo e Bindo, os mais velhos, fizeram carreira na Isotta Fraschini, em Milão. Ao redor de 1910, morre Carlo, o mais velho, e por indicação de Bindo, Alfieri e Ettore são também contratados pela Isotta Fraschini, que prontamente os envia para a Argentina oficialmente como representantes do departamento de serviço. Chegando lá, porém, os dois logo se metem no mundo de competições, reconstruindo e criando carros especiais dos clientes da marca milanesa. Três anos depois os dois irmãos Alfieri e Ettore retornam para Milão, onde fundam a “Officine Alfieri Maserati”, para preparar carros de competição, vocação encontrada e desenvolvida no exílio na Argentina. Logo se mudam de volta para Bolonha e começam a produzir também velas de ignição, o que no futuro se mostraria uma lucrativa e longeva atividade da empresa.
Alfieri era o fundador e a mente técnica, e Ettore ajudava na administração. Mas Alfieri era também o principal piloto de seus carros. A jovem empresa fez carros de corrida para a Isotta Fraschini, para a SCAT, e finalmente para a Diatto. Quando, em 1926, a Diatto desistia das competições, o último Diatto de corrida projetado por Alfieri muda de nome para Maserati tipo 26 (referência ao ano), Alfieri ganha a Mille Miglia com ele no mesmo ano, e o resto é história. O único irmão que não se envolveria com automóveis, Mario, um artista plástico, dá aqui sua contribuição: desenha o logotipo de tridente baseado no Netuno da praça.
Em 1926 chega também para trabalhar na empresa o caçula Ernesto; se mostraria um gênio talvez maior que Alfieri, e tomaria seu lugar no futuro como engenheiro-chefe, e ao volante de carros de corrida, Alfieri vem a falecer em 1932, vítima de ferimentos não muito bem curados de acidentes em competição, velhos ferimentos de batalha. Bindo finalmente, a pedido de Ettore e Ernesto, deixa a Isotta para se juntar aos irmãos. Em 1937, vendem a empresa para Adolfo Orsi, que a muda para Modena, mas mantém um contrato de trabalho de 10 anos para os três irmãos restantes.
Em 1947 os irmãos Maserati deixam a empresa com seu nome para formar a Osca, de volta à sua Bolonha natal, empresa com sua própria história de glórias que termina em 1963. Com a saída deles, e principalmente do engenheiro-chefe Ernesto Maserati, chega Alberto Massimino, da Ferrari. Entra em cena também um jovem engenheiro chamado Giulio Alfieri, que apesar de ter o sobrenome igual ao primeiro nome do fundador, não tem parentesco algum com a família fundadora. Alfieri seria uma das figuras mais importantes da história da empresa, e com certeza uma das razões de seus maiores sucessos, tanto nas pistas como nas ruas.
Mas pouco mudara na empresa. A Maserati, de 1947 a 1957, continuava como uma produtora de carros de competição, em pequena escala. Nesta época, porém, criou carros de imenso sucesso e hoje lendários: o 250F na Fórmula 1, os 300S e 450S nas competições de carros esporte, e as várias versões e evoluções do A6, nas categorias de entrada.
O A6 merece uma pequena pausa aqui. É a ligação, o elo perdido entre a primeira e a segunda Maserati. Criado ainda pela mão de Ernesto Maserati, o A6 1500 de 1947 era um carro que se pretendia produzir em série, um cupê de luxo com carroceira Pininfarina, e um sofisticado seis-em-linha de apenas 1,5 litro e comando único no cabeçote. Mas a produção em série seria interrompida por problemas trabalhistas na região. O que não impediu, claro, que modelos de competição fossem desenvolvidos a partir dele, o primeiro o A6 GCS “monofaro” de aparece logo em 1948, um minimalista carro esporte de dois lugares, com farol único dianteiro e 2 litros de deslocamento, para 120 cv.
Seu sucesso em competições cria sucessivas evoluções, culminando em 1957 com o carro que considero o mais belo já criado pela humanidade: o A6GC/53 Pininfarina cupê criado pelo concessionário Maserati de Roma, o comendador Guglielmo “Mimmo” Dei. Projetado por Giulio Alfieri (completando a ligação entre as duas fases), o cupê era equipado com um feroz seis-em-linha de 2 litros, agora DOHC e com três Weber duplos, para algo em torno de 190 cv. Minúsculo, pesava apenas 740 kg, e portanto tinha desempenho de gente grande, colocando desempenho de sonho em uma carroceria de sonho.
E que sonho. Pára-lamas mais altos que o capô, rodas enormes para seu tamanho, proporções exatas de capô longo e traseira curta. É de uma beleza incrível, e poderosa, que de alguma forma transmite toda a ferocidade de um carro que, apesar de ser licenciado para uso normal, é um fugitivo de competição, uma séria ferramenta para se andar rápido de verdade. Tem cintura, tem ancas, tem curvas, tem boca. Tem volúpia, paixão e beleza pura como nenhum outro carro jamais teve. Apenas quatro carros foram criados, um dos últimos Maserati desenhados por uma Pininfarina que acabaria exclusividade da Ferrari.
Até ali, 1957, a Maserati na realidade trazia a maior parte de seus lucros de atividades não relacionadas à produção de carros. Era uma fábrica de velas de ignição, baterias e máquinas operatrizes, que também fazia automóveis de competição. Mas isso mudaria drasticamente ao final de 1957: apesar de um ano memorável em competições, com o título do mundial de F1 para Fangio montado em um 250F, e de quase conseguir o mundial de carros esporte com seus potentes 450S V-8, a empresa em seguida encerra o envolvimento em competições. Isso se deve porque grande parte do dinheiro necessário para tocar as atividades diárias da empresa vinha dos pagamentos mensais do governo argentino de Juan Perón, referente a uma enorme encomenda de máquinas operatrizes. Quando uma revolução depõe Perón no final de 1955, os pagamentos tonam-se cada vez mais escassos, progressivamente, até que a empresa se vê realmente em maus lençóis.
O que desencadeia a segunda fase. Nesta fase, a empresa começa, como sua rival das pistas Ferrari, criar carros esporte caríssimos em pequena série, para as ruas. Giulio Alfieri é, neste ponto, o engenheiro-chefe da empresa, e é figura central desta fase, iniciada em 1957 com o lançamento do 3500GT (seguido pelo super-exótico 5000GT, com o V-8 de competição do lendário 450S), e vai até a falência da empresa em 1973. Alguns autores colocam uma fase diferente a partir de 1968, quando os franceses da Citroën compram a empresa, mas considero que o que aconteceu com esta vinda da marca francesa foi apenas uma continuação do que acontecia antes. A Citroën apenas colocou mais brinquedos na caixa de ferramentas de Alfieri, que as usou de forma fantástica: o Bora de motor central traseiro e o Khamsin de motor dianteiro usavam os famosos circuitos hidráulicos de alta pressão da marca francesa para fazer supercarros italianos extremamente refinados, coisa inédita até então.
Mas a crise do petróleo, e a falência da Citroën seguida da sua compra pela ultra-tradicionalista Peugeot, colaboraram para a falência também da pequena fábrica modenense. O governo italiano então, desesperada para não perder postos de trabalho em meio a uma crise, ajuda aquele nosso velho amigo, o onipresente (e de personalidade altamente duvidosa) argentino Alejandro de Tomaso a comprar a Maserati. De Tomaso tinha tentado comprar a empresa antes, em 1968, mas os franceses contavam com a ajuda de Giulio Alfieri, que fez lobby a seu favor junto à família Orsi. Se tornando um desafeto do Argentino, foi o primeiro a ser demitido quando este finalmente comprou a empresa.
Começa então a terceira Maserati. De Tomaso lança o Biturbo, um sedã com motor V-6 e dois turbocompressores, mais ou menos do tamanho de um BMW série 3, e dirigido ao topo de seu mercado. A produção aumenta exponencialmente, e uma empresa acostumada a fazer coisa de 700 carros por ano passa a fazer quatro mil. O cuidado com a qualidade e a durabilidade porém, é como foi constante em todas as criações do argentino: péssima. Hoje, os Maseratis desta era custam quase nada na Europa (onde a maioria foi vendida), fruto do fato de que sua manutenção, já difícil quando eram novos, hoje beira o impossível. Foi De Tomaso também que, para o horror dos fãs da marca, criou com seu amigo Lee Iacocca (lembram do Pantera?) o malfadado Chrysler TC by Maserati, uma vergonha tremenda hoje para ambas as empresas que o criaram (e que, paradoxalmente, hoje são uma só empresa).
Mas nem tudo foi ruim nesta época. Os Biturbo e suas evoluções podem ser difíceis de manter, mas quando estão acertadinhos são carros deliciosos de dirigir. Sua longa história (1981-1995) repleta de versões e motores diferentes e exóticos, merece um post separado, que prometo fazer mais para frente. Os Biturbo também lançam uma adorável tradição da marca: um relógio analógico de desenho exclusivo bem no meio do painel.
De Tomaso recria também um carro que seria a porta para o futuro: o Quattroporte. A idéia de um sedã de luxo com genes de carro de corrida é uma daquelas idéias que precisavam ser realizadas. A Maserati a tentara duas vezes antes de de Tomaso chegar, ambas sem muito sucesso. Mas o paquidérmico Quattroporte III de 1979 foi uma silenciosa fabriqueta de dinheiro para a empresa, e foi a semente que hoje mantém a empresa viva. O que seria hoje da Maserati sem os seus Quattroporte?
Interessante notar como a Argentina também é um constante na história da empresa. Foi na Argentina que Alfieri Maserati descobriu seu dom, nos idos de 1910. Seja com Fangio, seja com os contratos com Perón, o fim desses contratos de Perón, seja com De Tomaso no comando por mais de 10 anos, a empresa parece intimamente ligada com nossos hermanos mais ao sul.
Mas o tempo de De Tomaso eventualmente também passou, e a Maserati, mais uma vez, faliu em 1993. A Fiat, última remanescente da indústria italiana de massa, a comprou, como já tinha feito com a Ferrari, a Lancia, e a Alfa Romeo. Desde então, a empresa vem sendo modernizada, e seu carro chefe é o Quattroporte: um magnífico sedã de luxo com alma de Ferrari. Literalmente agora, porque agora os motores são derivados daqueles que impulsionam os carros vermelhos de seu antigo rival das pistas e ruas. Apesar da excelência e do sangue azul de um Quattroporte atual, não deixa de ser triste o papel de coadjuvante à que a Maserati foi relegada. Em algum cemitério modenense, Giulio Alfieri se revira em um caixão. E o espírito competitivo de seis irmãos bolonheses, que devia estar vivo na empresa que leva seu nome, adormece, esquecido. E nem ligação alguma com algum argentino qualquer existe, nem que fosse para tornar as coisas mais emocionantes, mais dramáticas.
Engraçado notar que a Maserati é bem mais antiga que a Ferrari, e portanto também mais antiga que a Lamborghini. Quase tão velha quanto a Alfa Romeo, sempre foi algo diferente e mais sofisticado que seus rivais mais jovens. Maseratis sempre foram a escolha de reis e aristocratas, de gente menos espalhafatosa e exibida. E a empresa também sempre foi mais amigável: já foi dito que a Ferrari era uma ditadura, e a Maserati mais como um clube.
Hoje a Fiat prepara para vender a Ferrari, para financiar os planos de crescimento de seu chefe Sergio Marchionne, parte da estratégia de tornar a Fiat menos italiana e mais global. A Maserati foi movida para fora da Ferrari, que era tecnicamente sua proprietária anteriormente, indicando que não faz parte desse plano. Eu sinceramente espero que seja vendida também.
Apesar de financeiramente excepcional comparada às suas fases anteriores, é uma fase morna demais, menos competitiva, pálida. Uma empresa que fez coisas épicas como o carro com que Fangio fez do Grande Prêmio da Alemanha de 1957, em Nürburgring, de longe o maior feito do maior piloto; que viveu, que criou monstros como o tipo 151 e o 450S; que fez os mais tecnicamente avançados carros esporte dos anos 1960 e 1970, coisas como Ghiblis e Boras e Khamsins, que fez birdcages e 8CTFs; que fez o belíssimo e imortal A6GCS/53 Pininfarina cupê, merecia mais. Merecia nada menos que uma chance de destronar a Ferrari novamente. Uma chance de competir, seja nas ruas ou nas pistas.
Está aí algo que eu gostaria de ver… espero que seu próximo dono, se um dia ela for vendida, tenha a vontade de fazer isso. E McLaren e Lamborghini que me desculpem, mas o nome Maserati é o único que conseguiria realmente bater a Ferrari. Sonhar, afinal de contas, não paga imposto.
MAO