Era uma dessas gostosas tardes domingueiras de verão, em que o ar está calmo, as nuvens paradas e até os passarinhos bocejam se desequilibrando no galho. A preguiça sem culpa restaurava os seres.
Acordei do meu religioso cochilo e minha mulher, no sofá, entretida com um filme na tevê, nem deu bola pra mim quando desci a escada e caindo sentado ao seu lado lhe perguntei sobre a história do filme. Ela sabe que só pergunto para lhe encher a paciência, pra ela ter que me explicar desde o começo e perder a concentração, então ela deu um sorrisinho e nem olhou pra mim. A gente se conhece e se ama.
— Vou dar uma volta de bike com os cachorros pra acordar um pouco, lhe disse.
— Tá bom. Você me traz um chocolatinho? Um só?, ela pediu.
— Trago sim. Vou tomar um café no posto dos playboys veteranos da rua Augusta. Sempre tem uns carros legais lá. Beijo.
Botei as coleiras no Tigrão e no Tico e os dois pequenos vira-latas partiram a todo galope, puxando minha Monark velha com igual gana os cavalos do Ben-Hur lhe puxavam a biga. Cachorro também tem imaginação, tanto que sonham, e a imaginação, afinal, é o que dá graça ao fato, portanto: Avante fogoso Tigrão! Dá-lhe poderoso Tico! E assim partimos os três em desabalada carreira de peito aberto para o que desse e viesse. Só me faltava o chicote.
A caminho do tal posto, num pátio externo de uma concessionária de automóveis, vi um Alfa Romeo Giulia GTV do começo dos anos 70. Era vermelho, estava sem os pára-choques — coisa comum que lhe fazem, pois também fica lindo sem eles —, estava com bons pneus Michelin, rodas esportivas da época, mais largas e originais da Alfa, aquelas com furos redondos, tinha um belo volante Moto-Lita com aro de madeira, tinha um adesivo do tradicional trevo verde de quatro folhas logo atrás de um pneu dianteiro, motor 2000, e o interior era bege claro. Lindo de babar! Parecia novo em folha. Parei e babei.
Amarrei meus resfolegantes puros-sangues logo ao lado e enquanto eles atentos me observavam, comecei a dar a calma e saborosa olhada detalhada naquele bom Giulia GTV.
Gran Turismo Veloce, carro feito para que façam longas e velozes viagens de turismo com ele. Foi feito para isso. Foi projetado de fio a pavio visando isso. Mas pode sair só a passeio também.
O capô do motor estava quente, a placa era de São Paulo, então ele estava a passeio. Boa tarde para passear com o Giulia.
Eu já estava ajoelhado de quatro olhando o carro por baixo — tem muito carro que está bom só por cima, por fora, e a mecânica está um lixo, vazando óleos, amortecedores velhos, cárter lascado etc, mas esse não, ele estava sequinho, tudo OK, bom por baixo também —, uma posição meio ridícula, porém necessária, quando não demorou muito e chegou um casal de jovens. O moço era boa pinta e a moça uma graça com vestidinho claro e vaporoso. Muito simpáticos, sorridentes.
Levantei-me e, esfregando os joelhos para desencravar os pedriscos neles incrustados, já que eu vestia bermudas, fui pedindo desculpas por xeretar o Alfa, ao que de pronto o moço sorriu dizendo que nada havia a desculpar e que ele até achava legal, já ele mesmo cuidara da restauração do carro. Não que ele metera a mão na massa em tudo, mas que ele orientara tudo, tintin por tintin; coisa estudada, pesquisada, desejada, batalhada e conseguida.
Dei meus parabéns. Era um dos melhores Giulia GTV que eu já vira. Talvez o melhor. E para não dar uma de xereta ignorante chato e para mostrar que eu conhecia alguma coisa a respeito, perguntei-lhe se sabia sob que condições o carro havia sido desenhado. Não, ele não sabia, então contei. Contei que o Giugiaro era mocinho e trabalhava para o Estúdio Bertone quando foi convocado para prestar o serviço militar. Daí teve que cumpri-lo uns tempos num quartel nos Alpes italianos, e lá, à noite, depois dos treinamentos, ele tratava de desenhar o GTV. A Bertone toda semana mandava um emissário para buscar os desenhos. Foi assim, um moço desenhando um carro ideal para moços.
— E sabe o que é o mais bacana disso tudo? — lhes disse — É que esse carro está com vocês dois, um casal legal de jovens. Esse carro deve estar contente de passear com vocês. Ele está nas mãos certas.
Sorrisos de lá e de cá. Tchau! Tchau! O Alfa vrummm! E lá retomamos nós, os três intrépidos, o nosso galope avassalador por mais um quarteirão, até ali perto no posto de gasolina onde aquele pessoal que gosta de carro faz tempão — muitos desde antes daquele Giulia vermelho ter sido fabricado — se reúne. Amarrei as feras, tomei meu café, comprei um chocolatinho, vi uns carros, escutei e falei sobre carros, e vi uns coroas que nem eu chegando e saindo com uns carros bacanas tipo aquele Giulia vermelho, mas só que nenhum deles com uma mulher ao lado. Tudo bem, tudo bem, eles todos passavam por bons momentos, tipo reunião de amigos com um interesse comum, mas a relação do jovem casal com o Alfa era mais verdadeira, mais legal, o que deixava a cena ali no posto meio insípida, meio estéril, meio sem graça, meio fria; não tinha romance no lance.
E assim, logo o chicote estralou e o charreteiro infernal — era com esse título, “O Charreteiro Infernal”, que o filme Ben-Hur foi lançado em Lisboa, ao menos é o que dizem — partiu com seus rompantes corcéis calçada afora levantando folhas com o deslocamento de ar provocado. Levei o chocolatinho pra ela.
Poucas semanas se passaram e lá estava eu com meu amigo dono de um BMW 2002 conversível dos anos 70. Nós no banco de madeira e olhando o mar, enquanto os meus corcéis fuçavam por restos de comida ao redor. O meu amigo há anos que restaura e não restaura esse BMWzinho. Ele faz um pouco e pára. Faz outro pouco e pára. E não é por falta de grana. Acho que é por falta de motivação.
— Cara! Por que é que você não dá logo esse carro pro teu filho?, lhe perguntei.
— Mas dar por quê? Ele pega o carro quando bem entende. É como se fosse dele., me respondeu.
— Eu sei, mas assim é dele e não é. É diferente. Dele é dele. É outra sensação. E olha, imagine esse BMWzinho bem em ordem e com o teu filho acompanhado de uma gata dessas que ele namora. Teu filho trabalha e se diverte direitinho, e está numa idade de ouro, fora que é o maior boa pinta que conheço. Vai ter menina na calçada que vai dar com a cabeça no poste, distraída olhando ele.
— …….
— E aí? Pensou?, perguntei.
— Vou arrumar duma vez esse carro e dar o BMWzinho pra ele., o meu amigo concluiu, animado.
Fiquei contente. O filho dele é como se fosse meu sobrinho, já que o vi crescer; e o rapaz é legal pra valer e gosta mesmo de carro. Além do mais, meu amigo arrumou uma motivação realmente forte para deixar o BMZinho nos trinques. Sacou que a vontade de ver o filho com o carro era muito mais pungente que a de ter o carro para si.
As experiências mudam de gosto ao longo da vida. Se pudermos vivê-las no melhor momento, com o melhor gosto, ótimo. Se não pudermos, paciência. O que não podemos é deixar a oportunidade passar, porque o arrependimento por não fazer, quando poderia ter feito, é um sentimento meio inconsolável. E nós, os mais velhos e experientes, temos mais é que dar uma força pra moçada poder curtir os seus momentos. É a vez deles.
Sei que o que está na moda para a rapaziada de hoje é suve. Preferem uma mula a um cavalo; que seja. Mas sei muito bem que pegar pela cintura a mulher amada e sumir junto com ela por estradas vazias num carrinho esporte é gostoso pacas, inesquecível!
Acorda aí, moçada! Usem a imaginação! Carros esportivos é que embalam o romance! Como o de Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Ilsa Lund (Ingrid Bergman) em “Casablanca”, numa felicidade incontida rodando pelos arredores de Paris.
Se vocês voltarem a querê-los, voltarão a fazê-los.
AK