Diz-se que o brasileiro tem o complexo de vira-lata. Segundo este complexo, os próprios brasileiros se colocariam em posição de inferioridade ao que se encontra em outros países. Algo como “importado é que é bom”, como se brasileiro não prestasse. Pois bem, após passar 10 dias dirigindo na Europa, posso dizer que sim, no que tange a estradas, organização e, principalmente, educação, o complexo de vira-lata tem razão de ser sim.
Dirigi em vários países da Europa: Áustria, Alemanha, República Checa, Polônia e Eslováquia. Em todos eles, chamou-me a atenção a ótima conservação das estradas (certo, o asfalto das ruas de Bratislava não é exemplar, lembra o nosso), a farta sinalização e a boa organização do trânsito. Mas o que mais impressiona é o fator humano: a educação dos motoristas.
É este fator humano que permite que se possa adotar limites de velocidade de 130 km/h (Áustria, República Checa e Eslováquia), de 140 km/h (Polônia) ou até abrir mão de limite de velocidade, como se faz nas famosas Autobahnen, as autoestradas alemãs. Sei que o Bob Sharp é contrário aos limites de velocidade, é difícil apoiá-los quando se dirige em uma Autobahn e se constata que a falta de limite não causa acidentes, mas acredito que um ponto que ele não leva em consideração ao pensar na abolição dos limites ou em seu aumento no Brasil é a educação para o trânsito do motorista médio brasileiro.
Nosso motorista médio não tem nem de longe a educação para o trânsito de um motorista médio europeu. É justamente esta educação, o saber se inserir no trânsito, a consciência de que se faz parte de um sistema como um todo e, principalmente, que os que o cercam são iguais e que têm o mesmo direito de usar a estrada é que faz toda a diferença de mentalidade. Sendo assim, o pensamento vigente lá é que o carro do lado é dirigido por um outro cidadão, não por um inimigo ou adversário.
Exemplos disso não faltam. Não se vê por lá gente furando fila. Em uma saída da A22 para Viena, vi fila de mais de 1 km. Todos pacientemente esperando na faixa da direita a sua vez. A Autobahn fluía, apenas com uma faixa parada, a daqueles que aguardavam sua vez para sair dela. Lembrei-me imediatamente da Rua das Juntas Provisórias, no Ipiranga, em São Paulo: ao final dela, há uma saída à direita, dando acesso à Av. Prof. Luiz Ignácio de Anhaia Melo, em direção à Zona Leste. Esta saída é congestionada e seu congestionamento se estende até o início da Rua das Juntas Provisórias, mais de 1 km antes, porque, como a faixa da direita é congestionada, muitos motoristas insistem em vir pela esquerda para só na última hora entrarem à direita. Fazendo isso, fazem com que quem quer seguir em frente pegue mais de 1 km de congestionamento para que eles — suas majestades — não precisem esperar na fila da direita como os outros mortais. Sim, fica uma fila de fura-filas!
Trafegar ou ultrapassar pelo acostamento? De jeito nenhum! Peguei hora do rush em Frankfurt e não vi NENHUM espertinho de acostamento, todos trafegando na sua vez. Acostamento é para emergência, não é faixa rápida para os motoristas mais espertos que todo mundo. E a multa nem é tão cara — € 75 —, chegando a ser mais barata do que no Brasil (R$ 574,62, o equivalente a € 175), mostrando que o problema não é a existência ou grau de penalidade, mas sim a educação. Mais uma vez, ninguém, exceto os veículos de emergência, tem mais direito que os outros de chegar.
Outro exemplo disso é o que presencio em relação à questão de estacionamento no DF. Simplesmente ninguém respeita as placas de proibido estacionar, é como se elas não existissem. E, quando confrontados, os motoristas sempre têm uma desculpa prontinha na ponta da língua: não há vagas suficientes, o transporte público não funciona, o medo de ser assaltado… As desculpas não param.
Só que Brasília é uma das cidades com maior disponibilidade de estacionamento público e gratuito, a cidade foi pensada para o automóvel. Uma prova disso é que quase inexistem estacionamentos privados no DF, apenas em shopping centers. O povo da capital dá todas estas desculpas simplesmente porque não quer andar! É como se não parar na porta desonrasse o brasiliense, como se houvesse alguém “mais importante” que ele que não precisou andar. As regras? As regras são para os outros…
Além da má educação, isso acontece porque não há uma CET no DF e o Detran é insuficiente para fiscalizar tudo, além de disciplinar o trânsito. Então, na falta de fiscalização, o povo deita e rola mesmo, como se a lei só importasse quando houvesse penalidade, se não há penalidade, não seria preciso cumprir a lei. E quando, às vezes, o Detran resolve fazer uma operação de fiscalização e multa quem está estacionado irregularmente? O brasiliense reclama… do Detran! O sujeito é devidamente multado por estar estacionado irregularmente e, em vez de reconhecer o erro, ainda vem com o rosário de desculpas. Até reclamar de chuva eu já ouvi, como se o guarda-chuva nunca tivesse sido inventado.
O brasileiro tem o péssimo hábito de achar que seu tempo é mais precioso que o tempo dos outros, que sua urgência é mais importante que a urgência alheia. Pensando assim, ele legitima este comportamento fura-fila e anti-social. “Mas eu estou atrasado…”. E os outros não têm hora? Seu atraso permite que você ignore as regras? Aliás, vejo este péssimo hábito ser estimulado pelas companhias aéreas: se você chegar pelo menos uma hora antes do vôo, como pede a empresa, pegará toda a fila do check-in. Agora, se chegar faltando 35 minutos, será colocado numa fila prioritária de “encerramento”, que nada mais é uma fila dos fura-filas para aqueles que chegaram atrasados. E, obviamente, passará na frente dos que não estão atrasados, aumentando o tempo que estes passam na fila.
No Brasil, o que o passageiro recebe por chegar na hora estipulada? Perder mais tempo na fila! Quem desobedece e chega atrasado ainda é premiado com a fila rápida! Depois reclamam quando quem obedece às regras diz que se sente trouxa…
Aliás, obediência às regras é seguida à risca nas Autobahnen: o sujeito pode estar a 220 km/h, mas se aparecer uma placa limitando a 100, ele imediatamente freia e passa a andar a 100 km/h. Chega a ser engraçado. Em um minuto o trânsito está fluindo entre 140-160 km/h (cheguei a ver van de entrega andando a 150 km/h), logo depois, perto de uma cidade, o limite cai para 100 km/h e todo o trânsito passa a andar a 100. Em estradas de pista simples, onde é proibido ultrapassar, ninguém ultrapassa. E nem ficam pressionando para andar mais rápido.
O trânsito é muito mais pacífico e civilizado. Se você está na esquerda ultrapassando, ninguém fica colado na traseira em zigue-zague pressionando, como acontece no Brasil. Espera-se o fim da ultrapassagem, quando quem está na frente dá seta para a direita e libera a esquerda.
Seta é outra coisa levada a sério. Dá-se seta para qualquer mudança de faixa, avisando quem vem atrás da intenção. Além disso, dá-se a seta e olha-se, não se dá seta e entra-se, como acontece aqui. Seta não é autorização para invasão de pista, mas sim aviso de intenção de mudança de direção ou de faixa. É para que quem vem em alta velocidade saiba da intenção de entrar e prepare-se para isso, pois se a distância for grande, será necessário frear. E ninguém xinga quem entrou na esquerda para ultrapassar um carro mais lento, simplesmente espera-se o término da ultrapassagem.
Nem poderia ser diferente: a chance de um acidente caso se mude de faixa sem o devido cuidado aumenta. E dado que é perfeitamente possível que quem vem pela outra faixa esteja acima de 200 km/h, o acidente seria gravíssimo. Por isso, ninguém arrisca uma manobra perigosa. Lombadas? Para que, se todo mundo respeita os limites de velocidade? Se o limite é 30 km/h nas pequenas ruas de bairro, anda-se a 30 km/h e ponto. E sem lombada nenhuma! Lombada é coisa de subdesenvolvido mal-educado que não respeita limite de velocidade. Em países cujo povo tem educação elas não são usadas.
Como as coisas são mais simples quando as regras são seguidas, não? Mas é este rígido respeito às regras é que faz com que o sistema como um todo funcione. Apesar de todas as teorias de nossas célebres “otoridades” que pregam que “a velocidade mata”, a velocidade não mata na Alemanha. O que mata é a falta de educação para entender a necessidade do cumprimento da legislação de trânsito. O que mata é a postura egoísta de pensar só em si mesmo. Enfim, o que mata é o jeito do brasileiro se portar no trânsito.
Então, se não dá para evitar os acidentes porque o material humano não ajuda, pelo menos tentam diminuir-lhes a gravidade diminuindo a velocidade em que eles podem ocorrer. E dá-lhe os limites ridículos que vemos por aqui.
É certo que muito destes limites baixíssimos, abaixo da velocidade natural das vias é fruto de administrações públicas mal-intencionadas, de olho na arrecadação das multas. Mas, excetuando este tipo de situação, também bem brasileira, e contrariando o Bob Sharp, eu diria que nós não merecemos ter estradas sem limites de velocidade. Ainda não somos evoluídos o suficiente como povo para termos direito a acelerar até onde nossos carros permitem.
Imaginem uma Autobahn no Brasil: velocidade liberada. Um carro velho caindo aos pedaços entra na rodovia de repente, sem dar seta, até porque esta está queimada. Quem vem atrás joga para a esquerda, também sem olhar e nem avisar porque fez uma manobra repentina. Um sujeito vem a 150 km/h pela faixa da esquerda e bate na traseira do que desviou. Morre todo mundo, exceto o motorista do carro velho que iniciou a cadeia de eventos.
Outra situação: o sujeito compra um surrado carro dos anos 1990 e resolve turbinar o motor. Mas, como o dinheiro é curto, ele só mexe no motor mesmo. Mantém os freios, suspensão (já cansada) e etc. Pneu? Não tinha dinheiro pra colocar novo, foi um jogo de remold mesmo. Aí o cara entra na estrada e resolve ver se o carro chega a 200, para ver se o turbo ficou bom… Será que a suspensão e os pneus estão preparados para uma velocidade dessas? E se precisar frear, os freios darão conta? Com certeza não. É a receita para a tragédia.
Fica fácil perceber, assim, o quanto estamos distantes de merecermos estradas sem limite de velocidade ou mesmo com limites mais altos. O problema não é da velocidade em si, mas sim da falta de condições do trânsito para liberá-la. Sendo assim, se a matéria-prima que temos, tanto humana quanto mecânica, nos deixa muito mais propensos a todo tipo de acidentes, melhor que estes ocorram em velocidades mais baixas, até como forma de conter os danos.
Fala-se sempre em educação para o trânsito, mas a coisa vai bem além disso. Primeiro, antes até de se pensar em educação para o trânsito é necessário uma conscientização sobre o papel de cada pessoa dentro da sociedade. Aprender a agir sempre considerando que seus atos impactam os que estão ao redor, aprender que todos têm os mesmos direitos e que ninguém é mais importante que ninguém e nem há pessoas acima da lei. Depois disso é que se pode pensar em educar para o trânsito, ensinar as regras e a importância do respeito às mesmas para a integridade de todos.
Acabou? Não, além das regras, é necessário ensinar a dirigir corretamente, com atenção, sabendo integrar-se com o veículo e aprender a conhecer o seu comportamento. Depois disso tudo é que poderemos pleitear o direito a maiores velocidades e menos regras absurdas, como, por exemplo, ter que reforçar com uma errônea placa PARE antes de uma rotatória, onde deveria haver apenas a sinalização de “dê a preferência”, quando muito. Ou então a absurda placa “proibido parar e estacionar, exceto para embarque e desembarque”, que existe no aeroporto de Congonhas.
O caminho é muito longo e difícil, passa por mudanças na mentalidade, na educação e na formação de condutores. CNH deve ser um direito a ser conquistado, não distribuído. Se nem todos podem pilotar um avião pelo óbvio motivo de que nem todos conseguem possuir as habilidades necessárias para tanto, o mesmo deveria ocorrer em relação à obtenção de CNH. Infelizmente, assim como é consenso que nem todos nasceram para pilotar um avião, nem todos nasceram para dirigir um automóvel, que, apesar de ser tarefa bem menos complexa, também exige um conjunto de habilidades. Na Alemanha os testes para se tirar a Carteira de Motoristas são muito mais rigorosos. Uma amostra das provas pode ser vista aqui.
Levará muito tempo, mas se estas medidas forem implantadas, um dia poderemos ter um trânsito mais civilizado, com menos regras e com estas sendo mais justas. E poderemos parar com esse bordão de “a velocidade mata”. Até lá, continuaremos vira-latas.
Ou nem isso, uma vez que vira-latas são animais sociais e ajudam-se mutuamente. Talvez tenhamos algo a aprender com eles.
CMF