Na Semana Nacional de Trânsito o tema escolhido para 2024 pelos votantes no site do Ministério dos Transportes é: Paz no Trânsito Começa por Você. Mas quem é o VOCÊ na frase? O entendimento lógico seria que todos nós somos responsáveis pela paz no trânsito, principalmente num país como o nosso onde morrem mais de 30.000 pessoas todos os anos. Uma média de 94 mortos por dia, segundo a ong Observatório Nacional de Segurança Viária (OSNV).
É GRAVE! Uma morte no trânsito a cada 15 minutos. Isso significa que até acabar de ler este texto, mais uma pessoa terá perdido a vida e espero que não seja você, ou alguém de sua família ou relação direta.
Mas a baixa representatividade desse tema já começa no próprio número de votantes: apenas 4.135 brasileiros se preocuparam em votar, e 1.689 escolheram a frase acima. Será que isso já não é um fator importante para o M.T. se preocupar com a falta de interesse pelo assunto que existe em nossa população?
As outras frases eram:
– A vida pede calma no trânsito
– No trânsito, gentileza faz a diferença
Qualquer das frases acima poderia ter sido a escolhida, mas nenhuma atacaria os problemas estruturais e culturais que temos em nosso país e que em nada contribuem para que esse número de mortos diminua consideravelmente. Nem mesmo o Dia Mundial Sem Carro (22 de setembro) ajudaria, pois a maior parte dos mortos são motociclistas (~35%). E o outro absurdo desse dia é que nosso país é carente de transporte público, portanto decretar um dia sem carro é o mesmo que obrigar todos a ficarem em casa, ou aumentar a poluição com o transporte público movido a óleo diesel circulando mais carregado.
Todas as peças publicitárias disponibilizadas pelo Ministério do Transporte buscam a conscientização de motoristas e ciclistas, porém falta a responsabilização do próprio poder público – Fonte: Ministério dos Transportes
Só mensagens e campanhas de conscientização não resolvem. É certo que o número de mortes no trânsito vem diminuindo nos últimos anos, mas faltam dados estatísticos para comprovar se essa diminuição é pelas atitudes mais seguras dos motoristas ou se pela maior segurança ativa e passiva embarcada nos veículos. Lembrando que desde 2014 os carros novos são obrigatoriamente equipados com pelo menos duas bolsas infláveis frontais e ABS como itens de série.
As novas regulamentações que vêm sendo impostas aos fabricantes de veículos colaboram para reduzir a gravidade dos acidentes e diminuem as sequelas nos envolvidos. Outros dispositivos, como frenagem autônoma de emergência evitam ou reduzem as consequências dos acidentes por falha humana.
Veículos mais seguros com motoristas mais conscientes é um caminho sem volta, e certamente é um grande contribuidor para a redução de mortes no trânsito. Este já seria um forte argumento para um programa sério de renovação de frota, que além de trazer mais segurança para as vias, diminuiria a poluição, já que os veículos mais modernos emitem menos, além de fomentar a economia e aumentar o nível de emprego. Mas será que isso é tudo que precisamos para sair da triste liderança mundial?
Ainda falta endereçar de modo mais contundente as falhas estruturais que temos em nosso sistema viário. O Ministério dos Transportes e suas autarquias fazem vista grossa quando o tema é segurança. Muitas vezes a vontade de arrecadar com multas é muito mais importante do que prover condições seguras para motoristas, motociclistas e pedestres.
Não faltam siglas para falar de trânsito no Brasil, mas falta muita ação. O Sinatran– Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, do Distrito Federal, dos estados e dos municípios que têm por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.
O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) é o órgão máximo normativo, consultivo e coordenador da política nacional de trânsito. O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran)é o órgão máximo executivo do Sistema Nacional de Trânsito, tem autonomia administrativa e técnica, e jurisdição sobre todo o território brasileiro. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) é o compendio de normas e regras que regem o trânsito de veículos de qualquer natureza nas vias do território nacional.
Mas na hora de construir nossas vias, os responsáveis são os estados, prefeituras e subprefeituras que contratam empreiteiras que parecem nunca terem lido uma simples regulamentação dos órgãos acima listado. Ou simplesmente ignoram para que a obra fique mais barata e o lucro a ser compartilhado seja maior.
Alguns erros são gritantes, como a largura das faixas de rolamento que não contempla o andar cambaleante dos veículos e muito menos a sua largura. É notório que para atender as regulamentações de segurança e a necessidade de conforto interno os carros precisaram crescer em comprimento e largura, e se as construtoras atendessem as dimensões mínimas estabelecidas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIIT, não teríamos problemas.
Ilustração obtida no site https://www.ebanataw.com.br/trafegando – clique com o botão esquerdo do mouse para abrir a imagem e ler a legenda
Mas isso não acontece. As vias têm sido espremidas para caber mais faixas de rolamento e tentar diminuir os quilômetros lineares de congestionamentos, mas o resultado é inverso. Enquanto o mais adequado seria construir vias coletoras e arteriais que dessem maior vazão ao fluxo de veículo, com maior segurança. Aquela expressão utilizada pelas rádios que ainda dão informações sobre o trânsito que o problema é o excesso de veículos, deveria ser atualizada para: há falta de vias.
Nas vias com faixas estreitas, os motociclistas ficam espremidos entre os carros, e enquanto a velocidade dos carros diminui a das motos segue intocável, aumentando o diferencial de velocidade carro x moto, o que aumenta as consequências para os motociclistas nos casos de acidente. Para isso em algumas vias da cidade de São Paulo inventaram a faixa azul, exclusiva para motocicletas. Novamente a falta de dados estatísticos confiáveis deixa a dúvida se isso ajudou ou não. A propaganda política diz que ajudou, mas é a mesma propaganda que prometeu muitas melhorias e legados com a Copa de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. Cadê?
Lombada e sua sinalização
O CTB, no seu artigo 94, proíbe a construção de lombadas, exceto em casos excepcionais.
Art. 94. Qualquer obstáculo à livre circulação e à segurança de veículos e pedestres, tanto na via quanto na calçada, caso não possa ser retirado, deve ser devida e imediatamente sinalizado.
Parágrafo único. É proibida a utilização das ondulações transversais e de sonorizadores como redutores de velocidade, salvo em casos especiais definidos pelo órgão ou entidade competente, nos padrões e critérios estabelecidos pelo Contran.
O Brasil tem leis e regulamentações demais e que não são cumpridas. Essa excepcionalidade para implantação de uma lombada e suas condições mínimas de segurança são sistematicamente ignoradas, a começar pelas dimensões, onde apenas dois tipos de lombadas poderiam ser construídos.
A lombada Tipo I só poderia ser construída em vias locais onde se deseja uma velocidade máxima de 20 km/h e não tenha circulação de linhas regulares de transporte público.
A Tipo II seria para utilização em rodovias rurais ao atravessar trechos urbanos com o intuito de limitar a velocidade a 30 km/h. Ou qualquer trecho de vias coletoras para o mesmo objetivo.
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Mas o que vemos no dia a dia é o aumento irracional de lombadas, sem critérios, sem padrões de formas e dimensões, algumas depois de curvas, muitas no final de descidas que obriga os motoristas a acelerarem mais na subida subsequente, poluindo o meio ambiente. E para não falar da falta de sinalização horizontal apagada pelo tempo devido ao uso de tinta de péssima qualidade que se deteriora rapidamente com o atrito dos pneus dos veículos.
Faixa de pedestre
Cerca de 15% das mortes no trânsito envolvem pedestre, e a preocupação em sinalizar bem uma faixa de pedestre é tão omissa quanto as lombadas, porém neste caso é pior devido seu potencial de gravidade. Enquanto uma lombada mal sinalizada pode danificar um carro e este vir a perder o controle e causar uma fatalidade, uma faixa de pedestre mal localizada ou mal sinalizada é quase que uma sentença de morte.
Uma situação como esta, aparentemente sem gravidade, pode facilitar a ocorrência de acidentes graves. Esta situação é suficiente para o Ministério Público mandar interditar a via pois segundo do CBT, a Lei Federal n0 9.503 determina: “Art. 88. Nenhuma via pavimentada poderá ser entregue após sua construção, ou reaberta ao trânsito após a realização de obras ou de manutenção, enquanto não estiver devidamente sinalizada, vertical e horizontalmente, de forma a garantir as condições adequadas de segurança na circulação.”
Para atender as demandas da sociedade as subprefeituras acabam pintando faixas de pedestres sem critérios. É comum ver no mesmo quarteirão duas a três faixas pintadas no asfalto e sem a correspondente sinalização vertical antecipada para alertar o que vem à frente.
Então, quem é o VOCÊ?
Como deu para perceber nestes exemplos de problemas estruturais das vias do nosso país, o VOCÊ é muito mais do que o motorista, motociclista, ciclista ou pedestre. O poder público tem uma parcela muito grande nessa responsabilidade ao não prover aos cidadãos o que ele preconiza em todos seus manuais e cartilhas.
Se a Semana Nacional de Trânsito determinasse que a partir de hoje tudo que for construído ou reformado no Brasil tem que cumprir estritamente com o que está escrito pelo DNIT, acredito que demoraríamos mais de 30 anos para ter 100% de vias seguras. Isso é possível? Sim, é possível, basta querer. Mas vai dar trabalho. Talvez a condução autônoma dos veículos se popularize antes e elimine a variável ser-humano ao volante da equação de causadores de mortes no trânsito.
Novamente temos que salientar que sem um estudo continuado do número e gravidade dos acidentes, localidades, pessoas e condições envolvidas não é possível estabelecer uma campanha que ataque as reais causas das mortes no trânsito. Enquanto isso não acontece tenho certeza de que seguiremos vendo o Ministério dos Transportes e seus subordinados transferindo a responsabilidade para outros (nós).
GB