Para um fanático por carros, sejam eles antigos, modernos ou especiais, um museu de automóveis parece ser o melhor lugar na face da Terra. E muitas vezes é, pois é em um museu que podemos conhecer melhor os veículos do passado e a sua história. O mais novo museu brasileiro de automóveis, no entanto, vai muito além de contar a história dos carros, já que ele conta uma parte da história do Brasil, sob a perspectiva dos veículos que fizeram parte da história.
O Carde, museu que acaba se ser inaugurado em Campos do Jordão e que está inserido em uma floresta de araucárias na Serra da Mantiqueira, em São Paulo, reúne carros, arte, design e educação. Daí o nome Carde (pronuncia-se “cardê”).
Já no enorme saguão de entrada, o raro Uirapuru, uma das peças mais importantes na história brasileira do automóvel, aparece no alto de um cajueiro, com folhagens de crochê, e adornado com pintura indígena. Só isso já dá a ideia do que ainda vem.
A partir desse saguão, todo cercado por obras de arte com motivos bem brasileiros e coloridos, nove salas temáticas, que interagem com o visitante, mostram um ou mais veículos em meio a acontecimentos históricos de sua época, a partir da proclamação da República no Brasil.
Começando com a sala “República em Construção | 1889-1930”, um dos carros mais antigos da mostra é o Cadillac Model M Coupe 1907, cuja particularidade é ter carroceria fechada para duas pessoas, numa época em que os automóveis mais comuns eram os Touring, abertos.
Ao seu lado, está um Benz 10/30 PS Limousine Landaulet de 1912, um carro maior e mais potente, com motor de quatro cilindros de 30 cv. A configuração Landaulet permitia abrir a parte traseira da carroceria, um resquício dos tempos das carruagens. Outra joinha do museu Carde é o Hispano-Suiza 30-40 HP Series 95 de 1911, exposto no centro da sala. Seus detalhes dourados são únicos.
Em um canto, o Rolls-Royce 20 HP Tourer de 1927 contrasta com um Voisin C3 L Coupé Chauffeur Limousine Transformable, também de 1927. É que o carro francês, que foi encarroçado por Belvalette, é único no mundo e é completamente original, sem qualquer restauração ou modificação. Foi descoberto recentemente ainda com a mesma família, que o adquiriu zero km. O inglês, ao seu lado, foi fabricado sob encomenda por um banqueiro do Rio de Janeiro, que, na época, era representante da Rolls-Royce no Brasil. Foi encarroçado pela Hooper.
As marcas Cord, Duesenberg e Auburn eram as mais prestigiadas nos Estados Unidos nos anos 20 e 30, pertencentes ao mesmo grupo. Seus carros são fantásticos e também estão presentes no Carde. O Auburn Phaeton Convertible Sedan de 1929 ocupa lugar de destaque no museu, assim como o Duesemberg e o Cord. Ter os três automóveis ao mesmo tempo e no mesmo local é algo excepcional, não é qualquer museu que consegue essa façanha.
Muito imponente, o Duesemberg Model J Limousine é considerado o mais espetacular automóvel feito nos Estados Unidos nessa época. O carro exposto no Carde, de 1930, tem um motor de oito cilindros em linha de 6,9 litros, com a incrível potência de 265 cv, o levando aos 190 km/h. Encarroçado pela Willoughby, essa limousine de sete passageiros só teve 20 unidades produzidas, restando apenas quatro delas.
E o Cord L-29 Cabriolet de 1931, também conhecido como Cord Front Drive (tração dianteira) foi uma tentativa de conquistar mercado entre seus produtos de preços tão elevados. Menos potente e ainda assim mais caro, não teve grande sucesso comercial.
A segunda sala visitada, “A Paris dos Trópicos”, conta uma história de amor. Nos anos 20, o empresário Henrique Lage remodelou uma propriedade e a transformou em um palácio, para presentear sua esposa, a cantora lírica Gabriela Besanzoni. Além do palacete do Parque Lage, no Rio de Janeiro, a cantora ganhou um Isotta Fraschini 1925, um dos automóveis mais luxuosos do mundo, na época, e que havia sido encarroçado pela prestigiada Carrozzeria Castagna, de Milão.
A terceira sala visitada, “O Desfile do Poder”, tem apenas três carros, o Volkswagen 1958 cabriolet no qual o presidente Juscelino Kubitchek inaugurou a fábrica brasileira da Volkswagen, em 1959, o Willys Itamaraty Executivo, feito no Brasil nos anos 60 para atender presidentes e governadores, e o Lincoln K 1938 Touring, feito sob encomenda para o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e que transportou várias personalidades, como o presidente Getúlio Vargas, Charles de Gaulle, a rainha Elizabeth II e o papa João Paulo II. Esse Lincoln K 1938 é um dos automóveis adquiridos pelo museu do maior colecionador de clássicos que conhecíamos, Og Pozzoli.
Seguindo a visita às salas temáticas do Carde, a próxima tem o nome de “Era Vargas: o Brasil entre ditadura e democracia | 1930-1954”. Nela, os automóveis mostram a opulência da época, retratada nos carros de luxo.
O Auburn 851 SC Phaeton Sedan de 1935 é o grande exemplo desse período. Marca centenária, a Auburn foi incorporada ao grupo Cord em 1925, que fazia também o lendário Duesenberg. O 851 SC tem motor Lycoming de oito cilindros em linha, com um compressor centrífugo Schwitzer-Cummins, que resulta em na potência de 150 cv.
Ao seu lado, um Daimler Light Straight Eight E4 Sedanca DeVille de 1939, com motor de quatro litros e oito cilindros em linha, de 70 cv. Sua particularidade é a carroceria inglesa de Gurney Nutting, com apliques de treliça nas portas.
Nessa sala, ainda temos o BMW 327 Cabriolet de 1938, uma joia da indústria alemã, em rara carroceria 2+2, e o Cadillac V-16 Series 39-90 de 1939.
O Chrysler Town & Country Convertible Coupe já do pós-guerra, de 1948, com um nome que deriva de uma série de utilitários anteriores ao conflito mundial, já que, como aqueles, o Chrysler também tem partes da carroceria de madeira.
A sala seguinte, “A voz da juventude e as novas linguagens | 1950-1960”, é um ambiente muito claro e com os carros bastante coloridos, talvez a sala que mais lembre um museu comum de automóveis, mesmo que com algumas pinturas na parede. Logo na entrada nos deparamos com um reluzente, muito vermelho e enorme Cadillac Eldorado 1955, conversível. À sua frente, uma Vespa com side-car e mais alguns ícones da época, daqueles que nunca esqueceremos.
O Chevrolet Corvette 1959 azul é a versão que eu mais gosto, com quatro faróis e traseira arredondada, mas o roadster ao seu lado dificultaria a escolha: um Mercedes-Benz 300 SL Roadster, versão descapotável e mais amigável do icônico Mercedes-Benz 300 SL Asa de Gaivota.
Um Porsche 356 Carrera no meio da sala seria para parar por aí, mas, nos cantos laterais, estão dois automóveis que são justamente o número 1 e o número 2 da minha lista de desejos. Eles, que não me permitem gastar mais tempo com o esportivo alemão, são o Aston Martin DB5 1963, o carro mais famoso do James Bond, e o Jaguar E-Type 1961.
Chegou a vez dos automóveis brasileiros. Na sala “Arquitetura do futuro | 1950-1960”, ambientada com motivos alusivos à capital do Brasil, Brasília, logo na entrada vemos, em destaque, um FNM 2000 JK. Ao seu lado, o primeiro carro nacional, o simpático Romi-Isetta, em uma versão 300 DeLuxe 1959.
Do outro lado, enfileirados, alguns dos modelos mais populares dos anos 60: um Renault Gordini 1964, um DKW-Vemag Belcar 1963, um Volkswagen Karmann-Ghia 1500 conversível, um Chevrolet Opala Luxo 3800 de 1969 e uma camioneta Rural Willys 4×2 Luxo de 1968.
Dois Willys Interlagos Berlinetas da Equipe Willys de competição ilustram a sala “O Brasil na pista”, que, em uma enorme tela, mostra cenas de corridas do passado.
Mais automóveis nacionais estão na sala “Os novos direitos e a consciência ambiental | 1970-1990”, desta vez os ícones da indústria dos anos 70 e 80. São os automóveis mais desejados pelos novos colecionadores (novos de idade), que viram seus pais, ou mesmo seus avôs, dirigirem os esportivos da época. Está bem, também desejados por velhos colecionadores, e mesmo por quem dirigiu esses carros algumas décadas atrás, e também sonham com um desses: Ford Maverick GT 1974, Ford Escort XR3 1985, Volkswagen Gol GTi 1989 e Chevrolet Kadett GS 1989.
Por fim, a última das nove salas temáticas no térreo do museu Carde, “Os visionários da tecnologia”. Ela é dedicada a João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que criou, 40 anos antes do atual movimento de eletrificação dos automóveis, o Itaipu E-400, um utilitário elétrico que tem a primazia de ser o primeiro automóvel elétrico produzido em série no Brasil
Acabaram-se as salas temáticas, mas ainda há muitos automóveis para serem contemplados, no andar superior. O amplo e bem iluminado salão mostra os veículos dispostos em categorias e cronologicamente. O primeiro veículo que vemos, ao subir a escada de acesso, é um Vespacar, triciclo de carga derivado do scooter Vespa dos anos 50, que ajudou a Itália a se reerguer após o fim da Segunda Guerra.
Antes de começar a galeria de automóveis de sonhos, brinquedos que geralmente fazem parte de coleções, vemos um Radio Flyer e um Isetta de pedal. Ao seu lado, o primeiro automóvel é, também, o mais antigo, de 1902: um De Dion-Bouton Type G Vis-à-vis. O carro seguinte, um Maxwell Model AB Runabout 1911, chegou a ser um sucesso comercial, na época.
Carros mais frequentemente vistos em exposições, ou mesmo em alguns encontros regionais, também aceleram os corações dos visitantes e dos antigomobilistas. Quem é que não para para admirar a beleza do Chevrolet Bel Air 1955 conversível?
E os mais conservadores conhecem e reverenciam um Mercedes-Benz 300 S Coupé, que teve apenas 216 unidades produzidas de 1952 a 1955. O Citroën ID 19 P Berline 1957 é outro exemplo de beleza exótica, como só essa marca francesa conseguiu produzir. O modelo exposto é mais raro, pois trata-se de uma versão simplificada do Citroën DS 19, criada para ser mais acessível.
Diferentemente do Jaguar E-Type Roadster exposto no pavimento térreo, este Jaguar E-Type Series 1 Coupe é uma versão fechada, mas ainda da primeira geração do modelo, que tinha motor de seis cilindros e os faróis cobertos. O E-Type Coupe ficou com a fama de ser um carro para casais sem filhos, pois levavam o seu cachorro na parte de trás.
No centro do salão, esportivos icônicos, como Jaguar, Lamborghini e Ferrari, e, entre os carros da marca italiana, o Ferrari 365 GTB/4 Daytona Berlinetta, que ganhou esse nome por ter vencido uma prova no circuito americano. É por isso que esse modelo é tão amado nos Estados Unidos, mas é também por causa do motor V-12 de 352 cv, que o levava a 280 km/h. Foi o automóvel mais rápido do mundo, em sua época.
Na galeria dos esportivos derivados de modelos de passeio, o destaque é para o BMW M5 E34, versão muito apimentada do sedãzão Série 5. O carro exposto é do último ano com motor de seis cilindros em linha de 340 cv, com câmbio manual de seis marchas. As rodas forjadas de 18 polegadas é exclusiva desse modelo. Ao seu lado, outro ícone entre os esportivados, a camioneta Audi RS 2 de 1994, com motor de cinco cilindros turbo de 315 cv, fruto da parceria entre Audi e Porsche.
Perdida no meio deles, a versão camioneta do Citroën ID, chamada de Citroën DS 23 Break 1974. Sua virtude era ter uma carroceria compacta com capacidade para transportar seis ou oito passageiros, conforme rearranjo dos bancos traseiros.
Ocupando um grande espaço do amplo salão superior do museu Carde, um automóvel chama a atenção. É um Pierce-Arrow Model 1703 7-Passenger Enclosed-Drive Limousine, nome tão longo quanto o carro, que tem um trailer atrelado. E é esse reboque que mais atrai a atenção, pois também tem a marca Pierce-Arrow, um Travelodge de 1937, mesmo ano do automóvel. A dupla carro+reboque, este com meros 5 metros de comprimento, deveria ser a sensação nas estradas, nos anos 30. Espécies bem difíceis de se ver em museus de carros.
Também como grande curiosidade, um Fusca comum justifica a sua presença no museu pela exagerada quantidade de acessórios, tais como defletor de ar sobre o capô, para desviar o ar do para-brisa, faróis de todos tipos, logotipos de clubes, bandeirinhas, buzinas cromadas e até o rudimentar ar-condicionado na janela, resfriado por vento e pedras de gelo. No interior, ventilador, luzinhas, rádios e uma cafeteira.
A galeria Volkswagen está bem representada no Carde. Mesmo que o primeiro veículo não seja um VW, e nem um automóvel, mas sim um trator. E fabricado pela Porsche. Esse estranho objeto é um trator Allgaier P 312 Porsche, produzido especialmente para os cafezais brasileiros, mais estreito do que o convencional e com uma carenagem especial de proteção, para não danificar os pés de café. O motor é a gasolina e não a diesel, para não contaminar os grãos de café.
O Kombi ao lado na verdade é um Volkswagen Tipo 2 T1 Transporter, criado em 1949 e com início de produção em 1950. Modelo raro e bem diferente dos últimos Kombi que conhecemos aqui no Brasil. Se o Kombi é Tipo 2, é porque o Fusca contemporâneo é o Tipo 1, que começou a ser produzido em 1945. O outro Fusca não é um modelo comum, mas sim um Hebmüller Tipo 14A Cabriolet, feito sob encomenda pela fábrica de carrocerias de mesmo nome, produzido de 1949 a 1953.
Se no pavimento térreo há nove salas temáticas, no segundo existe pelo menos uma: a que homenageia o colecionador Og Pozzoli. A sala exibe um de seus automóveis, o Chrysler Imperial L80 Traveller Dual Cowl Phaeton, de 1928, e um pequeno Austin de pedal. A sala conta a trajetória do maior colecionador de automóveis que o Brasil já teve, em sua época.
No pavimento térreo, em meio a portas de acesso às diversas salas, há uma cafeteria com três automóveis de competição dos anos 50 pregados na parede.
Na saída, alguns carros aqui e ali, como um Mercury 1951, um Ford Modelo T com caçamba de madeira, um Aero-Willys 1967 e um Ford 1940 com equipamento para rodar com gasogênio, uma solução utilizada nos automóveis durante a Segunda Guerra Mundial, quando a gasolina era escassa. Queimava-se carvão para o gás produzido alimentar o motor a combustão.
Mais adiante, dois tratores antigos, um Lamborghini e um Porsche e, em um ponto de táxi estilizado, ao lado de um ônibus antigo da Fundação Lia Maria Aguiar, peguei carona com um DKW-Vemag Pracinha, um Volkswagen Pé-de-Boi e um Renault Teimoso.
No final da visita, deixei o meu autógrafo no livro de ouro do museu, que é nada menos do que um Cord 1937 de verdade, dentro de uma redoma de vidro. Ficou para a posteridade!
GM