Você tem todo o direito de estranhar o título e a ilustração. Até mesmo o tema poderá parecer um tanto deslocado do ambiente AUTOentusiastas. Mas se você seguir adiante, aposto — e até posso garantir — que você vai compartilhar o meu ponto. Aliás, garantia é o assunto em questão.
Antes de mais nada, convém dizer que sou adepto do reuso, da utilização plena das coisas, gosto de justificar a expressão “bens duráveis”. Tenho dificuldade em abrir mão de alguma coisa que me seja útil e esteja operacional apenas pelo prazer de ter algo novo, tipo… último tipo. Meu carro “novo”, por exemplo, é um modelo 1999.
Esse estilo, digamos, conservador se estende para outros ambientes além da garagem. Chega até à cozinha, por exemplo, no que diz respeito aos eletrodomésticos. Tal desvio de conduta me levou a conhecer alguns endereços para mantê-los na ativa. Bem, tudo isso para contar o seguinte fato: outro dia, o experimentado micro-ondas que serve à família entrou em curto. Despluguei o veterano da tomada e o levei ao técnico que o havia livrado de outro mal, meses atrás. Para minha surpresa, ele me recebeu com um sorriso e perguntou sobre o motivo da nova visita. Nem bem terminei o relato, ele me pediu para passar duas horas depois. “Não tem relação com o defeito anterior, mas está na garantia. E retorno em garantia tem prioridade”, disse ele, ilhado entre dezenas de aparelhos. Chamar sua oficina de modesta talvez não exprima o caótico ambiente. Para quem não conhece o serviço, a julgar pelas aparências, é preciso doses iguais de desapego e coragem para deixar o micro-ondas lá.
Foi o que eu fiz. Agradeci e confesso que não botei muita fé nem no discurso nem no prazo estipulado para o conserto. Já em casa, peguei o Jornal do Carro, suplemento que acompanha o jornal O Estado de S.Paulo. E dei de cara com uma reportagem sobre problemas não resolvidos no câmbio PowerShift, da Ford. Eram nove relatos de proprietários descontentes com o funcionamento do câmbio, e mais ainda com o encaminhamento dado pelas autorizadas ao problema. Um desfiar de idas e vindas e manifestações de descontentamento. É bom deixar claro que esse tipo de questão está longe de ser uma exclusividade da Ford. Ao contrário, ter uma legião de clientes insatisfeitos com o pós-venda é praticamente uma regra entre fabricantes, com honrosas exceções asiáticas.
Ora, se a justificativa racional dos compradores de carros zero-km é o sossego de poder rodar sem problemas mecânicos e contar com amparo no caso de eventuais problemas, assistência técnica em garantia deveria ser ponto de honra para as fábricas. Em tempos em que a fidelidade às marcas ficou para trás, cativar o cliente é tão ou mais desafiador do que conquistá-lo. Um cliente satisfeito é a melhor referência que o fabricante pode ter, assim como o inverso é mais que verdadeiro. Na prática, cada concessionário atua como embaixada da marca. Cumprir prazos, ter um bom estoque de peças e prestar serviços de qualidade a preço justo não deveria ser mais do que obrigação. Ao investir um considerável capital em um automóvel, o comprador dá um baita voto de confiança na marca. Ao não receber a contrapartida, a decepção tem peso diretamente proporcional.
Cordialidade, confiabilidade e transparência são a base para a construção de uma relação duradoura. Na contramão, posição defensiva e manobras evasivas acabam por empurrar o cliente para longe da rede em um primeiro momento e logo depois o leva a desembarcar da própria marca.
Vendo a questão do ponto de vista do outro lado do balcão, acredito que os fabricantes acabam por desprezar um tesouro ao não dar a devida atenção aos clientes reclamões. Saber ouvir (e agir, claro) os clientes é o caminho mais curto para elevar o índice de satisfação, o santo graal tão almejado pelas marcas. Ouvidos treinados e um contato mais próximo trariam benefícios tanto para o aprimoramento de produtos, serviços e métodos, com consequente benefício de imagem. Consumidores orgulhosos terão prazer em reverberar a boa escolha que fizeram. Aliás, é o que eu estou fazendo aqui: no mesmo dia da entrega, às 16h30, meu micro-ondas estava pronto. Tenho alguma razão para procurar outra assistência técnica? Vida longa ao técnico Lima e ao meu micro-ondas.
SB