— Vai, tio! Vai! Desce o sarrafo! — meu sobrinho gritava a plenos pulmões, enquanto com uma mão segurava a alça da porta asa-de-gaivota que a todo custo queria abrir, como se algo a sugasse. Com a outra mão ele se agarrava sei lá onde no Lavínia, para não subir junto com a porta, já que não havia cinto de segurança.
De canto de olho dava para sacar a ginástica que ele fazia para segurar a onda do seu lado, mas como do meu o Lavínia também estava dando trabalho, e como meu sobrinho é um surfista forte e me mandava descer a lenha, ele que se virasse. O tremendo V-8 Chrysler 5,2-litros urrava com uma saúde infernal, mas fora o V-8 nada ou quase nada nele estava certinho, já que ele vinha de anos parado num galpão, vários anos, talvez décadas. A direção estava desalinhada e nenhum amortecedor se dispunha a amortecer nada, então o carro parecia navegar em mar revolto. Seu comportamento era descomportado, beirando o imprevisível. Fora que cada freio trabalhava por conta própria, uns mais, outros menos, e os pneus estavam para lá de ressecados, ressecadíssimos, escorregadios. A 2ª marcha, do câmbio de 3, escapava quando eu tirava a aceleração antes das curvas, o que me obrigava a segurar firme a alavanca de câmbio com uma mão enquanto que com a outra controlava o volante, cuja relação de direção era bastante alta, portanto lenta, o que dificultava um bocado as correções das desgarradas de traseira nas freadas e acelerações, essas coisas.
Meio caótico, sim, mas essas estavam sendo as mais divertidas voltas que naqueles dias estava dando em Interlagos. Doideira total. Nos outros dias estive guiando um Dino 246 e ele era um docinho de obediente, já que o dono o usava regularmente, bem diferente deste Lavínia aqui.
— Isso é que é carro de macho, tio! É isso aí! Desce o cacete! — gritava, em meio a frenéticas gargalhadas, o meu sobrinho.
Acho que se ele fizesse ideia do fio da navalha em que estávamos, da trabalheira que eu estava tendo para controlar a situação, não estaria mostrando tantos dentes brancos nas suas risadas assim. Tem horas em que é melhor nem saber direito o que está acontecendo e confiar cegamente no cara que dirige; e acho que esse era o caso.
E eu é que não iria tirar o pé. Eu é que não iria aliviar. Estava dando para controlar. O Lavínia é um baita carro e tem um nome a zelar. Era só não dar tudinho nas retas e mandar ver no restante da pista. Era só não passar de uns 160 ou 170 km/h, por aí (o velocímetro também não funcionava, claro), porque daí para cima parecia que estávamos em procedimento de decolagem; parecia que os pneus dianteiros só triscavam o asfalto. Não só parecia. Era isso mesmo. E se ao menos essa “decolagem” tivesse uma direção definida, até que tudo bem; mas não, o Livina, de nariz erguido, parecia farejar o ar para ver para que lado iria decolar. Nessas cismei que se meu sobrinho não aguentasse e soltasse a porta asa-de-gaivota, a gente acabaria se dando mal pra burro.
Onde já se viu! Onde já se viu! — pensava eu. Eu que antes da nossa corridinha de clássicos — uma corridinha de meia hora que diariamente organizava durante o evento “Quatro Rodas Experience”, um evento que bolei quando era colaborador da Quatro Rodas — no briefing recomendara aos amigos pilotos donos dos carros: “Pessoal, tudo bem correr legal, mas sem barbaridades, OK? Lembrem-se que nós temos que dar o exemplo, tá? É só um showzinho para o pessoal curtir esses carros diferentes correndo na pista”. Era carretera Chevrolet 39, era carretera DKW-Vemag, era a réplica do Brasília do Ingo, era réplica do Jaguar D-type, Corvette Sting Ray, Ferrari Dino, Porsche 914, Mustang 67 com motor de 450 cv, fora outros; tudo carro maluco legal.
E olhe só o exemplo que eu estava dando, nas curvas botando de lado aquela valiosa peça de museu, um carro com um tremendo valor histórico andando na pura e saudável lenha. O Lavínia estava gostando, mas acho que isso não se faz. Não se faz, não.
Mas por que foram me provocar? Não se provoca um cara que tem um tremendo V-8 sob o pé direito. A gente acelera fundo e depois é que pensa em como vai controlar a coisa. O motor estava bom, bem bom, e tinha um carburador quádruplo, se me lembro bem. Acelerá-lo forte na saída do Pinheirinho e na do Bico de Pato era certeza de vir uma bela saída de traseira. Nessas curvas de baixa dava para brincar com isso. Já nas outras era bom não abusar da sorte.
Agora, pensando bem, acho que o meu sobrinho se agarrava naquela alavancona do freio aerodinâmico, uma que ficava junto ao grosso console central. O Professor Rigoberto Soler, da FEI (antes Faculdade de Engenharia Industrial, hoje Fundação Educacional Inaciana), o coordenador do projeto do carro, já naquela época, 1970, partira para utilizar esse recurso que hoje alguns superesportivos, como o Zonda Huayra, usam. Se bem que na época da construção do Lavínia isso já não era novidade, pois houve uma versão do Mercedes 300 SLR, um que o Fangio pilotou na 24 Horas de Le Mans de 1955 formando dupla com ninguém menos que Stirling Moss, que já tinha o recurso. Uma alavanca acionada de dentro do carro levantava uma superfície de grande área, 0,7 m², praticamente plana e feita de liga leve, para uma posição quase vertical. Além da evidente frenagem aerodinâmica, o componente quebrava toda e qualquer eventual sustentação na traseira, dando mais agarre aos pneus traseiros para que eles colaborassem mais na frenagem.
Bom, mas isso era no Mercedes do Fangio/Moss e também li que o argentino não gostava muito daquilo não, e só aceitou pensando no que aquela solução o ajudaria a poupar os freios — a tambor!— numa corrida tão longa. E ajudou: com quase oito horas de corrida Fangio/Moss lideravam com uma volta e meia de vantagem sobre o Jaguar D-type do ingleses Mike Hawthorn e Ivor Bueb, que tinha freios a disco, com o outro 300 SLR no encalço, o do alemão Karl Kling e do francês André Simon, quando o chefe da equipe, o alemão Alfred Neubauer, ordenou que os carros deixassem a prova. O gesto foi em sinal de luto pelo acidente com 300 SLR pilotado pelo francês Pierre Levegh que vitimou na hora 84 espectadores e o próprio piloto, que fazia dupla com o americano John Fitch. Hawthorn/Bueb venceram.
No Lavínia, eu nunca soube que o sistema tivesse funcionado a contento. Meses antes, junto com um aluno da FEI, eu o pilotara no antigo Retão e curvas 3 e 4, e o aluno tentara acionar esse freio e não dera muito certo, precisava de uma força de um touro para mexer naquilo.
Sendo assim, eu é que nessa hora não ia falar para o meu sobrinho acionar esse freio extra aí. Sei lá no que ia dar. Teoria é teoria e prática é prática. Vai saber… No mínimo aquela asa subindo poderia aumentar num tranco a força de sucção que tentava abrir a porta asa-de-gaivota, e nessas seria o meu sobrinho puxar aquilo e instantaneamente sumir do meu lado, saindo ejetado que nem em avião de caça. Tá louco!
As posições das 3 marchas também estavam totalmente esquisitas. Era um câmbio universal só que invertido, de ponta-cabeça. A 1ª ficava no lugar onde nos carros atuais vai a 3ª. A 2ª no lugar da 2ª e a 3ª no lugar da 1ª, junto ao piloto e para frente. A ré no lugar da 4ª. Não sei por que era assim. Não faço ideia. Só podia ser montagem errada dos braços e hastes de comando, mesmo porque havia uma versão do Dodge Dart — carro do qual provinham motor e câmbio do Lavínia — que tinha câmbio “universal” de três marchas no assoalho. Era uma versão cupê mais acessível— o Dodge Dart SE — com bancos em xadrez preto e branco.
E eu cá tenho o orgulho de ser o “redescobridor” das posições das marchas do Lavínia. Meses antes dessa maluquice acima descrita, o Professor Engº. Ricardo Bock — amigo do peito e o mestre mais legal e maravilhoso que um estudante de engenharia automobilística pode sonhar — e vários de seus alunos da FEI, levaram o Lavínia a Interlagos para fazermos uma matéria para a Quatro Rodas Clássicos, a revista de clássicos mais bacana do Brasil, bolada e dirigida pelo hoje nosso colega editor Sérgio Berezovsky.
Estava garoando e os alunos, precavidos, tinham montado uma tenda sobre o Retão e perto da Curva 3. Era a primeira vez que eu guiava aquele carro. Disseram que, após anos e anos parado, o reativaram para a matéria, mas não houvera tempo de acertá-lo direito e que também tinham achado o câmbio estranho. Acertaram-no só para que ele andasse, e não corresse. Sua “1ª”, disseram, era exageradamente longa e ficava onde hoje costuma ficar a 2ª nos carros em geral. A “2ª”, segundo eles, ficava no lugar da 1ª. Não haviam achado a ré.
Tudo bem, saí assim com o aluno acionador do freio aerodinâmico ao lado. E pega o antigo Retão, e pega as curvas 3 e 4, e toca a fazer os retornos de uma vez só, já que “não tinha” a ré — estávamos usando só uma parte abandonada da pista, do traçado antigo, tínhamos que fazer a volta depois da curva 4 — e numa dessas manobras, longe da tenda dos alunos, achei a 1ª marcha forçando a alavanca num cantinho do seu movimento, à direita e acima. Oba!! Achei a 1ª marcha! E achei a ré também, já que ela ficava no mesmo canal, embaixo.
Só sei que daí o carro ficou com uma arrancada dos demônios. A “primeira” não era exageradamente coisa nenhuma. O Lavínia, cuja carroceria é feita de compósito de fibra de vidro, é bem mais leve que um Dodge Dart, talvez coisa de uns 200 kg mais leve. Calculo que pese uns 1.200 kg ou pouco mais. Se o Dart já anda bem, imagine o Lavínia. E daí, sob a garoa forte, fomos até a tenda dos alunos. Parei e gritei: — Achei a primeira! Achei a primeira! — e a engatei e saí com tudo, com o Lavínia rabeando a todo gás. Foi uma festa. Os alunos todos rindo e felizes com a violência legal daquele carro de museu. Foi muito alegre, foi muito bom.
O primeiro nome oficial do Lavínia foi FEI X-3, e assim ele foi apresentado no Salão do Automóvel de 1970. Sua cor era laranja. Mas em seguida ele recebeu nova pintura e foi rebatizado como Lavínia em homenagem à esposa do doador do terreno onde foi erigida parte da faculdade.
No dia dessa corrida maluca do começo desta história ele não estava programado para entrar na pista. Ele só foi exposto no evento “Quatro Rodas Experience” por gentileza da faculdade. Era só para ficar lá mostrando sua beleza e despertando a curiosidade dos visitantes. Mas acontece que na hora em que os esportivos e carros de corridas clássicos estavam saindo para a tal corridinha, o professor Ricardo Bock estava saindo com um clássico de corridas e ao passar por mim — eu estava “a pé” naquela hora — ele gritou: — Vai lá e pega o Lavínia! Ele está precisando andar!
Com pouca coisa, poucos acertos, ele ficaria um show de esportivo para guiar. É um baita carro e eu o adoro. Carro de macho. Esse seu destino de ser peça de museu é que deixa a sua vida meio enfadonha. Quem sabe um dia a gente volte a brincar?
AK