O mundo hoje é um lugar menor. Sabemos facilmente tudo que acontece em qualquer lugar segundos após o acontecido. Notícia nova é velha em segundos, e nos grudamos a estas telinhas modernas num afã de saber algo novo, de ver algo engraçado, de nos emocionarmos. Crianças passam dias grudadas a elas, presas em casa pelo medo das ruas enquanto dias maravilhosos acontecem lá fora. É realmente estranho esse nosso mundo.
Nos anos 80, quando eu era uma criança, as coisas eram muito diferentes. Esperávamos um mês inteiro para ter notícias frescas sobre nossa paixão, o automóvel, que nos eram trazidas pelas quatro únicas revistas nacionais: Quatro Rodas, Autoesporte, Oficina Mecânica e Motor 3. E o que elas nos traziam eram poucas novidades: apenas quatro grandes fabricantes requentavam parcas linhas de automóveis por muito tempo, limitados em investimento pelo nosso pequeno e bem protegido mercado. A Motor 3 era a única em nos mostrar realmente um mundo grande lá fora, sempre trazendo testes e impressões realizadas no exterior com carros de marcas exóticas e diferentes, feitas pelo sempre agradável José Luiz Vieira, que dirigia a revista. Uma janelinha pequena para a Europa e os EUA, o mundo civilizado, que então nos pareciam tão distante quanto Plutão. Que, por sinal, ainda era planeta.
Não há como negar que hoje estamos melhor. A abertura do mercado 25 anos atrás fez hoje um mundo que era sonho para nós nos anos 80. Carros de todos os lugares do mundo, novos e usados, colorem nossas ruas e estradas com uma diversidade inacreditável. Franceses, italianos, ingleses e americanos eram esperados, e os japoneses, inevitáveis, mesmo olhando lá de 1985. Mas quem imaginaria espanhóis, russos, chineses, coreanos? Certamente não este editor. A China ainda andava de bicicleta e era uma isolada nação que produzia arroz, gente, e nada mais de algum interesse.
Nós devemos ser gratos por isso, por esta diversidade enorme. Olhando minha garagem outro dia, sentado na escada que dá para ela com minha vira-lata Pipoca, de bobeira num desses domingos tranqüilos e ensolarados que o divino às vezes nos dá, captei do ar essa verdade absoluta, feito uma antena de óculos. Quando era um adolescente completamente obcecado por automóveis em 1985, nem em meus sonhos mais doidos imaginava ter um BMW e um Citroën na garagem. Acho que nunca tinha nem visto carros destas marcas fora de revistas. Tudo bem, os meus são carros velhinhos, vira-latas desprezados pela maioria da população, mas que, tal qual a Pipoca, foram adotados por minha família, e que nela encontraram um lar. E, pensei, nem se morasse naquele que é o paraíso do autoentusiasta, os Estados Unidos da América, poderia ter adotado esses meus vira-latas queridos. Em 1996, você podia comprar um BMW 328i nos EUA em versão sedã, cupê e conversível, mas não uma perua como a minha. E a Citroën, quando fazia Berlingos como o meu, estava a décadas longe do mercado americano, lugar para onde dificilmente voltará.
Lógico que não quero dizer que estamos melhor que os americanos. Lógico que não, nem pensar. Apenas constatando um fato, o de que temos hoje uma variedade imensa de carros nas ruas, algo impensável nos anos 80.
Estamos melhor do que em 1985, não há dúvida. Mas nenhum bem é absoluto, e obviamente algumas coisas deste tempo passado deixam saudade. Atravessar a cidade de São Paulo em poucos minutos é a mais óbvia, seguida de perto por uma corrida de Opala Stock Car no antigo Interlagos, num daqueles domingos — de novo — tranqüilos e ensolarados que o divino às vezes nos dá. Mas outras coisas deixam saudades. E eu queria falar hoje sobre a que eu acho a principal: a natimorta indústria local de automóveis.
Este é um tema que sempre me atraiu. Me incomoda muito o fato de termos tido inúmeras tentativas frustradas, inúmeras marcas desaparecidas, mas nenhuma que tenha decolado. O fato de não termos um fabricante genuinamente nacional me soa como um fracasso de nosso povo. Sim, de fracasso somos acostumados, mas passa da hora de deixar de ser assim. Basta vontade, e um pouco de incentivo estatal. Hoje existe incentivo gigante para, por exemplo, cinema. Nada contra a indústria cinematográfica, mas não vejo japoneses, chineses, alemães e nem muito menos os coreanos lá muito preocupados com seu cinema pequeno e sua indústria gigante.
Este é um tema sobre qual falei algumas vezes aqui, e que agora pretendo voltar numa pequena série de três posts, focando em algumas marcas entusiastas de carros, genuinamente nacionais. Sim, elas existiram, principalmente entre os anos de 1970 e 1990, e tenho uma saudade danada delas nesse doido século XXI. Começo hoje falando de um tema próximo ao autoentusiasta, os carros esporte. Depois falarei de réplicas, jipes, e por último, os bugues.
Em ordem cronológica, com vocês, os 10 melhores carros esporte brasileiros:
Brasinca 4200 GT (1964)
Criado pelo famoso espanhol professor da FEI, Rigoberto Soler, o 4200GT é um carro brasileiro do qual podemos nos orgulhar. Usando um chassi próprio tipo plataforma e uma carroceria de chapa de aço estampado na Brasinca, fornecedora da indústria automobilística, inclusive para a própria General Motors do Brasil, é um desenho original e ainda interessante. Soler o criou depois que seu projeto na Willys, o natimorto carro esporte Capeta, com mecânica do Aero, foi cancelado.
E o carro que ele criou era um GT atualizado para a época: suspensão dianteira de triângulos superpostos e um eixo rígido traseiro localizado por cinco braços, e molas helicoidais. Os freios (a tambor), o motor e o câmbio (de apenas três marchas) vinha das picapes Chevrolet, tudo fabricado no Brasil. O motor e câmbio ficavam em posição entre-eixos dianteira, permitindo uma distribuição de peso próxima do ideal (metade do peso em cada eixo).
Para dar um viés mais esportivo ao motor de caminhão, o velho seis-em-linha Chevrolet de quatro mancais vinha equipado com três carburadores SU, ingleses, e opcionalmente com comandos de válvulas especiais da Iskenderian americana. Chegava a mais de 200 km/h, e fazia o 0-a-100 em apenas 9 segundos, números bem legais mesmo hoje, imaginem então em 1965, onde a maioria dos carros não chegava nem nos 140…
Apenas pouco mais de 70 unidades foram fabricadas, entre elas dois conversíveis e uma peruinha chamada Gavião, criada para uso da Polícia Rodoviária Federal. Um dos primeiros carros esporte verdadeiramente concebidos aqui no Brasil,
GT Malzoni/Puma GT DKW (1964)
Praticamente ao mesmo tempo em que o Professor Rigoberto Soler criava seu GT de seis cilindros e mais de quatro litros, Rino Malzoni, o famoso carrozziere/fazendeiro de Matão, no interior de SP, criava seu GT no outro lado do espectro: utilizando a simples mas super-eficiente mecânica dos DKW, completa com minúsculos e ardidos motores de 3 cilindros, 2 tempos e 1 litro.
Os pequenos GT Malzoni foram um sucesso nas pistas, e depois dariam início à mais importante indústria de carros esporte do Brasil, a Puma Veículos e Motores. Juntando a mecânica de viés esportivo dos DKW com um carro de dois lugares e peso reduzido, se tornou um carro divertidíssimo, belo e original, e um clássico instantâneo.
Puma GT 1500 (VW) (1968)
Muitos ainda chamam os carros baseados nos VW de “Fuscas de plástico”. Mas uma volta num Puma antigo faz esta noção desaparecer rapidamente.
O carro é baixo e minúsculo, e sentando rente ao chão, com as pernas esticadas, tem-se uma sensação nada parecida com a de dirigir Fuscas. É um carro esporte de verdade, onde o ato de dirigir é mais importante do que a função básica de todo automóvel, o transporte. E a empresa desenvolvia ativamente, durante os anos, várias preparações nos motores VW, oferecidas a custo adicional: comandos de válvulas, aumento de cilindrada, carburação e relações de marchas especiais. Carros foram exportados, inclusive para a Europa e EUA.
Apesar de inspirado no Lamborghini Miura, tinha um desenho próprio, de personalidade, um clássico hoje admirado internacionalmente. Um carrinho que, sozinho, criou a mais famosa marca de carros esporte do país.
Furia-FNM GT (1971)
O sedã Alfa Romeo 2000 produzido aqui pela estatal FNM no estado do Rio de Janeiro a partir de 1960 sempre teve um espírito esportivo característico da marca italiana. A especificação era exótica para a época: duplo comando de válvulas no cabeçote, câmbio de 5 marchas e enormes freios a tambor de alumínio aletado.
Duas memoráveis tentativas de se fazer um carro esporte baseado no FNM existiram por aqui, ambas fracassadas, mas muito interessantes. A primeira foi o FNM Onça, um clone do Mustang criado por Rino Malzoni. Menos de 10 unidades foram produzidas em 1966.
O Furia-FNM de 1971 (Quatro rodas)
Em 1971, entra em cena então Toni Bianco, um italiano radicado em São Paulo que é provavelmente o maior artista automobilístico brasileiro ainda vivo. Toni vivia uma época de grande sucesso em competições com seu maravilhosamente belo Furia de motor central-traseiro. Este carro teve várias motorizações, de Opala 2,5 litros até Lamborghini V-12, passando por 4-em-linha da BMW e, é claro, FNM.
Bianco resolve então tentar se tornar um produtor de carros esporte de rua, e cria um carro baseado no FNM 2150. O nome era idêntico ao protótipo de corrida Furia-FNM, mas o estilo, bem diferente. Com motor ligeiramente preparado, usando a base do sedã encurtada e rebaixada, e a carroceria projetada para ser feita em plástico reforçado com fibra de vidro, prometia ser bem mais leve, com desempenho ótimo para seu tempo. Mas, infelizmente, não passou da fase protótipo e nunca foi colocado à venda. Pelo menos um protótipo ainda sobrevive.
Bianco GT (1976)
Quando Toni Bianco se viu sem futuro com o fim de seus Fúria de competição, resolveu seguir o conselho de um amigo: fazer um carro esporte de rua baseado no Fúria, mas usando mecânica VW.
Achou uma velha carroceria de Fúria em plástico, comprou um VW velho, levou para sua oficina, e em pouco tempo aparecia o Bianco, sua mais famosa criação.
O Bianco pode ser um desastre ergonômico, mas é seguramente um dos mais belos e originais desenhos de carroceria já criados no Brasil. Se tivesse uma mecânica mais ambiciosa que a VW, como o carro de competição, com certeza seria hoje um clássico imortal e cobiçado. Mas ainda assim, merece um lugar aqui, nem que seja como homenagem ao seu criador, outrora uma força criativa de vasta influência no mundo do automóvel nacional.
Hoje, Toni Bianco é um simpático senhor com forte sotaque italiano, que passas seus dias em sua garagem ainda dando vazão à sua criatividade automobilística, criando o seu protótipo “Bruna” (nome de sua neta mais velha), e impelido por uma força interna que a idade avançada não consegue deter. E quando ele diz: “minha neta é linda, e o carro vai ficar lindo como ela”, é só lembrar do Bianco, e do Fúria que veio antes, para termos certeza que realmente não há chance de não ser.
Farus (1978)
De Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, veio um esportivo com o nome cheio de ligações familiares: Farus vinha de Família Russo, personificada por Alfio e Giuseppe, pai e filho, que idealizaram e produziram o veículo. O Farus era diferente por ter motor central-traseiro transversal em chassis próprio, raro entre os esportivos nacionais.
O primeiro, ML929 (Maria Luísa, a mãe de Giuseppe, era nascida em 1929), usava motor e câmbio Fiat 1300 do 147 Rallye, com carburador duplo. A estrutura por debaixo da carroceria de compósito de fibra de vidro era um chassi tipo espinha dorsal, que suportava na frente a suspensão, direção e freios do Fiat 147 (recalibrada para o menor peso devido ao motor central). Atrás se repetia a suspensão McPherson e freios dianteiros do 147, junto com seu motor e câmbio. O pequeno carrinho não era nenhum foguete, portanto, mas seu comportamento em curvas era decididamente esportivo e divertido. Para tentar remediar a falta de potência (mas não o entusiasmo, grande arma do pequeno Fiat “Fiasa”), depois vieram o TS 1,6, com mecânica VW Passat longitudinal, e o Beta, com motores de Monza 1,8 e depois 2,0.
Como a maioria dos pequenos fabricantes nacionais, acabou falindo quando da abertura do mercado nos anos 1990. Seu desenho de carroceria sem harmonia era seu calcanhar de Aquiles, principalmente devido a seu teto excessivamente plano, e erros básicos de desenho na parte inferior. Alguns ajustes ali fariam toda a diferença.
SM 4.1 segunda fase (1984)
Usando a mais potente mecânica nacional de então, a do Opala seis-cilindros, o SM era um GT de construção esmerada, especialmente em sua segunda série, corrente a partir de 1984.
A fábrica de equipamentos ferroviários de Três Rios, no interior fluminense, chegou a oferecer inclusive motores a álcool antes do Opala, usando motores de picapes. Além disso, listou versões usando o motor de 4 cilindros do Opala equipados com turbocompressor.
O carro era mais baixo e usava rodas e pneus melhores que o Opala, e portanto era bem mais hábil em altas velocidades. Seu interior esmerado era um capítulo à parte, parecendo interessante e agradável mesmo hoje, 30 anos depois. E a versão conversível era sonho de consumo de todo moleque carioca que eu conhecia na época, inclusive eu mesmo.
Hoffstetter (1984)
No Salão do Automóvel de São Paulo de 1984 apareceu esta verdadeira nave espacial extraterrestre com portas tipo asa de gaivota. Obra do engenheiro Mário Hoffstetter, e inicialmente criado como um protótipo de competição, trata-se do mais exótico carro nacional já produzido em alguma quantidade (minúscula, no caso).
O desenho é praticamente uma cópia do Maserati Boomerang de Giugiaro, um marcante protótipo que também mostrou um original volante de cubo fixo. Como a Maserati nesta época pertencia à Citroën, pode-se entender de onde veio esta idéia popularizada no C4 décadas depois.
Mas voltando ao Hoffstetter, usava mecânica 1,8 de Gol GT, chassi espinha-dorsal, onde se montava o conjunto mecânico dianteiro (motor, transeixo, suspensão e freios) do Gol GT atrás, e na dianteira o que parece, olhando fotos, o conjunto completo dianteiro do Chevette. Era caríssimo e portanto sempre foi raro, mas certamente tem lugar cativo nesta lista.
Aurora 122-C (1990)
No Salão do Automóvel de São Paulo de 1990 vi um chassi pelado do Aurora e pirei totalmente: chassi tubular, suspensões próprias nos quatro cantos, por triângulos superpostos desiguais. Um motor central-traseiro, transversal, de Monza, mas com dois carburadores Weber horizontais duplos prometendo preparação ardida. O ‘122’ era a cilindrada do motor de Monza em polegadas cúbicas, 2 litros.
Nada de chassi de Fusca aqui; nada da espinha dorsal menos eficiente; nada das suspensões de carros de grande série. Tudo feito como deve ser feito. O exterior deixava um pouco a desejar, mas o interior era inacreditavelmente profissional e de qualidade. O carro esporte brasileiro parecia que estava amadurecendo, finalmente.
Mas no mesmo salão estava o Ferrari F40, que o então presidente Collor fez famoso, e o Aurora ficou para sempre marcado como uma cópia tabajara do Ferrari, uma grande injustiça. Collor também logo diminuía o imposto de importação sobremaneira, definitivamente matando o sonho do engenheiro Oduvaldo Barranco de fazer cinco Auroras por mês. Pouquíssimos foram feitos, infelizmente.
Lobini H1 (2001)
Quando ninguém mais fazia carros esporte no Brasil, aparecia o Lobini, com toda pinta de um Lotus Elise brasileiro. Para falar dele, pedi ajuda a quem conhece o carro intimamente: o amigo (e colaborador do Ae desde sempre) Milton Belli foi engenheiro da empresa até seu fim. Assim o define o amigo Belli:
“No começo dos anos 2000, a vontade e determinação de duas pessoas (Fabio Birolini e José Orlando Lobo) em criar um esportivo para uso próprio, resultou no Lobini H1. Nascido como um roadster de motor V-6 Alfa Romeo e calibração de suspensão firme e esportiva, o Lobini fez sucesso imediato e surgiu demanda suficiente que justificasse uma fábrica e produção em maior quantidade. Inicialmente em parceria com a Chamonix, a marca logo seguiu seu rumo sozinha.”
“Após algumas modificações, o Lobini ganhou o nome H1, o V-6 deu lugar ao motor 1,8-litro turbo da Audi-VW e a carroceria ganhou um teto targa, mas a dirigibilidade de carro classicamente europeu continuou presente. Rápido e muito ágil, o H1 tem muita inspiração nos Lotus, onde inclusive foi feito um desenvolvimento de acerto de suspensão. A produção artesanal traz alguns pontos prós e contras. A personalização dos modelos novos e o atendimento direto na fábrica aos clientes era um diferenciador, juntamente com a exclusividade, mas alguns defeitos de carros artesanais e feitos com compósito de fibra de vidro, como alguns ruídos de carroceria e complexa vedação do teto, podiam incomodar um pouco, mas nada que tirasse o prazer de dirigir, este sempre o ponto alto do carro. A direção precisa e o bom torque do motor turbo pedem uma certa dose de habilidade, pois dirigir o H1 perto do limite não é uma tarefa fácil, uma vez que o carro não conta com nenhuma assistência eletrônica, justamente para reduzir a interferência nos comandos do motorista.”
MAO