Se alguém me perguntasse no dia primeiro de janeiro de 2023 onde eu gostaria de estar em junho, certamente eu diria Le Mans. São vários motivos, e o principal é o sonho de criança ao ver as fotos e vídeos mostrando os protótipos rompendo as enormes retas do circuito. Chicanas foram colocadas nas retas para diminuir a velocidade, mas ainda assim os carros atingem mais de 300 km/h antes de iniciarem a frenagem.
O sonho começou a se materializar em uma conversa com o experiente fotógrafo José Mario Dias durante a Mil Milhas deste ano em Interlagos. Comentei minha vontade de ir a Daytona e Le Mans, e ele sugeriu que eu fosse primeiro a Sebring, onde seriam realizadas duas provas de longa duração em março: 1.000 Miles do WEC, que teve a reaparição das equipes Ferrari, Porsche e Peugeot pela categoria principal, a dos Hypercars, e 12 Horas de Sebring, tradicional prova norte-americana. O evento foi batizado de Super Sebring, e agora sabemos que não será realizado novamente em 2024. Ambas ocorreram no mesmo final de semana, com pilotos brasileiros participando das duas, alguns nas duas, e as 12 Horas ainda teve vitória de brasileiro. Foi um final de semana completo que contei nas páginas da edição nº19 da revista Curva3.
Mas Le Mans é Le Mans, e por mais glamour que tenham as provas americanas, o sonho ainda estava por se realizar. Os ingressos para a prova comemorativa dos 100 anos de história já estavam esgotados desde final do ano passado, portanto a solução seria conseguir um convite de algum dos patrocinadores ou obter o credenciamento de imprensa. Mãos à obra em duas frentes. Falei com os principais fabricantes e solicitei o credenciamento utilizando minha função de editor técnico na revista Curva3 junto à FIA e ACO (Automobile Club de l’Ouest), o organizador da prova.
A resposta da FIA/ACO chegou apenas no dia 23 de maio, pouco menos de três semanas antes da corrida. O fotógrafo português, e colaborador de diversas publicações no Brasil, Jorge Sá, já tinha um quarto reservado para duas pessoas a cerca de 15 minutos do autódromo, na cidade vizinha, Champagnè. O pacote estava completo. Hospedagem e credenciamento equacionados, foi “só” comprar a passagem aérea e alugar o carro para maior comodidade nos deslocamentos.
A programação da corrida indicava que na quinta-feira, 8 de junho, aconteceria a Hyperpole às 20h00 (ainda dia claro em Le Mans nesta época do ano), com a participação dos oito melhores carros de cada categoria em uma sessão de apenas 30 minutos com proibição de reabastecimento e livre escolha entre os pneus macios, médios ou duros. Portanto, esse passou a ser o objetivo: chegar em Le Mans para a Hyperpole.
Voando desde o Brasil na noite anterior, aterrissei em Paris pela manhã, encontrei com meu companheiro vindo de Porto e seguimos a viagem de duas horas até Le Mans. Credenciamento feito com muita tranquilidade no estádio Marie-Marvingt nas imediações da pista. Aqui já começamos a sentir o primor de organização, pois mesmo com 1.500 jornalistas credenciados, e uma previsão de 300 mil pessoas no dia da corrida, todos os deslocamentos de carros entre o centro de credenciamento e o estacionamento ocorreram de forma tranquila. A velocidade não é superior a 30 km/h, mas nos pontos de maior volume de pedestres não há interrupção de tráfego para a travessia, pois havia uma passarela. E todos a utilizam! Carros por baixo, pedestres por cima. Todos seguros. Vale lembrar que o circuito de Le Mans utiliza algumas vias públicas da região, por isso, em alguns locais há residentes circulando, e mesmo as pessoas credenciadas com acesso ao Paddock e/ou à pista acabam circulando pelas mesmas vias.
A sala de imprensa é uma Torre de Babel com jornalistas de todas as partes do mundo, falando diversas línguas com a óbvia predominância do francês e inglês, mas não falta um grito empolgado de um italiano com o desempenho da Ferrari, ou de uma cara preocupada do japonês que vê a possibilidade de a Toyota perder a série acumulada de cinco vitórias consecutivas na pista francesa.
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A Hyperpole definiu a Ferrari na primeira fila, Toyota abrindo a terceira fila, ao lado do Porsche 963 do brasileiro Felipe Nasr. E para essa sessão optei em assistir na sequência de esses que antecede a reta dos boxes. É um local que está cercado por salas VIP dos patrocinadores, e a curva é batizada com o nome de um dos patrocinadores da prova, a Motul. E foi esse também o local que decidi que assistiria à largada no sábado, afinal, conseguiria fotografar o pelotão alinhado lado a lado ao entrar na reta de largada. E nesse local há um grande telão onde seria possível acompanhar toda a primeira volta.
Ainda na quinta-feira foi possível acompanhar o treino noturno de uma hora de duração, com todos os participantes na pista e que teve início às 10 da noite, minutos após o pôr do sol, que foi às 21h53. Nesse momento o sonho começa a se tornar realidade. Era possível ver os carros, ouvir o ronco dos motores e sentir a vibração de cada tipo de motor. Os discos de freios já começam a aparecer avermelhados pelo calor gerado nas freadas, e tudo aquilo que sempre vi em fotos e vídeos estava assistindo ao vivo.
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Sexta-feira da paixão
No dia que antecede a 24 Horas de Le Mans não há atividades em pista para os 62 carros, mas há muita atividade fora da pista, e algumas corridas de suporte, como a Ferrari Challenge e a Road to Le Mans, esta última com a participação de Valentino Rossi, ex-piloto de motovelocidade, ganhador da corrida.
O museu de Le Mans é outra atração imperdível com seus 100 anos de história ali retratados. Fica próximo às curvas 1, 2 e 3, de onde é possível avistar a passarela em forma de pneu da Dunlop, uma imagem icônica dessa pista. Muitos carros vencedores e que fazem parte da história do automobilismo mundial estão ali. Desde os carros da década de 1920 até o vitorioso Toyota GR010 Hybrid em 2022.
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Na tarde desse dia é obrigatório ir ao centro da cidade para acompanhar o desfile dos pilotos pelas ruas. O contato dos pilotos com o público é algo alucinante. São pessoas de todas as idades que se espremem para conseguir tirar uma foto, receber um aceno ou um brinde distribuído pelos pilotos que desfilam em carros conversíveis.
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Voltando ao autódromo encontro a pista aberta para visitação e passeio. Seja a pé, de bicicleta ou até mesmo em cadeira de rodas, a pista fica livre para que os portadores de ingressos possam passear por ali e sentir a mesma emoção dos pilotos que passam a mais de 200 km/h. O acesso à área dos boxes é restrito às equipes e mesmo a imprensa precisa de autorização especial para circulação. O mesmo acontece momentos antes da largada, os convidados dos patrocinadores são autorizados a fazer a visitação ao grid de largada (foto abaixo).
Sábado é dia de corrida
As atividades em pista começam bem cedo no sábado. Apesar da largada da 24 Horas ser às 16 horas (11 horas no Brasil), as categorias de suporte têm provas pela manhã, e ao meio-dia há uma sessão de 15 minutos para warm-up. É a oportunidade que as equipes têm para conferir que todos os sistemas revisados no dia anterior estão prontos para a largada.
Sabe aquele costume (ou mania) de brasileiro de ter que chegar antes de abrir os portões? Isso não acontece em Le Mans porque os portões estão sempre abertos. Todo mundo pode entrar e sair a hora que quiser, basta ter o ingresso ou credencial com código de barras pendurado no pescoço e os gentis organizadores usam os leitores portáteis para liberar a entrada ou saída. Para sair de uma área de arquibancada e ir a outra de acesso livre, muitas vezes é necessário ir de bicicleta, patinete, motoneta, ou utilizar o sistema de transporte do próprio autódromo.
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O publico começa a encher as arquibancadas, e em uma rápida passagem por alguns pontos da pista identifiquei as arquibancadas T4 e T5 na curva 3 como um dos melhores pontos com assento reservado. Um local onde é possível ver a largada e futuras relargadas após intervenções do carro de segurança (safety car). As disputas na sequência de curvas 1, 2 e 3 são sempre bem eletrizantes e há um telão à frente para acompanhar a movimentação no resto da pista de 13,626 km de extensão. E para minha surpresa essa sequência de curvas tem leve aclive, propiciando ainda melhor visão. Ainda desse ponto da pista é possível acompanhar os carros que saem dos boxes, facilitando ainda mais o seguimento da corrida e trocas de posições. Pela TV esse trecho da pista sempre me pareceu ser plano.
Atrás dessas arquibancadas há uma praça de alimentação, com restaurantes e lanchonetes para alimentar até os mais famintos, porém, por incrível que pareça, não ficam abertos 24 horas. Há um momento no meio da noite que fecham e só reabrem para o café da manhã. Em uma área anexa encontra-se outro telão e espreguiçadeiras para quem está cansado do banquinho da arquibancada, podendo relaxar sem perder o contato com a prova.
Em outras partes do circuito encontram-se outras praças chamadas de fan zones, onde há muitas atrações ao público presente. Seja show de música, pista de kart, simuladores de carros e motos de corrida e muito mais. Tem parque de diversão para as crianças e até a famosa roda gigante, onde é possível apreciar a corrida por outro nível.
Domingo de muita corrida
Quando amanhece o domingo às 6 horas, ainda restam 10 horas de prova. Não é possível dizer quem está bem na corrida, mas com certeza aqueles que estão com mais de duas voltas de atraso do líder na sua respectiva categoria, já podem considerar com poucas chances de vitória. As três categorias são muito disputadas durante todo o transcurso da prova.
Houve grande alternância de liderança e as duas chuvas do sábado, a primeira à tarde, uma hora após a largada e a segunda no início da noite, causaram prejuízos a alguns. Foram vários incidentes com carros apenas rodando sem atingir o guard-rail até acidentes mais graves com danos irrecuperáveis aos carros.
Se não há disputas diretas na pista, nota-se a tensão das equipes com acompanhamento pelos monitores de TV onde aparecem as imagens da pista e a tabela de classificação com atualização em tempo real. A cada 45 minutos em bandeira verde ou 12 voltas os pilotos da categoria principal, a dos Hypercars, fazem o pit stop para reabastecimento, e dependendo do tipo de pneus que está sendo utilizado, é feita a substituição.
Pela manhã as arquibancadas na frente e sobre os boxes estão relativamente vazias, mas a circulação de pessoas pelas áreas internas do autódromo é imensa. Em uma incursão até as curvas Mulsanne, Indianápolis, e Chicana Michelin, pude comprovar que há público para todos os setores. Na Mulsanne, onde fica localizado o Hotel Ibis Style, é um local interessante para apreciar a velocidade máxima dos carros. Pelo lado interno da pista está o campo de golfe, onde é possível acampar com trailer ou motorhome. Pelo lado externo tem o morrinho providencial para acomodar uma cadeira e apreciar os carros acelerando pela reta até a Indianápolis e a Arnage, a curva mais lenta do circuito.
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A segunda chicana, ou chicana Michelin, é um local inóspito para público. Não há estruturas e são áreas de grande risco, portanto nem mesmo os fotógrafos têm acesso, mas por ser uma área intermediária da grande reta a velocidade e aceleração é de máxima exigência para máquinas e pilotos.
A curva Indianápolis tem uma frenagem em descida com curva a direita, culminando na primeira perna à esquerda com pista bem larga e inclinada, seguindo em direção à Arnage à direita. Os carros chegam em altíssima velocidade e novamente o morrinho é o lugar preferido do público para se acomodar e apreciar a habilidade dos pilotos no contorno dessa sequência de curvas.
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Para dar uma ideia das distâncias entre uma curva e outra, esse tour consumiu mais de três horas da manhã de domingo, sendo 40 minutos para ir do Paddock até à curva Mulsanne utilizando um dos serviços de van do autódromo. Isso mesmo, um serviço de van disponível 24-horas para o público se locomover em todas as áreas do complexo. Poderia ter usado também uma motoneta, pois carros devem ter credenciamento específico para esse tipo de deslocamento.
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Fiz uma tentativa frustrada de assistir ao final da corrida da arquibancada sobre os boxes. Faltando uma hora para a bandeira quadriculada o local já estava lotado. O público que tinha ingressos para essa área já ocupava seus lugares, e os espectadores sem lugar marcado estavam se amontoando no último degrau. Impossível de ver qualquer ação em pista dali. Portanto, minha decisão foi acompanhar todo final pelas janelas e monitores da sala de imprensa, um local privilegiado.
24 horas foi pouco
Com a aproximação do final da prova, começa a aparecer uma sensação de que foi pouco. Vinte e quatro horas de corrida, mais os dois dias de treinos e visitas parecem ter sido insuficientes para matar aquela vontade de viver o grande evento de Le Mans.
A prova que celebrou 100 anos de corridas de 24 horas em Le Mans foi bem movimentada, a liderança da Ferrari nos treinos foi superada logo na largada pela Toyota. A Peugeot liderou muitas voltas com o piloto brasileiro-americano Gustavo Menezes fazendo um bom trabalho e dando alegria à maioria de espectadores e jornalistas locais. Um dos quatro Porsche 963 estava na liderança quando teve um acidente que o afastou da disputa.
Na categoria GTE-Am, que utiliza carros superesportivos, teve a vitória do Corvette depois de uma disputa muito acirrada com Porsche 911, Ferrari 488 e Aston Martin. Um trio formado por mulheres vinha fazendo bonito e com grandes chances de vitória, mas ficou para trás na última hora de corrida, terminando na quarta colocação da categoria.
Enquanto na LMP2, onde todos os carros usam o mesmo chassi e motor, as principais equipes tiveram problemas técnicos e no final o time Inter Europol conquistou a merecida vitória na 24 Horas de Le Mans.
A Ferrari voltou a Le Mans e venceu 58 anos depois da sua última vitória na pista francesa na categoria principal. A Cadillac, que venceu várias vezes a 24 Horas de Daytona nos EUA e outras provas de longa duração em território americano, finalmente estreou em La Sarthe graças à convergência de regulamentos que houve na categoria dos WEC-Hypercar com a IMSA. O terceiro e quarto lugares da equipe americana foi muito festejado pelos três carros que cruzaram juntos a linha de chegada.
Os franceses ficaram felizes com o bom desempenho do Peugeot 9×8, que com a força do regulamento teve seu fraco desempenho nas provas anteriores ajustado por meio da adição de peso nos carros mais rápidos, Toyota e Ferrari.
A Porsche comemora 75 anos de existência neste ano e foi a Le Mans com um dos carros utilizando o nº 75. Os carros tiveram bom desempenho durante a prova, mas ao final sofreram com problemas técnicos ou acidentes e foram deixando a disputa de lado, e brigando para sobreviver na corrida.
Entre as equipes menores da categoria principal, a Glikenhauss teve desempenho discreto, mas ainda assim conseguiu finalizar a corrida à frente dos Porsches e Peugeots. Já Floyd Vanwall teve uma participação tão apagada, que muitas vezes era confundido com carros da LMP2, além de não ser dos carros mais bonitos do grid.
No fundo todos conseguiram cumprir com seus sonhos de participar da edição centenária das 24 Horas de Le Mans, e no meu caso ficou a vontade de voltar em 2024 e seguir vivendo este interminável sonho de estar em uma corrida dessa magnitude. No próximo ano BMW e Audi devem reaparecer e o regulamento mais estabilizado deve aproximar ainda mais os competidores ao longo da corrida. A conferir!
GB