Em recente matéria contei do Karmann-Ghia cinza-chumbo do Tio Roberto. Contei também que antes de tomar juízo, por um breve período seguiu seus ímpetos juvenis e deu lá suas cacetadas. Teve sorte de escapar vivo e sem seqüelas.
Ele gosta de carros e sempre guiou muito bem. Aprendi muito com ele, principalmente a guiar na suavidade tratando bem a máquina. E aprendi porque ele sempre foi legal e me dava atenção, me tratando como um amigo, companheiro dele, da turma dele, e isso para uma criança é o máximo. Meu pai não tinha o mínimo interesse por carros; ele só os usava, então papo de carro era com o Tio Roberto. Ele ainda tem uma maravilhosa coleção de carrinhos de chumbo. Alguns desses sofisticados e caros carrinhos meu irmão e eu surrupiávamos dele para brincar na escola em pistinhas cavadas num morro de terra onde tirávamos racha com os colegas inimigos. Quem perdia, perdia o carro para o rival, que nem nos filmes de hot rod da época. Quando nos dávamos mal nas corridas, voltávamos a sumir com uns carrinhos do nosso tio, o que o deixava furioso. Ainda não sei como ele teve paciência para não nos descer uns tabefes. Ele dava bronca no particular, na encurralada séria, mas não nos entregava pro meu pai. Suas broncas foram boas e paramos com aquilo, porque do jeito que íamos poderíamos ter virado políticos.
Sair de carro com ele era legal. Mostrou-me como se faz para trocar de marcha sem o uso da embreagem; só “no tempo”, só no ouvido, e isso é um bom começo para se começar a aprender a sentir a máquina, a escutá-la, sentir sua vibração, sentir suas engrenagens trabalhando. Eu era criança e nem guiava então, pois só comecei a guiar carros com 11 anos, mas ele me explicou direito e gravei bem a coisa, e logo que me vi guiando o básico tratei de treinar a prática desse macete. Parece inútil saber fazer isso, mas ontem mesmo tive que usar essa técnica. Pifou o “burrinho’ da embreagem — de acionamento hidráulico — do Alfa Romeo 145 de minha filha e para levar o carro à oficina o jeito foi dar a partida com o carro engatado em 1ª marcha e seguir trocando marcha “no tempo”. Sem problemas. Mas sem problemas para quem sabe, quem aprendeu, quem teve alguém para lhe ensinar, que nem eu tive. Quem sabe se vira e dificilmente fica no caminho. Essa e outras aprendi com o Tio Roberto.
Tendo lá meus dez anos tratei de trocar o motor do meu míni-bugue da Gurgel. Hoje eles são chamados de míni-bugue, mas naquele tempo nem bugue havia no Brasil e era míni-carro mesmo. A Gurgel, para quem não sabe, começou assim, fabricando carrinhos infantis motorizados, e na época havia uma promoção do refrigerante Cerejinha que premiava com esse míni-bugue quem tivesse a sorte da sua garrafa ter a tal desejada tampinha com o desenho do carrinho. Acho que meus pais e avós ficaram preocupados com o inchaço das barrigas dos dois irmãos — barrigas que de tanto tomar Cerejinha chegavam a brilhar de tão flatulentamente esticadas —, que acabaram se cotizando para nos dar duma vez o míni-bugue da Gurgel.
Mas logo achei que os 3 cv do motor Briggs & Stratton era pouca coisa, e juntando economias comprei um de 6 cv da mesma marca. Com a ajuda do Lico, o tratorista/mecânico da fazenda, ou melhor, comigo atrapalhando, o Lico instalou esse motorzão no Gurgelzinho. O motor era tão desproporcional que o Lico teve que cortar o capô para que o motor coubesse, tipo fazem nos hot rods. E o bichinho ficou um canhão. Tirei o silenciador do escapamento e meti um cano d’água direto. Ele dava 80 km/h, velocidade medida com um carro emparelhado. Corria mais que um cavalo. E com ele dei lá minhas chapuletadas, dentre elas uma num cupim que sorrateiramente se escondia numas moitas de capim-gordura, outra num mourão de cerca fincado num lugar errado, e outra um amigo da fazenda entrou numa pilha de tijolos, dos quais em seguida tomou um banho de rachar coco.
Devido a essas e outras atividades extremas e não esperadas pelo engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel ao projetá-lo, o míni-bugue ficou com certa folga exagerada na direção, o que em chão irregular de terra dificultava manter uma linha reta por mais de um ou dois metros. A coisa ia no zigue-zague. Mas através de ininterruptas e imprecisas correções, mal ou bem seguíamos tocando, quase sempre a toda. E aí meu Tio Roberto foi pra fazenda e então eu estava ansioso para lhe mostrar quão bom de volante eu era. E aproveitando uma descida ele empurrou o Gurgelzinho para que no tranco o “Briggs” pegasse, e ele pegou urrando legal e cuspindo fagulhas pelo cano d’água de escapamento, e nessas já saí meio lascado agarrado ao volante e com os olhos injetados.
Meu tio correu e se jogou para dentro, só que ele teve que se jogar de costas porque eu já estava meio bem rápido demais, e nessas ele ficou com o traseiro pra dentro e as pernas pra fora, e como ele não era contorcionista de circo não havia meio dele as colocar para dentro do carrinho. E lá fomos nós, já descendo pipocando rrráááá!!! uma ladeira que se afunilava numa pequena e curta ponte cujos parapeitos em madeira distavam no máximo três metros um do outro. Com a folga da direção e minhas nervosas correções essa ponte parecia não parar quieta, uma mira móvel difícil de acertar, mexendo-se pra lá e pra cá. Só que eu era metido a macho e não era eu que ia afinar, e pau na máquina. Meu tio, coitado, nessas, com as longas pernas para fora já as estava vendo decepadas pelo parapeito da ponte, e tocou a gritar para que eu parasse aquela joça. Maneirei um pouco, bem pouco, e passamos num vupt pela ponte. E com as pernas dele ilesas. E ele as olhava meio estático parecendo não acreditar que se safara dessa. Em seguida soltou um “ufa!”.
Não sei como ele não me moeu de pancada depois dessa. Não sei como não me agarrou e jogou de ponta-cabeça no lago! Que paciência! Que compreensão! Só deu um sermão. Só um “Assim não dá, rapaz! Assim não dá! Tá maluco?”
Ele tinha um Fusca 1200 novinho e noite alta ele e seu inseparável amigo Lloyd, há décadas também meu grande amigo, desciam a serra da Anchieta rumo ao Guarujá. E nessas na serra um ônibus que ia vazio cismou de não deixá-los passar. Cismou porque cismou. Até que numa brecha meu tio conseguiu passá-lo, só que ao passá-lo o Lloyd teve a infeliz idéia de gritar ao motorista do ônibus algumas coisas maldosas a respeito de sua mãe. Bom, a mãe do motorista não deveria ser aquelas coisas feias que o Lloyd falou, então o motorista ficou a fim de matá-los esmagados, e já que em morro abaixo todo santo ajuda, o ônibus passou a persegui-los colado faróis-altos buzinando serra abaixo. Fusquinha, pneus fininhos diagonais, aquela suspensão traseira bamba e traiçoeira que só ela, e isso já basta para que o caro leitor imagine o sufoco coração-na-boca passado pela dupla dinâmica nas famosas curvas da estrada de Santos. Acho que a pulsação dos dois só veio a baixar com uns bons goles de chope sentindo a calmante brisa da noite à beira-mar lá no Restaurante Monduba.
E aí quando fiz meus 16 anos comprei/ganhei o tal Jaguar XK120 que já contei aqui. Ele tinha 1ª marcha seca e só a 2ª, a 3ª e a 4ª eram sincronizadas. Para colocar a 1ª eu tinha que praticamente parar o carro, senão ela não entrava, fora que só de tentar era uma arranhação danada. Até que um dia saí com o Tio Roberto para ele dar uma guiada no XK, e não é que o danado reduzia para a 1ª sem uma arranhadela? “Como é que você faz isso, tio?!”, perguntei. E foi aí que aprendi a dar duas embreadas, com uma breve acelerada entre elas, e fazendo punta-tacco, para reduzir em câmbio seco. Na maciota, como ele dizia e diz.
Parece bobagem. Parece bobagem ensinar e aprender essas coisas simples, porém, pensando bem, essas coisas só se tornam fáceis e simples para quem teve um professor como tive.
AK