A Itália tem muitas atrações, mas catedrais e edifícios milenares acabam por cansar um pouco, e por isso a Sra. Jorge concordou com uma visita especial e diferente do padrão “100% turista comum”.
Perto de Milão, apenas um pouco ao norte, fica a cidade chamada Arese, numa região que se pode chamar de “Grande Milão”. De fato, tudo está interligado, como São Paulo e São Bernardo do Campo, pois não há espaço sobrando. As estradas têm faixas estreitas, as ruas também, e chegamos ao museu da marca milanesa Alfa Romeo. Fica a cerca de 40 quilômetros do aeroporto de Malpensa, o maior da região.
A arquitetura agrada, pois não se anda por corredores sem-fim de carros, tudo está exposto em diferentes salas de tamanhos, formas e iluminação de vários tipos, algumas delas tornando difícil fotografar por não terem luz bem distribuída.
O primeiro pavimento tem uma linha curva com modelos de várias épocas, dando uma visão geral da evolução da marca, ao mesmo tempo em que se olha um nível de piso abaixo, ou meio nível, e carros bem mais novos estão nos chamando para serem apreciados.
Depois se desce para uma área de sonho onde estão os carros-conceito, onde vejo de perto, sem nada em torno dele, ao alcance de minhas mãos, o Carabo, desenho do maior estilista de todos os tempos, Marcello Gandini, nascido em 1938 e falecido recentemente, em 13 de março último. Os céus têm mais chance de ter grandes melhorias visuais agora que ele está lá.
Impressiona a altura muito reduzida e a cara de futuro que esse carro tem, não dando dica que foi construído em 1968 (contem comigo: 56 anos atrás!). Foi nele que Gandini criou as portas com abertura em forma de tesoura, que seriam adotadas pela Lamborghini no Countach. Sim, o Countach também foi estilizado por ele. No carro há um emblema do estúdio Bertone, apenas porque foi onde Gandini trabalhava quando o desenhou, e por esse motivo muita gente confunde o criador do Carabo. Não se engane, foi obra de Gandini, o maior dos maiores quando se considera a qualidade e quantidade de criações. Veja a lista do que ele realizou no texto da Wikipedia, clicando aqui.
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Outros conceitos fabulosos estão junto dele, como o Disco Volante (disco voador em italiano), de 1952, lindo, puro, esportivo, quase um carro de corrida, pequeno, liso, adjetivos não fazem justiça a aparência dessa obra. Gostaria de ver a versão com carroceria fechada, já que apenas o spider estava exposto.
Outro mais moderno, o Iguana, esse concebido por Giorgetto Giugiaro em sua empresa Italdesign, templo sagrado do estilo italiano. Giugiaro desenhou não apenas carros, mas caminhões, bicicletas, máquina de escrever, cafeteiras, câmeras fotográficas e ate mesmo macarrão. Sua imensa arte tem centenas de obras de todos os tipos, algo sempre rico de se explorar. Veja mais algo dele aqui, nesse texto.
O ano de 1969 viu o 33/2 Coupe Speciale chegar, criado pelo estúdio Pininfarina num amarelo pálido que valoriza suas linhas rua-corrida de forma notável. Tudo nele é fantástico, desde as simples lanternas traseiras até a enorme tampa do motor que é apenas um simples vigia emoldurado que chega bem perto da traseira do carro.
Como esses estudos feitos por empresas externas não devem ser nada baratos para a fábrica, depois de algumas décadas a Alfa Romeo partiu para ter carros desenhados dentro de casa, e o Nuvola (nuvem na língua de Dante) é um conceito feito dessa forma em 1996. Já menos aventuroso que os carros anteriores, tem motor dianteiro e pouca emoção, com um desenho realmente simples.
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O 40/60 HP era um carro de rua e corrida que o conde Marco Ricotti pediu para o encarroçador Castagna construir, com inspiração puramente na boa aerodinâmica. O modelo exposto é uma réplica do real, feito em 1914. Talvez o primeiro monovolume da história. Com apenas 73 cv chegava a 139 km/h, mesmo mantendo o radiador original vertical alojado em uma “caverna” e uma área frontal nada pequena. Isso foi 110 anos atrás, notem.
Um dos meus preferidos da marca foi estilizado por alguém não muito conhecido, Franco Scaglione. A Alfa o contratou para vestir chassis e mecânica do modelo de corridas 33, dito Tipo 33 (uma família de carros ao longo dos anos, na verdade), e Scaglione conseguiu fazer um carro de motor central-traseiro não ficar com a dianteira curta demais. No museu é possível olhar o 33 Stradale por cima, e fica fácil ver que o banco do motorista fica bem no meio do comprimento do carro, com o motor V-8 de apenas dois litros logo atrás. Verdadeiramente maravilhoso, ainda mais considerando os detalhes bastante crus, para lembrar todo tempo que a origem veio de um carro de corrida, mas que pode andar nas ruas pois atende toda a legislação da época em que foi concebido. Aliás o nome stradale significa isso mesmo em italiano, um carro “estradável”.
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Curioso notar que a mesma mecânica e chassi dos 33 de corrida foram usadas por Giugiaro (Italdesign), Scaglione e Gandini (Bertone), para fazer cinco carros diferentes.
São eles, Iguana, Carabo, Stradale, Cuneo e Navajo, esses dois últimos não expostos quando visitei o museu, mas que fazem parte do acervo que tem 70 carros expostos, além de barcos e aviões, mas conta com mais 150 modelos guardados, cujo acesso é permitido em algumas datas — a frequência em que isso ocorre é bem baixa, sendo necessário ficar de olho no site do museu ou se inscrever para receber noticias. Há também motores e outros itens históricos da marca milanesa.
E falando em corridas, há uma das mais espetaculares sequências de carros de corrida de uma mesma marca que já vi, e entre tanta coisa boa, um par me deixou extasiado. Trata-se de dois exemplares do mesmo modelo, o 512 de Grand Prix, um com todas as carenagens, e outro sem nada, permitindo ver toda estrutura e mecânica. Foi o primeiro da marca com motor atrás do piloto, como o Auto Union já vinha fazendo desde o P-Wagen de 1934, mas os testes iniciais perderam prioridade com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial em 3 de setembro de 1939. O 512 foi desenvolvido sob o comando do espanhol Wifredo Ricart, que posteriormente criaria sua empresa, a Pegaso, cujos modelos de grã-turismo são de alto valor hoje. Esse 512 sem cobertura constitui-se num espetáculo para quem gosta de mecânica. Nele se entende claramente quando se dizia que o piloto sentava no tanque de gasolina. Para tornar tudo mais assustador, tubos de água quente passam ao seu redor, indo e voltando do radiador, na frente, para o motor traseiro.
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Mas como a guerra chegou, as prioridades foram outras, e o 512 ficou apenas como protótipo que nunca correu.Depois do conflito muito voltou a ser feito como antes, devido às verbas que pouco abundavam para muitas empresas, ou seja, inovar sempre foi caro e a hora não permitia gastar muito. Isso se evidencia no 159 GP Alfetta de 1951, ainda com motor dianteiro, que também pode ser apreciado sem as carenagens. Seu motor de 8 cilindro em linha 1,5 litro com compressor de 2 estágios desenvolvia 425 cv.
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O Giulietta Berlina 750 C 1955, de quatro cilindros e 102 cv teve uma produção considerável. Cerca de 178 mil deixaram a fábrica de Arese, vendendo bem para a marca, já que combina a praticidade das quatro portas com esportividade, já que alcançava 165 km/h. Um belo exemplar em cor laranja róseo está exposto. Note que a área envidraçada, que pode ser chamada de estufa (greenhouse) se parece muito com a do Renault Gordini. Veja essa comparação abaixo, notando a inclinação do para-brisa, a forma das janelas, a coluna B e a C, junto do vidro vigia.
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Outro que foi feito para as grandes massas foi o Alfasud, apresentado em 1971. Com estilo de Giugiaro, tinha também notável dinâmica, com seu baixo peso de 830 kg em ordem de marcha e baixo centro de gravidade ajudado pelo motor boxer. Nosso editor de automobilismo Wagner Gonzalez teve um desse na Europa, comprado usado de um certo Ayrton Senna da Silva. Para quem ainda não sabe, Wagner foi assessor de imprensa de Senna no começo da carreira dele na Europa. O Alfasud tem uma legião de fãs, que hoje em dia restauram seus carros com tratamentos contra corrosão muito superiores aos da época em que o carro era fabricado, eliminando a possibilidade de serem desintegrados pelas intempéries, forma como desapareceu boa parte dos pouco mais de 900 mil produzidos. Minha opinião sobre ele? Deveria ter sido o escolhido para ser feito no Brasil, em vez do carro com estilo derivado do Alfetta, batizado de 2300 para os brasileiros.
O Alfetta desperta boas memorias. Muito similar em aparência, o 2300 por aqui era um carro de mecânica diferente, apesar do estilo da carroceria ter sido a escolhida para o Brasil. O exemplar do museu tem motor 1,8-litro de quatro cilindros, com apenas 1.060 kg de peso, mas podia também ter o V-6 de 3 litros. O carro brasileiro sempre teve o quatro cilindros de 2,3 litros, oriundo do modelo 1900 da década de 1950 e modernizado para maior cilindrada. Nosso carro era maior e consequentemente, mais pesado, tendo eixo traseiro rígido, enquanto que o Alfetta tinha o cambio na traseira, tubo de torque transmitindo potencia do motor para o cambio, e suspensão De Dion.
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Os 6C são outra linha interessante, esses com os seis em linha de pouco mais de 105 cv. Muito raro e de alto valor, a versão Villa D’Este teve apenas cinco unidades fabricadas entre 1949 e 1951. Tem um desenho limpo, com apenas alguns vincos longos e curvos para temperar as linhas.
Há uma parte grande num dos pisos para mostrar a linha Giulia, bastante complexa e facílimo de causar confusão com os nomes se você não for verdadeiramente um entusiasta da marca. O SS – Sprint Speciale – com seu desenho “ame ou odeie” representa atualmente o modelo mais valioso da linha, mas podia ser comprado por um décimo dos valores de hoje há menos de 15 anos. Faz de 0 a 100 km/h em pouco mais de 11 segundos, chegando a 202 km/h de máxima.
Outro Giulia dos preferidos dos colecionadores e o Sprint, tanto na versão básica como na GTA com apenas dois faróis. Ha também versões de corrida na área para esse tipo de carro. O estilo de Giugiaro parece ser o preferido de muitos. Para mim a traseira caída e estreita, denotando um pequeno porta-malas não agrada, mas entendo a logica do estilo e paixão de muitos. Lembro de descer a serra de Águas de Lindoia muitos anos atras cheirando o escapamento de um deles, que deixava um rastro de hidrocarbonetos bastante perfumado.
O meu preferido dos Giulias, como não poderia deixar de ser, tinha que ser o mais estranho deles, o Junior Z, de Zagato, estúdio de estilo localizado em Milão como a Alfa Romeo. Tem a dianteira coberta por acrílico transparente, com aberturas para ventilação do motor. Deste, foram feitos 1.510 unidades de 1969 a 1975, como motor de 1,5 litro e 103 cv. Lembro dele da capa de um dos primeiros fascículos da “Enciclopédia do Automóvel”, obra italiana publicada no Brasil pela Editora Abril. Uma coleção fascinante para o pequeno Juvenal, naqueles tempos de infância. Escaneei a foto dessa capa e a inclui aqui na galeria para que vocês vejam o que vi ainda bem pequeno. Sim, eu guardei as capas dos fascículos depois que eles foram encadernados, em 1976!
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Outro modelo Giulia com estilo Zagato esta presente com o TZ2 , T de tubolare, ou tubular, denotando o tipo de construção de seu chassi. Tem a traseira cortada (coda tronca) para diminuir a sustentação causada pela diferença de pressão do ar por cima e sob o carro. Antes desse houve o TZ, ainda mais belo de meu ponto de vista, exposto junto dos Giulias.
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O Montreal em cor laranja (foto abaixo) atrai de longe, sendo excepcionalmente interessante. Lembro de um desses na minha infância em São Paulo. Bons tempos em que um carro assim podia ficar horas a fio estacionado na rua sem problemas, e isso em um bairro classe-média padrão, sem seguranças particulares nas ruas. O estilo é mais uma vez de Gandini, quando trabalhava na Bertone. Ele partiu do motor V-8 de 2,5 litros e 200 cv de origem no programa de corridas que gerou os modelos 33, para apresentar o carro em 1970. Foram feitos apenas 3.925 Montreal.
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Há alguns modelos da famosa e vitoriosa família 8C presentes. Um deles chamado de LeMans, de 1934 a 1938. Apenas cinco foram fabricados. O outro tem carroceria aberta, padrão da época, para a famosa Mille Miglia. Eram muito velozes 90 anos atrás, chegando a cerca de 210 km/h com seus 225 cv do motor de oito cilindros em linha nesse modelo fechado e bastante aerodinâmico. Para completar, uma versão luxuosa para viagens em alta velocidade, o 8C Lungo (longo) de 1938.
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Um carro de corrida que muitos se lembram de ter visto em ação, o 155 V-6 TI do DTM (Deutsche Tourenwagen Meisterschaft, o Campeonato Alemão de Carros de Turismo) se apresenta soberbamente intimidante e belo. Na foto de abertura da matéria e abaixo, um dos mais incríveis carros de uma das mais competitivas categorias de todos os tempos. Há um motor dele ao lado, onde se vê uma minificha técnica, V-6 de 2,5 litros que gera 400 cv a 11.500 rpm para apenas 1.060 kg de automóvel como peso total, mesmo com tração nas quatro rodas. Venceu 11 das 22 corridas do campeonato de 1993, sendo campeão com Nicola Larini, que também andou na Formula 1.
No final do caminho há uma loja com itens da marca, e vários livros, a maioria em italiano. Esperava mais miniaturas, mas certamente quem compra os itens para a loja não deve fazer muita pesquisa, pois são poucas opções. Preços me afugentaram rapidamente.
Um restaurante bastante decente e de preço razoável permite que se encha o nosso tanque pessoal com energia para mais um tempo andando entre as maravilhas do museu.
Há muito mais para se apreciar no museu da marca do coração esportivo, e o se o leitor tiver a oportunidade de ir para a “terra da bota” não deve perder a visita.
Site do museu AQUI.
(Atualizada em 26/5/24 às 21h10, correção no texto onde o Alfa Romeo 2300 brasileiro é citado)
JJ