Muito do que se conhece do Chevrolet Corsa no Brasil refere-se à sua chegada triunfal em fevereiro de 1994, e foi com grande pompa que a GM levou 250 pessoas entre jornalistas e seus acompanhantes, de todas as partes do Brasil para Barcelona, Espanha para conhecer e testar o novo carro na pista que abrigava, na época, a pré-temporada da Fórmula 1 e o Mundial de Motovelocidade. Ayrton Senna fazia ali a primeira aparição ao volante do Williams FW16 que em menos de três meses lhe tiraria a vida no brutal acidente no GP de Sam Marino, em Imola.
O AE já retratou a história do Corsa de diversas maneiras nas matérias abaixo, (links) mas o que eu gostaria de trazer é uma visão dos bastidores desse desenvolvimento, o que faço agora.
CORSA: A TRAJETÓRIA DO HATCH QUE REVOLUCIONOU O MERCADO DOS POPULARES
O CORSA NO BRASIL
CORSA GSI 1,6-L 16V, UM NEOCLÁSSICO PARA RELEMBRAR (COM VÍDEO)
Enquanto para muitos aquela semana era tida como o início de uma nova fase, para nós, então engenheiros da GM, aquela semana era o final de um trabalho de mais de três anos. Sim, o desenvolvimento do Corsa Wind, originalmente conhecido como projeto 2000, depois rebatizado para 4200, começou bem antes do lançamento.
O Corsa chegaria para substituir o Chevette e viria com motor 1-litro, pois a versão Junior do Chevette não caiu nas graças do público. Era necessário um novo carro, com arquitetura moderna, de tração dianteira, motor transversal, bom espaço interno e tamanho compacto. E a parceria de sucesso da GM do Brasil com a Opel, que na época era o braço alemão da General Motors Corporation, indicava que o caminho a seguir seria tropicalizar o recém-lançado Corsa “B” produzido na Espanha.
As primeiras “mulas” (jargão da indústria que significa veículos de testes com mecânica nova e carroceria antiga para economizar dinheiro em protótipos caríssimos) foram construídas com carroceria do Corsa “A” da Opel e tiveram suspensão, freio, motor e câmbio atualizados para as especificações do novo Corsa brasileiro, o “B”.
Eram poucos protótipos de teste. Praticamente um para desenvolvimento de suspensão, direção e pneus, outro para freios, dois para calibração de motores e mais um compartilhado entre arrefecimento, ruídos e vibrações, e bancos. Somente os sistemas não afetados pela forma da carroceria eram desenvolvidos nessa fase. E o foco estava nos componentes nacionais produzidos por fornecedores locais.
Eu exercia a função de engenheiro de desenvolvimento das linhas T e V no Campo de Provas da Cruz Alta (CPCA), e a chegada do novo Corsa, como linha S substituiria a linha T (Chevette). A linha V era o Opala/Caravan e posteriormente Omega. Fiquei encarregado de coordenar o programa de testes da nova plataforma, além da responsabilidade do desenvolvimento dos sistemas de direção, suspensão, rodas e pneus.
Foram longos meses de trabalhos com aquelas “mulas” e a colaboração entre os engenheiros era fundamental. A quantidade limitada de veículos e a necessidade de experimentar as soluções encontradas em outras unidades, para isso havia um compartilhamento de carros. Muitas vezes usei o carro de calibração de motor, enquanto o meu carro era usado para ter uma segunda ou terceira medida de consumo, desempenho ou emissões.
A cada fase de calibração da suspensão ou do motor, peças atualizadas eram instaladas em todos os veículos para que todos pudessem avaliar e dar sua colaboração ao trabalho da outra área. Nos meus 30 anos de trabalho na GM, foi uma fase bem gratificante e de grande aprendizado.
Meu carro recebeu uma calibração atualizada do sistema de injeção que limitava o giro do motor em 6.200 rpm. Foi uma tristeza, pois até então o motor girava fácil, fácil até 7.000 rpm. A informação que veio do dinamômetro de motores era que essa limitação era necessária pois já havia relatos de quebra de motores devido à flutuação de válvulas e consequente danos nelas ao serem atropeladas pelos pistões.
Logo após essa atualização havia a programação de testes de temperatura de amortecedores realizada na cidade de Pirapora, no norte de Minas Gerais, Uma região às margens do rio São Francisco onde a temperatura ambiente está sempre acima de 30 ºC, numa estrada de terra com muitas pedras e que tinham intermináveis “costelas de vaca”, aquelas ondulações baixas em sucessão, o cenário ideal para aquecer os amortecedores.
Meu carro ficou com o engenheiro de motores e peguei o dele para usar no teste de amortecedor. Para minha surpresa, o dele ainda não tinha o corte de giro do motor e pude dirigir os mais de 900 quilômetros entre o CPCA e Pirapora usando e abusando da rotação do motor. Com isso a viagem foi bem rápida e outros veículos que foram fazer testes conjuntos (Omega e Vectra) não precisaram me esperar nas subidas.
O motor 1,0 de quatro cilindros, aspiração atmosférica, oito válvulas e injeção monoponto de 50 cv a 5.800 rpm e 7,8 m·kgf, a 3.200 rpm foi muito bem. Às vezes utilizávamos a estratégia de andar no vácuo um do outro para não perder o embalo. No retorno, apenas comentei com meu amigo que gostei muito do carro dele…
Chegam os protótipos
Os protótipos, com carroceria final, chegaram e foram distribuídos para as áreas que precisavam da carroceria para seu desenvolvimento. O sistema de ventilação interna e ar-condicionado era um deles, pois além de precisar do volume interno da cabine, precisa também da grade frontal e das entradas e saídas de ar da cabine para realizar seu trabalho.
A área de NVH (Noise, Vibration and Harshness – ruído, vibração e aspereza) também precisava da carroceria final e da suspensão e pneus definidos para fazer o desenvolvimento de coxins de motor, câmbio e escapamento em casamento com a calibração final do motor. Os isolantes internos e externos da carroceria também são desenvolvidos nessa fase, em conjunto com os fornecedores locais.
O engenheiro de arrefecimento, que já vinha trabalhando com uma “mula”, utilizava o protótipo final para validação final do conjunto radiador/ventilador com o último nível de calibração do motor.
Pelo lado de desempenho os engenheiros verificam a influência (ganhos e perdas) da nova carroceria na aceleração 0-60, 0-80 e 0-100 km/h, além de conferir a velocidade máxima que será divulgada na ficha técnica.
Fase piloto de produção
Os primeiros carros de produção foram montados na linha de montagem piloto de São Caetano do Sul, onde os engenheiros de processo validam a sequência de montagem. O chassi 000001, um Corsa Wind prata, hoje pertencente ao colecionador Alexandres Badolato foi o primeiro a ser montado. Na hora de montar o amortecedor traseiro, a folha de processo indicava sequência errada das borrachas e arruelas de fixação, o que foi prontamente alertado e corrigido.
Os carros foram sendo montados a princípio um a cada três dias, depois um por dia, até chegarem na linha final de São José dos Campos que estava dimensionada para 14 carros por hora. Alguns veículos foram encaminhados para o CPCA para testes de durabilidade e corrosão, visando validar o processo de solda, tratamento superficial e pintura. Outros carros foram para a equipe de publicidade e propaganda para preparar as fotos e vídeos da campanha de lançamento. Outros para o pessoal de pós-vendas para o treinamento da rede de concessionárias, e assim por diante.
Alguns veículos do CPCA tiveram a missão da primeira viagem de avaliação em campo aberto e vida real. Uma camuflagem leve foi desenvolvida pelo pessoal do departamento de Design para esconder os logotipos Chevrolet, sendo substituídos por um genérico desenvolvido a nosso pedido. O objetivo era ver o comportamento do carro em situações do dia a dia, sob a condução de motoristas de diversas áreas da empresa. Foram cinco dias de viagem CPCA-Porto Alegre-CPCA, com direito a passagem pela Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, Serra da Graciosa, no Paraná e outros locais típicos do sul do Brasil.
Praticamente não fomos descobertos pelos jornalistas e fotógrafos de plantão e nenhuma imagem apareceu na imprensa. Uma vitória para nós. Mas alguns problemas foram encontrados, e os carros produzidos até aquela data tiveram que ser atualizados antes da entrega às concessionárias.
O resultado dessa viagem foi tão bom que o gerente de Imprensa, Chico Lelis (hoje colunista do AE), pediu para que fizéssemos outra viagem com a equipe de propaganda e marketing da GM, Frederico Themoteo e Elizabeth Moscato, para eles conhecerem o veículo, uma importante providência. E lá fomos nós novamente organizar outra viagem, desta vez de apenas dois dias saindo do CPCA, até Curitiba e retornando. Aliás, o Chico foi o capitão da parte de imprensa do lançamento — inesquecível, segundo o Bob, que estava lá como editor de testes e técnica da revista Autoesporte,
Lançamento
O final do ano se aproximava e a festa de lançamento já tinha data e local marcado: Barcelona. Os convites e reservas de passagens já estavam encaminhados pela equipe de eventos, e os 40 carros que seriam utilizados no test drive estavam todos no CPCA para amaciamento de motor e check-up final antes do embarque.
Durante a fase de amaciamento de motor sentimos que à medida que o motor era amaciado o desempenho melhorava. Resolvemos medir a evolução, e a cada 500 km mediamos o 0-100 km/h e velocidade máxima. Bingo! Plotamos os resultados e vimos que a evolução era grande até 3.000 km e seguia até 5.000 km. Depois dessa quilometragem os ganhos eram desprezíveis. A decisão foi amaciar todos os carros até 3 mil km antes de embarcá-los.
Essa decisão custou a toda equipe de preparação, da qual eu fazia parte, trabalhar no período de férias coletivas entre o Natal e Ano Novo. E foi assim que fizemos para ter todos os carros prontos para embarcar no navio que sairia do porto de Santos na primeira semana do ano. As revistas especializadas foram ao CPCA antecipadamente para dirigir o novo carro e fazer suas próprias fotos, visto que o tempo para edição das revistas era mais longo do que os jornais. Na época a internet ainda engatinhava como ferramenta de comunicação apenas, sem os recursos audiovisuais que temos hoje.
Enquanto o evento em Barcelona transcorria sem maiores problemas, a nossa atenção estava para as impressões ao dirigir que estavam sendo publicadas, mas o meu foco, como engenheiro de desenvolvimento, já havia mudado de direção. Afinal, tínhamos muito trabalho nos projetos 2010 que era o Corsa com motor 1,6-l; o 2040 era a versão GSi; projeto 2020, que era a picape Corsa; o 2030, o Corsa 5-portas; o 2080 era a camioneta Corsa Wagon; e o 2060 o Sedan, versão totalmente desenvolvida no Brasil — a Opel não o possuía. Foi o último da plataforma a sair de linha, já com o nome alterado para Chevrolet Classic.
O Corsa Wind foi lançado e teve um sucesso estrondoso, chegando ao ponto de o vice-presidente da GM, André Beer, vir à público pedir que não pagassem ágio pelo carro. A produção inicial de 14 carros por hora foi sendo aumentada até atingir a marca de 40 carros por hora, mostrando que entre tantos acertos que o projeto teve, o dimensionamento da produção foi errado.
E assim nasceu um carro totalmente novo, ou Fora do Sério, como dizia sua primeira campanha publicitária e que teve vida longa…
GB