Por mais que os tons de cinza estejam em voga, quando um cara gosta de carro, é preto ou branco: ou ele considera o fabricante uma entidade sagrada, cujo trabalho não deve ser maculado por nenhum mero mortal em hipótese alguma, ou o sujeito tem certeza que pode fazer melhor, e modifica sem dó tudo que pega pela frente sem pudor algum.
Todo carro (na verdade, toda máquina) é um exercício de compromisso. O exemplo clássico, que gosto muito é o de três carros de mesmo conjunto mecânico, e tamanho praticamente idêntico, mas com missões bem diferentes: Karmann-Ghia, Fusca e Kombi. No Karmann-Ghia, que pretende ser esportivo, o motorista senta bem no meio do entre-eixos, baixinho, com as pernas esticadas. No Fusca, que precisa carregar cinco pessoas, ele se aproxima do eixo dianteiro, e para isso fica mais alto e com as pernas flexionadas. Na Kombi, que quer aproveitar o máximo possível o espaço interno para passageiros e carga, o cara acaba sentado com a busanfa em cima do eixo dianteiro, e as pernas a frente dele. O centro de gravidade sobe com o motorista. Compromisso: se você quer um carro esporte, não pode ter muito espaço para passageiros e carga. Nada é perfeito.
Há também outro agente aqui. Se você pudesse fazer um carro no fundo de seu quintal, do jeitinho que você imagina o seu carro de sonho, ele tem que agradar apenas a uma pessoa: você. A posição de dirigir, o viés esportivo ou confortável, o espaço interno, e cada detalhe seria criado ao seu gosto apenas. Se chamar um sócio, a primeira coisa que vai ter que fazer é adotar um trilho no banco e espaço para o banco se mover, para acomodar dois biótipos diferentes, coisa que antes, claro, era desnecessária. Este é apenas um exemplo fácil, o primeiro de um milhão de compromissos inevitáveis para agradar não apenas uma, mas duas pessoas. O carro resultante ia ser bem diferente…
Imagine agora algo que tem que agradar 10 mil pessoas todo mês, por pelo menos cinco anos seguidos. É por causa disso que é difícil um carro unânime, que agrade a todos. E é por isso, também, que deve se ter bastante cuidado ao avaliá-los. Mas o que é importante aqui para a minha linha de raciocínio é: por que temos a vontade de modificar.
Mas modificar, no caso de máquinas tão complexas como automóveis, é sempre uma faca de dois gumes. Sem a imensa frota de desenvolvimento para avaliar o efeito de qualquer modificação, quando fazemos ela em casa, muita coisa pode dar errado. Usando mais uma metáfora velha e usada demais no mesmo parágrafo, apenas para minha própria diversão: o tiro pode sair pela culatra.
Quanto mais complexo o carro, mais difícil modificar. Não tenho problema nenhum de trocar o motor de um Chevette (um esporte tão popular que deve ter até torcida organizada com sede própria), mas sinceramente não tenho vontade nenhuma de tentar modificar ou encarregar alguém para modificar carros modernos como um Nissan GT-R.
Isto ocorre por um motivo simples: conhecimento. Para modificar bem, você tem que entender o carro de forma completa. Tem que saber, intuitivamente, os efeitos colaterais possíveis de qualquer mexida. Num Chevette, todos tiramos de letra isso, mas em complexos carros modernos é missão que, sinceramente, está acima de minha capacidade de entendimento. Isso sem falar nos valores envolvidos…
Mas todo entusiasta gosta de uma história de modificação. Se você estiver nos EUA e prestar atenção na estante de uma boa banca preferida, vai ver que revistas de carros modificados existem em grande quantidade. Eu mesmo tenho antiga paixão pela mais antiga deles, a americana Hot Rod. Mas o que nunca se lê dentro das páginas de tais revistas, é o que deu de errado com as modificações, ou como ficou o carro depois delas. Na verdade, lendo aquilo, uma pessoa pode acreditar que tudo são flores (sim, estou arretado nos clichês hoje).
Eu costumo, por motivos principalmente financeiros, mas também pela minha experiência na atividade, me manter bem prudente e conservador. Mudanças extensas trazem problemas extensos. Nada que não possa ser resolvido, mas demanda mais tempo, suor e dinheiro do que estou disposto a gastar hoje em dia. Mas sou, no fundo, uma das pessoas que não tem nenhum problema em fuçar, mexer, modificar. Tenho espírito de hot-rodder, embora reprima-o diariamente. Modificar um carro a seu gosto torna-o só seu, diferente, único, uma expressão de sua personalidade. Para mim, é igual a arte, uma obra que leva sua assinatura para sempre.
E é por isso que nenhum carro meu de verdade escapou de ter alguma modificação. As vezes extensa, na maioria hoje em dia bem pequenas e discretas, mas sempre. Não podia ser diferente na minha perua BMW 328i 1996 atual, e apesar das mudanças serem pequenas, discretas e sutis, a pedido de uma multidão de leitores (gente suficiente para lotar um Puma inteiro), resolvi contá-las aqui. Mas diferente do que se escuta por aí, vou contar também o que deu errado!
Vivendo com um carro de 19 anos de idade
Tudo começa logo quando comprei o carro. Num passeio que já contei aqui, andando com o amigo RT e seu cupê 325i, notei de cara que o carro dele estava bem melhor de suspensão que o meu. O RT tinha recentemente trocado os amortecedores, a bandeja dianteira, e algumas buchas de suspensão gastas, em seu carro com quase 200 mil km rodados. Os amortecedores eram originais BMW, e as buchas também, mas as bandejas dianteiras de suspensão eram Meyle HD, que troca a construção do articulador esférico (balljoint) de aço estampado para bloco usinado, melhorando a durabilidade e a precisão do movimento, de acordo com o fabricante.
O RT também, pegando uma dica do excelente site americano Pelican Parts, colocou o câmber traseiro no máximo negativo possível (é regulável, via arruela excêntrica com encosto), conseguindo 2 graus negativos. Na frente, usando arruelas no parafuso inferior das mangas de eixo, tentou alguns valores de câmber até chegar num ideal 1,5 grau negativo, de um máximo de 2 graus possíveis com arruelas. Com 2 graus, segundo ele, o carro precisava de muitas correções para andar em linha reta.
O fato de que a suspensão não estava lá aquela Coca-Cola toda no meu carro já mostra algo que poucos falam a respeito de comprar um carro de 20 anos de idade. Mesmo se o tal carro, como o meu, esteja pouquíssimo rodado (46 mil km, no meu caso), tenha tido apenas um dono cuidadoso em toda sua vida como também foi o meu caso, idade pesa para todo mundo. As borrachas, principalmente, ressecam e endurecem e perdem ação. Fluidos perdem características. Espumas esfarelam. Coifas se desintegram. Apesar do estado geral excelente, entendi naquele momento que tinha muita coisa a fazer na minha perua.
Ao mesmo tempo, tinha descoberto uma fonte legal de idéias e peças para modificar um E36, na forma da excelente Turner Motorsport, nos EUA. Graças às maravilhas da internet, as peças da Turner (modificações) e da Pelican Parts (originais) estavam a um clique de distância. OK, a um clique e uma visita ao correio para pagar impostos ao nosso adorado governo que nos dá tanto em troca, mas vocês entenderam. Naquela época, o dólar, se me lembro bem, custava menos de 2 reais tornando tudo bem acessível, mesmo com impostos. Na lamentável situação em que nos encontramos hoje, eu apenas rezo para nada quebrar.
Num momento de fraqueza, comprei logo um maravilhoso jogo de quatro amortecedores Bilstein “sport” amarelinhos. Junto com eles, vieram embuchamento novo completo, bandejas Meyle HD dianteiras (frescura, admito, mas me empolguei), um kit de parafusos e arruelas para regular câmber da Turner, e um kit para restringir o movimento das buchas traseiras dos braços principais, também da Turner. Toda borracha, batente, coifa e coxim de suspensão foi trocado. Reforços nos pontos de montagem, conhecido ponto fraco da estrutura das E36, vieram também nesta leva.
Bandejas Meyle HD, full-metal balljoint.
Estava também insatisfeito com os freios, e por isso comprei pastilhas EBC “Green stuff” inglesas, e um par de discos dianteiros novos, ambos aqui no Brasil mesmo.
Também decidi trocar os pneus, porque apesar dos Goodyear NCT que estavam nela estarem ainda com bastante altura nos sulcos, me pareciam duros demais e muito, mas muito piores que os excelentes Michelin do carro do RT. Depois de muito pensar, conversar e andar em carros de amigos, e consultar alguns avaliadores de pneu da indústria, resolvi comprar quatro Yokohama C-Drive. Pneu é de longe a peça de suspensão mais importante, em minha opinião, e portanto não queria gastar tanto neste sistema do carro sem pneus novos.
Quando as peças chegaram dos EUA foi uma alegria tremenda. Peças novinhas de boa procedência são como joias para o entusiasta, e eu quase que nem monto elas no carro, para talvez colocá-las em um pedestal de exposição no meio da sala. Os amortecedores amarelíssimos, além da tradicional faixa azul com o nome do seu fabricante, vieram também com um adesivo colado em cada um deles, onde se via o traçado do Nordschleife de Nürburgring, e que em alemão dizia: desenvolvido em Nürburgring. Não é demais?
Adoraria montar estas peças legais eu mesmo, mas vamos falar sério: faltava espaço, mas também ferramentas, tempo e vontade. Coloquei todas as peças de suspensão no porta-malas e levei a bichinha para meu mecânico preferido. Ficou lá uma semana, visto que o dito mecânico trabalha sozinho e toma todo o seu tempo para fazer as coisas. E lembrem: carro parado, estou a pé. Não tenho outro, só o da patroa, que fica disponível para mim só no fim de semana, claro.
Peguei o carro numa quinta-feira, ansioso, para sábado ir até Piracicaba, onde o revendedor da Yokohama colocaria os quatro pneus novos e alinharia o carro. De cara, uma surpresa: o carro estava bem mais alto que antes! Lombadas que eram passadas com dificuldade agora eram facilmente transpostas, mesmo usando as mesmas molas nos quatro cantos do carro.
No sábado, outra surpresa, esta bem desagradável: a traseira, mesmo no máximo da regulagem, dava apenas zero grau de câmber. Onde estão os dois graus negativos que deviam estar aqui nesta situação? Mistério… O fato é que estava com quatro pneus novos no carro, 70 quilômetros de estrada de volta, e sem conseguir um alinhamento satisfatório. Deixei no zero atrás e, com a sensação ruim de estar estragando pneus novos, fui para casa devagar.
Depois de duas viagens ao mecânico, muita coçação de cabeça e de pensar até em comprar um braço inferior totalmente regulável da Turner (veja aqui. Peça linda, que ainda me dá vontade de comprar…), acabamos descobrindo algo que, agora, em retrospecto, parece óbvio: os suportes do braço principal, que foram retirados para a montagem dos limitadores de movimento da bucha, foram montados invertidos! Acho que nem a BMW percebeu que, colocando o suporte do lado direito no esquerdo, de ponta-cabeça, é possível a montagem. E que desta forma tudo permanece igual, mas a cambagem passa de variar de zero a dois graus negativos para de dois positivos a zero! Se você quer fazer um show de drifting, está aí uma boa receita!
Resolvido este problema, o carro melhorou muito ao rodar. Mas confesso que só depois de uns bons dois meses tudo assentou de verdade, e o carro começou a rodar como esperava. E ainda assim… apesar de estar bem legal, a frente ainda precisa de mais regulagem. Só consegui chegar a 1 grau negativo de câmber na frente, e em retrospecto acho que deveria ter deixado a convergência diferente. Talvez mexer mais um pouco em pressões de pneu… o carro ainda não enfia a frente em curvas do jeito que acho que ele pode e deve fazer e, embora esteja uma delícia de andar forte na minha estrada preferida, ainda pode melhorar um pouco.
Ando regularmente, como os leitores sabem, nesta estrada, por pura diversão, e andar lá acaba por dar mais idéias de melhoria. Como já falei no meu post da Audi RS 4, estou com uma vontade danada de comprar rodas 17-pol., para conseguir pneus mais modernos e esportivos. Rodas maiores permitiriam freios maiores, retirados de algum M3 em desmanche. E também estou com vontade de mexer em barra estabilizadora.
Barra não é estritamente necessário aqui. Simplificando um assunto complexo, barra com o mesmo pneu tornaria o carro mais lento em curvas, pois rolando menos, iria toda a energia ao pneu. Com pneu maior, teoricamente, pode existir ganho. Mas tempo aqui não importa, o que procuro é um carro mais gostoso para dirigir rápido, e menos rolagem definitivamente ajudará. Existem milhões de diâmetros diferentes de barra disponíveis, e me pego as vezes calculando efeito de várias combinações diferentes.
Volante também acredito que é hora de mudar. O original é enorme, e atrapalha um pouco a movimentação das pernas num sujeito alto como eu. E adoraria um banco-concha Recaro como os que existem a venda na Turner, mas são caríssimos. Talvez algum nacional…
Mas algo que quero fazer em breve é no motor. Usando um kit da Turner e um coletor de admissão dos 325i (antes de 1996), e uma recalibração da injeção, consegue-se fácil mais 30 cv nos 328i. De quebra, com um filtro de ar menos restritivo, consegue-se levar o rugido da bichinha para um outro nível. Vontades, como podem ver, não me faltam…
Problemas
Há coisa de um ano, um vazamento começou no sistema de ar-condicionado. Debaixo do painel, perto do evaporador. No início, carregava o gás e ele durava um mês. Quando este período diminuiu para uma semana, resolvi parar o carro, levando-o a um especialista em São Paulo indicado por um amigo. O painel teve que ser desmontado, e um novo evaporador precisou vir dos EUA: mais um mês sem carro.
Depois, os discos dianteiros nacionais trocados lá no início da aventura pediram arrego: empenaram. As pastilhas EBC que devia ter comprado, descobri, eram as “yellow stuff”; as verdes, segundo a própria EBC, são inferiores às originais BMW. Comprei discos e pastilhas originais porque as pastilhas amarelas EBC eram o dobro do preço, e não podia comprá-las (mas queria!). Aproveitei para trocar os flexíveis de freio, e ao fazer isso comprei um jogo reforçado, revestido por malha de aço, que deve durar o resto da vida do carro. Finalmente o carro está freando muito bem, mas ainda não é seu ponto mais forte.
O pedal da embreagem começou a ficar meio bambo, se movendo de lado. Apareceu um pequeno vazamento de óleo, que não me deixaria preocupado, mas que não agradava em nada minha esposa por sujar a garagem. Meu mecânico diagnosticou falha no retentor traseiro. Mais um pacote da Pelican veio com o retentor, um pedal novo, um kit de bucha de pedal de nylon com garantia eterna da Turner, e uma mangueira hidráulica de acionamento de embreagem reforçada com malha de aço.
Câmbio baixado para trocar o retentor, um efeito colateral do meu incidente famoso apareceu: a embreagem necessitava troca, também. Mais encomenda de peças, mais um mês com o carro parado. Mas, pelo menos, agora a embreagem está perfeita.
Coisa de cinco meses atrás, indo almoçar com um colega de trabalho, um barulho estranho e uma traseira solta repentinamente me fizeram pensar: furou um pneu! Mas olhando embaixo do carro uma surpresa: o olhal inferior do amortecedor traseiro se soltara completamente da borracha do amortecedor, soltando ele completamente!
Liguei para a Turner imediatamente, onde um consultor técnico me ajudou: estava faltando a arruela na montagem. Eu logo retruquei: “Mas eu olhei o manual da BMW, não vai arruela ali!” Na verdade, aprendi, não vai arruela no amortecedor ORIGINAL. Os Bilsteins precisam delas. Estava descrito na caixa, e vieram arruelas, mas parece que tanto eu quanto o meu mecânico não percebemos. Tirou-se um amortecedor sem arruela, o outro foi também sem ela. Foi colocar uma arruela em cada um dos amortecedores traseiros que o problema sumiu.
Muitos outros problemas menores ocorreram, mas não vou chatear o leitor com eles. Coloquei algumas fotos de alguns deles, para os mais sádicos, mas não chega nem perto de ser tudo… O que queria aqui era apenas explicar algumas coisinhas que fiz no meu carro, sobre o que sempre me perguntam detalhes. Queria mostrar também um pouco dos tombos que levo, porque as pingas, vocês já conhecem. É para o caso de alguém ter a ilusão que a vida deste escriba é um sonho cheio de carros legais e que tudo acontece maravilhosamente bem. Andar com um carro de 20 anos todo dia não é fácil. Nada fácil.
Mas ainda assim, não tenho muito a reclamar. Existem pouquíssimos carros que me divertem mais andando com vontade num sábado de manhã em uma estradinha deserta. E como fazem alguns meses que nada quebra na perua, minha vida com ela é hoje de muitas alegrias.
É difícil viver com ela, mas parece que vai continuar sendo assim por muito tempo…
MAO