Bom, chegamos à última parte da minha série. Hoje falarei sobre minha experiência em Zanzibar.
Em primeiro lugar, vamos ao momento uiquipídia: Zanzibar é um arquipélago que faz parte da Tanzânia (lembram? Foram duas regiões que se uniram, Tanganica e Zanzibar e formaram a Tanzânia). Mesmo sendo um único país, a Tanzânia continente e Zanzibar mantem muitas coisas diferentes e várias totalmente separadas. Por exemplo, há dois presidentes, votados pelas populações das duas regiões, como já expliquei numa outra edição.
Em segundo lugar, uma breve explicação da logística criada por Noratur: optei por ficar dois dias em Stone Town na chegada, com pernoite num charmosíssimo hotel bem no centro da cidade, onde fazíamos tudo a pé. Stone Town é a capital da ilha de Unguja, também conhecida como Zanzibar, e fica perto do aeroporto. Tem uma história triste ligada ao tráfico de escravos, entre outras coisas, e demanda tempo para conhecer. Na minha opinião, um bate-e-volta da praia não é suficiente e minha teoria se provou correta.
E sim, Stone Town é a cidade onde nasceu Freddie Mercury, vocalista da banda Queen e claro que fomos ver a casa do mais ilustre cidadão zanzibari (foto de abertura). Depois disso nos transferimos para um charmoso hotel de apenas sete quartos na praia de Kwengwa, mas como a ilha é enorme e há praias para todos os gostos, há uma grande variedade. Pessoalmente, adorei minha escolha, tanto do hotel quanto da praia, mas nos deslocamos bastante — algo que aconteceria qualquer que fosse nossa base.
São dois lugares totalmente diferentes. Enquanto Stone Town é conservador, muçulmano muito religioso, a região das praias é mais tolerante nos hábitos dos turistas, embora sejam também muçulmanos em sua maioria. Na capital, embora haja alguns turistas que eu considero meio sem noção, o uso de shorts, roupas decotadas ou justas não é bem-visto nem frequente. Eu havia mandado mensagem ao nosso hotel no qual a simpaticíssima gerente me ajudou muito. Perguntei sobre o “dress code” em cada lugar, pois considero uma questão de respeito. Por isso, usamos bermudas (as minhas abaixo do joelho) e camisetas de manga curta e deixamos shorts e eu meus vestidos de alcinha para as praias. Não vejo problema em fazer isso se é algo que incomoda a população local.
Mas voltemos ao autoentusiasmo. Mesmo dentro de um único país, a carteira de habilitação de Tanzânia continente não serve no arquipélago. Na verdade, em Zanzibar mesmo um estrangeiro precisa de uma carteira de motorista especial para dirigir na ilha, além da carteira de motorista internacional. Para obtê-la é necessário fazer um teste de visão e um exame escrito e pagar US$ 10. Na teoria. Na prática, a própria locadora providencia o papelucho mediante o pagamento de US$ 10. Você pode enfrentar uma multa se for pego dirigindo na ilha sem uma permissão especial, mas não sei até que ponto isso é realmente fiscalizado.
Passamos por alguns pontos de controle de tráfego, mas como estávamos sempre com motoristas locais, que falavam árabe (a língua do arquipélago, onde poucos falam suahíli, mas nas áreas turísticas muitos falam inglês), não tenho como dizer. Aliás, qualquer pessoa que more em São Paulo ou no Rio provavelmente não pararia diante de um bloqueio deste tipo pensando que é assalto tal a precariedade das barreiras, não?
E mais um momento cultural. Apesar de se falar árabe nas ilhas, a palavra “jambo” (algo assim como “olá” ou “tudo bem?”) é suahíli e coringa. Use-a sempre e mesmo ao se dirigir a um policial numa blitz. É coloquial e superamigável. Certamente ele responderá com a mesma palavra. E por falar em árabe, as placas das ruas em Stone Town estão em caracteres árabes, o que complica um pouco a localização. Na verdade, há tantas vielas no centro que é impossível não se perder, mas para nós isso fazia parte do charme de vagar pela cidade.
Assim como na Tanzânia continente, preferimos não dirigir na ilha principal, Unguja, onde ficamos a maior parte do tempo. Diria que caos define bem o sistema de trânsito. Existe um código de leis, mas há uma certa bagunça generalizada. A maioria dos caminhos é de terra batida e mesmo as estradas principais, como a que vai da capital, Stone Town e do aeroporto às badaladas praias, é de pista simples, sem acostamento e sem sinalização.
É comum haver venda de todo tipo de produtos à beira do caminho, o que diminui ainda mais as estreitas faixas que poderiam servir de acostamento. Como na Tanzânia continente, as pessoas circulam a pé, de bicicleta, de tuc tuc, de carro ou qualquer outra forma pelas estradas e as atravessam sem maiores cuidados. E estacionam em qualquer lugar.
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A iluminação pública em Stone Town é quase inexistente e no resto dos caminhos totalmente inexistente, o que torna ainda mais perigoso dirigir por lá. E como todo mundo para onde acha conveniente, o trânsito é complicadíssimo, especialmente nas áreas mais turísticas como perto do Mercado de Stone Town, onde flagrei esta cena com um lindo baobá ao fundo, para nos lembrar de que estávamos mesmo na África.
Em Zanzibar é muito popular uma espécie de jardineira chamada daladala (ver foto jardineira) e que transportam além de passageiros seus pertences, que podem ser até mesmo colchões, como vimos (foto transporte publico 2). Aliás, nesse sentido presenciamos cenas hilariantes, pois as pessoas levam qualquer coisa nas daladalas e mesmo o transporte de pessoas é feito de forma, digamos, precária (Foto transporte publico).
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Os limites de velocidade são relativamente cumpridos em função do estado dos caminhos, mas nas estradas o pessoal senta o pé. Na teoria, nas cidades, a máxima permitida é de 40 km/h e nas estradas, 50 km/h. Assim como na Tanzânia continente, a mão é inglesa, mas o sistema é o métrico decimal.
Outro motivo que nos fez relutar em alugar algum tipo de transporte e optar por taxis e vans reservados nos hotéis foram algumas normas de trânsito bem estranhas que existem na ilha. Preferi contratar carros com motoristas e fazer meus próprios roteiros e em um par de casos fizemos passeios com mais um casal, o que se mostrou muito adequado e produtivo. Apesar de termos telefones com chips locais, o sinal de celular falha e muitas vezes é totalmente inexistente, o que obriga a baixar mapas com antecedência e não permite improvisações nem depender do Google Maps ou do Waze.
Enumero aqui algumas destas normas de trânsito que achei estranhas:
– se você vir um carro de polícia na estrada ou na rua com as luzes piscando você é obrigado a encostar e parar o carro, independentemente de em que direção o carro de polícia estiver trafegando;
– em estradas secundárias: assim que vir o trânsito em sentido contrário, deve-se dar seta como se fosse virar à direita. Inicialmente usava-se para avisar os carros atrás de você sobre o tráfego que se aproximava, mas agora se tornou uma regra geral. (sobre esta norma havia lido, mas pouco vi ser usada na prática)
– há uma regra específica que proíbe dirigir e fumar (olha aí, Bob Sharp!) Não se refere a dirigir com uma mão só, até porque é frequente o pessoal guiar falando ao telefone, mas sim proíbe fumar. Confesso que não entendi, como outras normas. Mas por ser uma ilha preponderantemente muçulmana (quase 90% da população é muçulmana sunita) e o fumo é mal visto no Alcorão (embora o narguilé seja aceito e amplamente utilizado) talvez tenha alguma raiz nessa questão.
– e uma recomendação óbvia, mas necessária: não estacione seu carro debaixo de um coqueiro. Os riscos de um coco cair e amassar seu carro são reais e muito, muito prováveis.
Há, claro, regras frequentes em outros países, como uso obrigatório de cintos de segurança para o motorista e os passageiros (Tanzânia continente obriga só o motorista) e proibição de dirigir alcoolizado — aliás, a venda de álcool está proibida no arquipélago exceto nos resorts e nos restaurantes nas praias — apenas em alguns restaurantes e hotéis em Stone Town, mas lá não há lojas que vendam bebidas.
E aqui vai meu momento sorvete na testa da viagem. Experimentei um maravilhoso gim tanzaniano, feito de cana de açúcar (não, não é rum) e comprei duas garrafas do próprio hotel para trazer para o Brasil. Mas esqueci que na volta ficaríamos mais três dias em Doha. Resultado: minha bebida foi apreendida no aeroporto qatari e nunca mais conseguirei comprar uma dessas. Ou terei de voltar para a Tanzânia (eba!) e voltar num voo sem escalas em país muçulmano.
Na teoria, o capacete é obrigatório nas motos e ciclomotores, mas há muito desrespeito. Porém, uma cena peculiar, mas bastante frequente, foi ver muçulmanas andando de moto com burka e o capacete por cima. Acho um perigo essa saia comprida enroscar numa roda, mas elas parecem acostumadas e não vimos nenhum acidente.
E agora vamos ao momento Noratur. Apesar dessas, digamos, peculiaridades do trânsito em Zanzibar é um dos lugares de praia mais bonitos que se possa imaginar. As paisagens são simplesmente deslumbrantes e muito peculiares. Fomos mergulhar com cilindro no atol de Mnemba e vimos peixes e corais lindíssimos, mas também fizemos snorkel e foi uma experiência maravilhosa. Fora o visual de Prison Island, um lugar construído para prender escravos rebeldes e que hoje é habitada por gigantescas tartarugas terrestres. Ou o lindo restaurante The Rock, ao qual se chega de barco quando a maré está alta ou a pé quando ela está baixa e onde para minha surpresa, tanto os drinques quanto a comida são excelentes.
O arquipélago é grande, há muitas ilhas e cada uma tem características próprias, embora poucas estejam habitadas. Estivemos na praia de Nakupenda, uma estreitíssima faixa de areia no meio de oceano, à qual se chega depois de um longo passeio de barco e que vale cada minuto. Entramos na piscina natural de Baraka onde vivem tartarugas marinhas e as alimentamos (uma “mordeu” meu marido quando uma folha de alface ficou perto do braço dele e ela não calculou bem a distância e outra mordeu meu biquíni, que era verde, e começou a puxá-lo com os dentes. Deu trabalhinho demovê-la da ideia de arrancar a peça do meu vestuário).
A parte histórica foi principalmente em Stone Town, com visita ao antigo mercado escravo, ao atual mercado de comidas (que não pode ser fotografado), a catedral anglicana (um dos poucos resquícios de colonização não árabe que sobraram). Essa foi a parte mais doída da viagem, pois há pelourinhos, celas, locais de triagem. Zanzibar foi um importantíssimo entreposto de comércio de escravos instituído pelos árabes, que os transportavam especialmente para Omã e o Oriente Médio em geral. Já os passeios pelas praias foram especialmente incursões na Natureza e incluíram mergulharmos numa caverna — que mais parecia um cenote e foi uma linda experiência.
Nas praias há muitos massais que tem como trabalho “captar” clientes e levá-los até as lojinhas. São simpaticíssimos e apesar de alguma insistência (são capazes de caminhar ao nosso lado por longas distâncias) não são nada inconvenientes nem mal educados. No final da tarde, como é comum em vários países da África, dedicam-se ao esporte predileto: jogar futebol. (foto massais jogando futebol).
Outra visita interessantíssima e clássica na ilha é a uma fazenda de especiarias, algo quase obrigatório. A comida local é extremamente temperada na quantidade de coisas que leva, mas muito, muito delicada e suave. Além de ver plantas que nem conhecia, aprendi muito e voltei carregada de canela, cardamomo, gengibre, massala e todo tipo de temperos. Já usei alguns e acho que minha comida ganhou muito com esta incursão. Meu frango massala ficou delicioso.
Como um todo, a viagem foi espetacular. Assim como Tanzânia continente, Zanzibar é muito, muito pobre. Ao mesmo tempo as pessoas são tão amáveis e simpáticas e parecem tão felizes que isso dá um certo conforto. Como disse, é uma viagem cara, logisticamente complicada, mas que vale muitíssimo a pena. Como história, é fantástica, como praias, das mais lindas e diferentes que vi na vida. E nem vou falar da maravilhosa comida, com frutos do mar e peixes que são simplesmente divinos.
Mudando de assunto: mandei de última hora para alguns amigos e, apesar do atraso, queria que meus caríssimos leitores vissem meus votos de Feliz Natal. Nada mais autoentusiasta, não?
NG