É desalentador o próprio governo ser o culpado de não se poder estabelecer um histórico dos usados
Nos Estados Unidos, quando se quer colocar em xeque a honestidade de alguém, basta perguntar “Você teria coragem de comprar um carro usado dele?”, tantas são as trambicagens possíveis para se enganar o freguês. O carro pode ser “rejuvenescido” voltando-se o hodômetro dezenas de milhares de quilômetros. Ou mandar frisar os pneus carecas (aprofundar os frisos pelo borracheiro), uma ameaça à segurança. Ou omitir do comprador débitos de multas ou impostos, ou suspeita de furto ou roubo do veículo. Ou que o veículo está alienado à financeira. E vários outros expedientes escusos.
Não fossem estas manobras inescrupulosas, não se teria imaginado a lei que entrou recentemente em vigor que obriga o vendedor do carro (no caso de pessoa jurídica) a elaborar um histórico com estas eventuais pendengas judiciais. Chamada “Lei da Transparência”, ela obriga também a destacar na nota de venda o valor dos impostos recolhidos aos cofres públicos na operação.
Mais uma lei que provavelmente não vai pegar, pois se o histórico do carro é ruim, o vendedor jamais vai elaborá-lo, pois afastaria eventuais compradores. O prezado leitor fecharia negócio num usadinho jóia sabendo que está “dependurado” numa ação judicial e corre o risco de receber um oficial de justiça dois meses depois para levar embora o possante?
Mais desalentador ainda nesta lei é ser o próprio governo um dos principais culpados na dificuldade em estabelecer o histórico dos automóveis usados.
Primeiro, pela falta de fiscalização dos veículos envolvidos num acidente grave, que resultou em perda total, a chamada PT (só podia…). Quando o carro é segurado, o proprietário é indenizado e a seguradora o vende num leilão. Teoricamente, para um ferro-velho desmanchá-lo e aproveitar parte dos componentes. Praticamente, para uma oficina de fundo de quintal repará-lo mal e porcamente e colocá-lo novamente à venda. Por não oferecer mínimas condições de segurança e elevado risco de voltar a se envolver num acidente, as seguradoras se recusam a segurá-lo novamente. É por esta negativa que o comprador da “bomba-relógio” percebe ter comprado um automóvel carimbado no passado como “PT”. E por preço tão camarada…
Se as seguradoras sabem que um automóvel sofreu acidente grave, por que o órgão de trânsito ignora o passado que o condena e não o impede de voltar a circular? Por incompetência, leniência e descaso diante desta situação absurda. Ora, se o Detran não dá baixa nos documentos daquele veículo, como constar em seu histórico o desabonador registro de que foi vítima de “PT”?
Outro absurdo patrocinado pelo próprio governo é a responsabilidade das infrações de trânsito. O Detran aparentemente já se adiantou ao “automóvel autônomo” (que dirige sozinho) e não considera que uma infração de trânsito tenha sido cometida pelo motorista, mas pelo próprio automóvel. Pelo menos é o que se pode interpretar pela surrealista e kafkiana cobrança da multa (e pontos no prontuário) dirigida ao novo proprietário do veículo. Ou seja, o cidadão adquire um veículo e no histórico (exigido agora pelo governo) não constam multas pendentes. Uma semana depois, o Detran recebe o auto de uma infração cometida dois meses antes. E tem o desplante de enviá-lo para o novo dono, mesmo tendo em seus arquivos o nome completo e endereço do proprietário anterior, para a correta cobrança.
O Congresso Nacional aprovou uma lei, há alguns anos, colocando ponto final nesta aberração, mas o então presidente Lula da Silva vetou-a, preocupado com perda de faturamento…
BF
Boris Feldman, jornalista especializado em veículos e colecionador de automóveis antigos, autoriza o Ae a publicar sua coluna veiculada aos sábados no jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte (MG).
Foto de abertura: youtube.com
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.