O berro do motor era estonteante. Os dois escapamentos diretos passavam a poucos centímetros do seu ombro direito e sopravam esgoelados logo atrás. A reta era longa, bem longa, a ponto de um bosque de pinheiros, que de ambos os lados a margeava, se fechar no distante horizonte, parecendo dar um fim escuro a ela. A reta era tão longa, que aos olhos de Juan Manuel Fangio, que pilotava o endiabrado Alfetta 159, a cena parecia provar a teoria de Einstein de que duas linhas paralelas acabam por se encontrar no infinito. Essa enorme distância, percorrida à enorme velocidade que o Alfetta alcançava, mais de 310 km/h, fazia com que o piloto lançasse mão de outra referência para calcular quando deveria começar a arrefecer o ímpeto de 450 cv do urrante 8-em-linha de 1,5 litro superalimentado por um compressor Roots. A referência passava a ser o tempo já gravado e bem contado em sua memória, o tempo de aceleração máxima em quarta, a última marcha; o tempo ouvindo, em meio ao tresloucado turbilhonar do vento, aquele berro de fúria.
O ponto de freada, que naquele tempo não era um ponto, mas uma faixa, já que os freios a tambor variavam sua eficácia ao longo da corrida e até mesmo ao longo de cada volta, tinha que ser calculado com base na expectativa de qual seria a resposta dos freios e qual seria a força de aderência dos pneus, força essa que também variava. Os pneus eram finos, diante dos atuais padrões, o que, se por um lado dá menor aderência, por outro gera menor arrasto aerodinâmico. Naquele tempo, como se vê, tinham pressa em acelerar; já frear, bom…, isso era para se fazer com calma. E com atenção: o pedal ficava na direita e o acelerador, no meio.
O carro, a seco, pesava pouco menos de 600 kg, porém carregava mais de 200 litros de combustível — uma mistura bombástica de álcool com um estudado coquetel que deixaria Molotov satisfeitíssimo —, e seu formato se assemelhava ao de um aerodinâmico charuto. Certa vez, em 1952, no autódromo de Pescara, cronometraram Fangio a 312 km/h.
E sobre os freios, mais uma coisinha que vale ser lembrada. Eles, por serem a tambor, mesmo estes sendo aletados para maior dissipação de calor, eram bem menos eficientes do que hoje estamos acostumados e facilmente sofriam de fading. Além disso, no caso do Alfetta, também não podemos esquecer que apesar da grande potência ele tinha só 1,5 litro de deslocamento. Então, ele acelerava feito um de grande cilindrada, mas na hora do freio-motor, um recurso com o qual muito contavam na época, ele tinha freio-motor de um pequeno 1,5-litro e só. Hoje isso não é problema, pois os freios de praticamente todos os carros, sejam de corrida ou de rua, dão e sobram, mas no caso do Alfetta, bom…, em suma, a mais de 300 km/h não devia ser fácil parar aquela máquina. Não devia ser fácil, não.
O longo capô do monoposto projetado por Gioacchino Colombo abrigava um longo motor dianteiro e sua tração, claro, era traseira. O piloto ia lá atrás, adiante um palmo do eixo, e os pneus traseiros estavam ao alcance de suas mãos. O cardã só tinha um caminho para ir da caixa de câmbio ao diferencial, e esse caminho passava por debaixo do piloto, o que fazia com que o assento ficasse alto, colocando o piloto exposto ao vento, além de elevar o centro de gravidade do conjunto. Alguns anos depois, Vittorio Jano projetou o Lancia D50 com o V-8 enviesado, para que o cardã passasse ao lado do piloto e ele pudesse se sentar mais baixo, mas isso foi depois, em 1954. O Alfetta, apesar de ganhar os dois primeiros campeonatos de Fórmula 1 – 1950, com Giuseppe Farina, e 1951 com Fangio –, era um projeto antigo, de antes da guerra, ainda da década de 30, e quando após a guerra as corridas voltaram, era ele o que a Alfa Romeo tinha bem guardado e pronto. E aí foi a sua vez de sair para a sua guerra, a guerra nas pistas, uma guerra que volta e meia também custava sangue.
Mas nesta guerra participava e arriscava a pele quem queria. Ninguém era obrigado a nela se meter. A anterior, mais uma vez, confirmou ser a mais sublime manifestação da burrice e torpeza humana, já que sacrifica justamente o que ela tem de melhor, os jovens, sua única fonte fértil e renovadora.
Com o piloto em posição elevada, o resultado era vento na cara. Vento no peito e na cara; mais na cara, que mesmo relativamente protegida pelo pequeno defletor, sofria forte e irregular força empurrando-a para trás, como uma longa saraivada de duros jabes na testa. Nessa época, devido a esse ataque do vento, Fangio sofria de constantes dores na nuca. Curiosamente, sarou desse incômodo após sofrer um terrível acidente em Monza, com um Alfetta, em 1952. Por meses ficou engessado feito uma múmia, e quando voltou à ativa, sabe-se lá por que, essa dor não mais o acometeu.
Homem discreto e de pouca fala, olhar arguto, de falcão, pernas arqueadas, tronco maciço, pescoço curto e grosso, antebraços duros feito peroba, mãos de alicate de pressão, das que agarram e nem a fogo largam; esse era o seu aspecto. Não era de gargalhadas, mas de fácil sorriso. Um homem cordial no trato social, muito educado, comedido, controlado, que nunca se mostrou arrogante nem nervoso. Então, pergunto eu, como ele conseguia acobertar tamanha fúria que o levava ao perigo a que se expunha a mais de 300 km/h naquele Alfetta?
A resposta a que cheguei tira a fúria da jogada. Fangio entrou para a Fórmula 1 quando já tinha mais 40 anos. Já sabia controlar sua fúria. Já a havia colocado em seu devido lugar. Na luta de boxe, segundo o Éder Jofre, você não pode ficar com raiva do rival, porque aí você perde o foco, a concentração, e então você já era. Se você se deixar levar, a ira passa a te comandar e ela sempre faz besteira. A ira não pensa, não raciocina, só quer porque quer.
Fangio pilotava com clareza. Algo que para outros era necessário arrojo, para ele era calculado e certo. Pilotava com estudada graciosidade. Só assim se consegue completar os mais difíceis e estudados movimentos, com começo, meio e fim. Fangio foi uma obra completa.
Vale ver estes dois vídeos:
Este com Fangio, em Monza:
Este com Marc Gené, na pista de Balocco, que pertencia à Alfa Romeo mas que passou para a Fiat (hoje Fiat Chrysler Automobiles) quando esta absorveu a absorveu em 1986 :
AK