Faz duas semanas morreu na Argentina “Bamse” Knudsen. Os amigos o chamavam de Coco ou Alemão por sua ascendência — filho de mãe alemã e pai norueguês — embora tenha nascido em 1930 na Patagônia argentina e tenha passado praticamente toda sua vida em Buenos Aires. A cara e o temperamento não negavam a ascendência, embora o apelido significasse um fofo “ursinho”. Aliás, esse era o nome da oficina mecânica que ele tinha quando conheci a família. Para mim, ele era o pai de uma das minhas melhores e mais queridas amigas.
Bjom “Bamse” Kndusen era apaixonado por carros e velocidade — tanto que foi preparador de automóveis, piloto, co-piloto e, vá lá apesar do desgaste da palavra, executivo de corridas de carros. Aos 22 anos ele foi para Buenos Aires e abriu uma oficina mecânica dedicada à produção de árvores de comando de válvulas. Assim de específico, mesmo.
Em 1961 seu nome já se ligava indelevelmente à argentiníssima categoria Turismo Carretera quando se torna o co-piloto e preparador do Ford de Ernestro Petrini ao qual incorpora um sistema de injeção desenvolvido por ele mesmo, específico para motores de competição de alta cilindrada e que substituía os tradicionais carburadores. Ou seja, no início dos anos 60 ele desenvolvia um sistema pioneiro da injeção eletrônica. Aliás, Bamse também havia desenvolvido uma máquina para fazer balanceamento de carros que, dizem, era fantástica. Um verdadeiro artesão da indústria automobilística. Tanto que já no início dos anos 1960 ele constrói seu próprio carro, em cima de um Ford 1939, chassis 1946 com motor F-100 de válvulas laterais.
Em 1965 começou a correr com o carro desenvolvido por ele, no autódromo de Buenos Aires e já na primeira corrida chegou em segundo lugar. Durante os dois anos na categoria, embora não tenha ganho nenhuma prova, bateu várias vezes o recorde de volta nas provas de classificação — tudo com o sistema de injeção que ele mesmo havia criado e implementado. Paralelamente, continuava preparando os carros de outros pilotos como Carmelo Galbato, Angel T. Rienzi e Pablo Fachini.
Entre 1967 e 1968 trabalhou na equipe Fiat de Turismo Nacional, para a qual chegou a fazer os motores. Fez também a preparação dos carros de Vicente Formisano para a categoria Sport Prototipo (com chassis McLaren) e outros nomes consagrados da Argentina como Estéban Fernandino, Carlos Salatino e Cocho López. O Ford Sierra de Rubén Daray, com o qual ganhou no circuito argentino de Rafaela na categoria TC 2000, havia sido preparado por Bamse.
Apesar do jeitão fechado (mais na vida particular do que na profissional, devo dizer) foi presidente da ACTC (Asociación de Corredores de Turismo Carretera) e em 1970 foi membro do time que redigiu o regulamento da categoria TCA.
Bamse vinha de uma família de engenheiros e artesãos da mecânica. O pai dele desenvolveu um sistema de extração de petróleo que deu origem ao sistema hoje chamado “cegonha”, reconhecido como extremamente eficiente. O próprio Bamse teria desenvolvido a renomanda caixa de câmibio Saenz, cujos direitos autorais foram vendidos por ele. Tem relatos de pilotos que contam que ele fez diversos componentes forjados e torneados especialmente para atender determinadas necessidades de corrida e que permitiam desempenho muito superior ao dos concorrentes. Um ourives da mecânica, diria eu.
Poucas vezes vi Bamse apesar de ir muitíssimo à sua casa. Engraçado que lembro até hoje do endereço exato – e da oficina, que ficava super perto da casa deles e onde estive um par de vezes, pois na casa não havia telefone e lá sim. Sua filha Nora era minha colega na escola de segundo grau e minha melhor amiga — aliás, nos conhecemos depois de uma chamada no primeiro dia de aula quando descobrimos que tínhamos o mesmo nome. Ele e o filho Alfredo (brinco que poderia ter sido meu cunhado, pois namorou minha irmã) eram mais sérios, calados. O Alfredo, por sinal, dirigia muitíssimo bem. Impecável, diria. E na época tinha um Fiat 600, mas suspeito que estivesse preparado, pois andava muito para o que era aquele motorzinho. A mãe Isabel e a filha, ao contrário, super expansivas e falantes. E olha que quem diz isso sou eu, que estou a anos-luz de ser muda.
Minha xará gostava de carros e eu já também. Aos 12 anos dividíamos nossa paixão (sim, nos dois sentidos) por James Hunt, nosso ídolo. E um dos meus ídolos até hoje. Segunda-feira no ônibus 130 que nos levava à escola (eu subia alguns pontos antes) a conversa era sobre a corrida de domingo e sobre nossa outra paixão, os Beatles. Tínhamos todas as letras — outro hobby nosso, ficar tirando letra de música. Até hoje tenho um par de cadernos com a letra dela e as letras das músicas. Coitados dos demais passageiros! Uma hora ouvindo duas tagarelas.
Anos atrás por coincidência ela, que mora nos Estados Unidos e eu, que moro no Brasil, estávamos em Buenos Aires e, claro, resolvemos nos encontrar. Ela veio ao meu hotel às 20h00 e saiu as 9h30 da manhã. Foram apenas algumas xícaras de chá e café e muita, mas muita, conversa. Há anos desenvolvemos uma técnica que nos permite falar as duas ao mesmo tempo, mas escutando o que a outra diz. Com isso, ganhamos tempo e, claro, falamos o dobro. Mas não é para qualquer um. Requer anos de aperfeiçoamento e tem um preço. No dia seguinte as duas estávamos roucas. Até hoje é meu recorde de conversa seguida com uma única pessoa. E olha que não é por falta de treino, não.
Por circunstâncias, faz tempo que não nos falamos. Ela consegue ser mais desconectada do cyberspaço do que eu e depois que se mudou da casa onde estive passando maravilhosas férias acabamos perdendo contato. Mas não passa uma semana que não lembre dela e saber da morte do pai me deixou muito triste e com ainda mais saudades. Dela, da família dela, das nossas conversas no ônibus e, claro, dos tempos áureos do automobilismo argentino.
Descanse em paz, Bamse.
Mudando de assunto: A estratégia do alcaide paulistano de criar factóide em cima de factóide vem dando certo — para ele, para a cidade é um desastre. Conseguiu nos fazer não perceber que desde o início de sua gestão as contas da Prefeitura fecham no vermelho. E toma corredores e faixas de ônibus em lugares inúteis, ciclofaixas idem, redução da velocidade nas marginais e, agora, “alargamento” das calçadas mediante, claro, pintura de faixas.
NG
Foto de abertura: huffingtonpost.com
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