De tanto ouvir e ler a respeito do assunto Volkswagen, “motores diesel poluidores”, resolvi escrever esta matéria para passar ao leitor um resumo de como o carro roda um teste de emissões e também detalhes para proteção do sistema contra os famosos defeat devices, ou dispositivos fraudulentos, que possam gerar vantagens econômicas e/ou de desempenho, burlando a legislação vigente.
Começando do começo
Para o teste laboratorial de emissões de gases poluentes, o veículo é instalado com as rodas motrizes sobre o rolo de um dinamômetro o qual é alimentado com dados referentes às forças de resistência ao rolamento e também da resistência aerodinâmica, simulando assim, situações reais nas ruas e nas estradas. O processo para o levantamento da resistência ao movimento é o coast down deceleration test, que nada mais é que, a partir de uma determinada velocidade do veículo, deixá-lo desacelerar em ponto-morto naturalmente, até a sua imobilidade, medindo a variação da velocidade em função do tempo e sua força resistiva.
Como curiosidade, veja o leitor o teste de emissões do Corcel Belina em 1980, neste mesmo laboratório da Ford em Tatuí.
O teste de emissões em dinamômetro é um ciclo padrão dividido em fases e consiste, basicamente, em dirigir o veículo seguindo um “traço” estreito de velocidade em função do tempo. Por exemplo, o ciclo EPA (Environmental Protection Agency, órgão governamental americano de proteção do meio ambiente), chamado FTP 75 (Federal Test Procedure), que atende à legislação americana tem três fases: a primeira com duração de 505 segundos partindo com o veículo frio; a segunda com duração de mais 864 segundos, totalizando 1369 segundos e logo após o carro é desligado, ficando cerca de 9 minutos em descanso; a terceira fase, com partida a quente, é a repetição do traço de velocidade da primeira fase, durando mais 505 segundos.
Os gases emitidos desde o início ao final do ciclo são coletados por um sistema conectado à saída do escapamento do veículo e enviados em tempo real para um equipamento analisador. Os dados são então comparados com os limites permitidos pela legislação em termos de CO, CO2, NOx , particulados etc. Tudo muito simples.
O hardware e o software do sistema de gerenciamento do motor devem garantir também que em outras situações reais de rodagem o sistema continue atendendo à legislação, controlando a mistura estequiométrica (a relação ar-combustível quimicamente perfeita) e suas variações necessárias para atender o funcionamento adequado do motor e suas emissões de poluentes.
Na realidade, existe sempre um balanço entre desempenho, economia de combustível, emissões e custos, daí a dificuldade de estabelecimento de compromisso adequado. Por exemplo, para o veículo ser potente, econômico e “limpo”, é geralmente necessário adicionar componentes mais eficientes com tecnologia embarcada, o que, quase sempre, deixa o sistema mais caro.
E qual a garantia que o hardware/software de gerenciamento do motor não possa fraudar o sistema, de modo que o veículo somente passe nos testes regulatórios de emissões e em outras condições não, com vantagens em melhoria de desempenho e redução de custos? Para responder esta pergunta é necessário entender o processo de desenvolvimento de um determinado programa veicular.
Exemplo de projeto
Do início do projeto até o lançamento do veículo o programa é dividido em etapas e cada etapa tem parâmetros de controle para que todos os sistemas se interajam adequadamente, atendendo os requisitos internos e também os externos de legislação governamental. Análises virtuais, testes e avaliações veiculares são verificados em cada etapa, mantendo o foco necessário para que o programa esteja nos trilhos. Determinados procedimentos são trustmark ou seja, cumprimento 100% ou não passam para a etapa seguinte. Tudo se passa no andar de baixo, com os técnicos e engenheiros se empenhando para atender aos parâmetros necessários.
Quando alguma coisa estiver em desacordo, a gerência/diretoria pode julgar o risco e aprová-lo ou não, para ser resolvido até a etapa seguinte, porém tudo devidamene registrado, com os nomes dos responsáveis, e assim por diante.
No final do programa, com os veículos pré-série saindo do forno, são repetidos todos os testes relacionados à legislação governamental. Além disso, viagens de avaliação são efetuadas para verificar a interação de todos os sistemas e também consumo de combustível e emissões de gases, com equipamentos de controle a bordo, instalados no veículo.
É possível fraudar? Sim, é possível, porém com a quantidade de controles, testes, pessoas e departamentos engajados, o processo seria muito complicado, pois envolveria o pessoal técnico, administrativo e político da empresa e também os fornecedores externos. Uma verdadeira “máfia” seria necessária.
Para embasar a matéria, vou hipoteticamente tentar fraudar o nível de emissões dos gases para ganhar desempenho e diminuir meus custos. O que seria necessário?
Por exemplo, sei que uma das tecnologias para não diminuir a potência dos motores diesel, mantendo adequado consumo de combustível e atender os níveis de emissões, é a injeção de uréia no escapamento (aqui no Brasil é o Arla 32, Agente Redutor Líquido de Óxidos de Nitrogênio Automotivo, uma solução de água desmineralizada e 32% de uréia). Este sistema, além de ser custoso, adiciona complexidade ao projeto, fora o fato de requerer manutenção constante. Assim, não quero gastar dinheiro com este sistema e pronto….decidi burlar o sistema via software.
A propósito, esse sistema que emprega uréia é a chamada SCR (selective catalytic reduction, redução catalítica seletiva), em que o Arla 32 é injetado nos gases de escapamento e ocasiona reação química no catalisador, que é específico para esse fim, transformando o NO2 (dióxido de nitrogênio) em nitrogênio (N2), um gás inerte e inofensivo — o ar que respiramos é 78% nitrogênio, 21% oxigênio e 1% outros gases — e água.
Qual será o truque?
Vou fazer uma analogia, com um estudante fazendo uma prova “colando”. Enquanto o professor está vigiando, o aluno se comporta de forma exemplar, finge estar pensando na resposta das questões, porém, quando o professor vira as costas, o aluno usa e abusa da cola.
Para fraudar o sistema, o que eu devo fazer é gravar informações no software de gerenciamento do motor que identifique que o veículo esta no dinamômetro, em testes de emissões e assim mantê-lo comportado nestas condições. Eu sei, por exemplo, que no rolo do dinamômetro o ângulo de volante de direção do veículo é praticamente invariável. Sei também que a pressão barométrica no ambiente do dinamômetro é praticamente constante, incluindo a temperatura, controlada em torno de 20°C. Com o veículo no rolo do dinamômetro, o volante estará imóvel e centrado, desde a partida do veículo até no mínimo o tempo total do teste, que é padronizado em 1.369 segundos para a fase 1 e 2, e mais 505 segundos para a fase 3.
A velocidade do veículo se desenvolverá dentro da margem permitida das velocidades especificadas no ciclo — daí a necessidade de introduzir a identificação destas velocidades no código do software fraudador.
Após 1.369 segundos, fim da segunda fase do ciclo, o motor será desligado e permanecerá assim por cerca de 10 minutos até nova partida — assim, o software fraudador vai contar o número de partidas do motor e o tempo decorrido com o motor ligado.
Como o uso normal do veículo contempla subidas, descidas, rajadas de vento e variações das condições atmosféricas, posso saber claramente se o veículo esta em um laboratório/dinamômetro ou não. Assim, tenho as principais condições de controle para fraudar o sistema, a posição do volante da direção, as velocidades incompatíveis com as do ciclo, o desligamento do veículo antes de 505 segundos ou muito depois de 1369 segundos e as variações da pressão atmosférica e temperatura ambiente.
Continuando com a analogia do aluno colando, ao iniciar a rodagem (começa a prova), se as condições forem as do ciclo de emissões (o professor estiver vigiando), o veículo continua atendendo os limites legais de emissões de poluentes. Em outras condições (o professor virou as costas), o veículo passa a funcionar de forma a priorizar o desempenho e/ou consumo de combustível sem a preocupação de atender os limites de emissão de poluentes (aluno utiliza a cola, a calculadora e dependendo, até troca informações com os colegas).
Para ajudar ainda mais o software fraudador, vou abusar também do uso de recirculação de gás de escapamento (EGR, exhaust gas recirculation) quando em condições de teste, que é uma solução barata que baixa o consumo de combustível e a emissão de poluentes, mas prejudica o desempenho do motor. Além disso, vou adotar um fator de limitação de temperatura do motor, para diminuir a formação de NOx, o que também prejudica o desempenho.
Pronto, missão cumprida. Consegui desenvolver um veículo barato, se comportando como econômico e limpo durante os testes de emissões laboratoriais e com desempenho excelente, superior aos concorrentes, nas ruas e estradas. Um verdadeiro “duas-caras”.
Saiba o leitor que existem muitas maneiras para identificar se o veículo utiliza dispositivo de trapaça ou não. Por exemplo, se a curva de resistência ao rolamento utilizada para carregar o dinamômetro é verossímil, a aceleração do rolo deve ser muito próxima da aceleração do veículo fora do laboratório, em uma mesma condição de posição de pedal do acelerador, rotação do motor e determinada marcha engatada.
É possível também gravar alguns parâmetros, como a posição do pedal do acelerador através da porta de diagnósticos (OBD-II). Se o resultado do cálculo da aceleração em um determinado ponto do teste não for próximo ao que for encontrado no “mundo real”, será uma boa indicação de fraude. Também se a aceleração for maior que a medida nos testes de emissões, a curva de resistência ao rolamento poderá estar menor do que a realidade, massa diferente, pressão dos pneus incorreta etc.
Existe um analisador de gases on board, a bordo, muito eficiente por sinal, que detecta em tempo real o nível de emissões do veículo rodando em ruas e estradas. Não tem como fugir da realidade.
Finalmente, agora eu sei como fazer um defeat device (dispositivo de trapaça em inglês numa tradução livre).
Obviamente eu não vou utilizá-lo e sim pregar aos quatro ventos que todos deveriam seguir o espírito da lei, que é não poluir o meio ambiente além dos limites estabelecidos, para o nosso bem e o das futuras gerações.
Hoje a homenagem é para o meu grande amigo Alexandre Travassos, engenheiro e especialista em calibração de motores, que me deu subsídios para que esta matéria pudesse ser escrita. Além de excelente engenheiro, toca contrabaixo e é vocalista na banda Meccia’s Brothers em Tatuí. It is only Rock’n’Roll
CM