O leitor pode me perguntar quais os principais fatores que influenciam a compra de um carro.
Beleza é fundamental, como já dizia o poeta Vinicius de Moraes. O impacto visual é, na ordem de importância, o primeiro fator decisório. Carro bonito é carro cobiçado, valoriza a marca e, por que não, seu dono. Sem dúvida, vale a pena o fabricante gastar mais e encomendar o projeto a um estúdio de design de renome, em vez de manter um estúdio próprio sem criatividade, fazendo a mesmice ano após ano. Este raciocínio vale também para o interior do veículo, painel, quadro dos instrumentos, bancos, controles, visibilidade e conforto de maneira geral, incluindo todo o sistema de informações.
O segundo ponto em ordem de importância é a solidez da carroceria e a sensação de que o seja realmente. Poucos ruídos internos e eficiente absorção de impactos pelas suspensões e sistema de direção passam confiança ao consumidor, traduzindo a imagem de veículo bem feito e durável.
O motor e o câmbio, o coração do veículo, vêm logo a seguir em ordem de importância, influenciando com relevância a sensação de desempenho e o prazer de dirigir. O câmbio bem escalonado, casado com um motor elástico que produza boa potência já em baixas rotações — aquilo que se diz de o motot ter “torque” — e que cresça progressivamente em direção a rotações elevadas, faz toda a diferença. Proporciona facilidade de dirigir e previsibilidade das reações em ultrapassagens. Maior o torque em baixas rotações, mais cedo a potência aparece, se dispõe dela.
São apreciadas uma primeira marcha que torne fácil a partida em rampas acentuadas e uma última que proporcione velocidade de cruzeiro nas estradas com economia de combustível, recorrendo-se ou não ao conceito de sobremarcha, em que a última marcha não é necessariamente a de se atingir velocidade máxima.
Boa potência em baixas rotações, resultado de um bom torque, facilita a modulação da embreagem na partida do veículo, diminuindo o tempo entre desacoplada e acoplada e consequentemente a sua patinagem, resultando em maior durabilidade do disco e platô. Potência em rotações mais baixas facilita o dirigir em tráfego urbano e também nas rodovias, permitindo rodar em marchas mais longas resultando em menor consumo de combustível.
A diferença entre as rotações de torque máximo e de potência máxima estabelece a importante característica chamada elasticidade do motor que, na realidade, é o que traduz a sensação de desempenho percebida pelo motorista. Os motores modernos com comando de válvulas variável em fase e no levantamento de válvulas, e com coletor de admissão de dois roteiros, facilitam este aspecto, garantindo potência tanto em baixas rotações quanto em altas. Ou seja, um motor elástico.
Como tudo isso se entrelaça pode ser melhor entendido no gráfico abaixo:
Tradução dos termos:
Power & Torque curves = curvas de potência e torque
Peak Power = pico de potência
Max. torque at lower rpm is better = torque máximo em rotações mais baixas é melhor
Max power in higher rpm is better = potência máxima em rotações mais altas é melhor
Peak Torque = pico de torque
Engagement torque, higher is better = torque de acoplamento mais alto, melhor
Higher is Better = mais alto é melhor (aqui o sentido é ‘mais afastado, melhor
Engine Elasticity Performance Feel = percepção do desempenho elástico do motor
O gráfico nos ajuda a entender a interrelação entre potência e torque, como aquela é função deste e as influências respectivas. Quanto mais os picos de potência e torque ficarem afastados, mais elástico será o motor e maior a sensação de desempenho. O número de marchas do câmbio e intervalo numérico (escalonamento) entre elas depende dessas características do motor. É o “casado” a que me referi mais acima.
Entretanto, hoje as “montanhas” estão passando a “platôs”, há faixas em que as curvas de transformam em retas, e o resultado é elasticidade ainda maior. O exemplo abaixo deixa isso claro.
O torque máximo (linha tracejada) de 45,9 m·kgf vai de 1.600 a 5.300 rpm e a potência máxima de 340 cv, de 5.400 rpm a 6.500 rpm. Isso significa que nesse motor a elasticidade é superlativa.
O ponto seguinte de agrado ao motorista é a estabilidade direcional, como se o carro não precisasse ser dirigido para manter a reta. Sua trajetória não se altera, ou o faz bem pouco, sob ação de vento lateral. Isso torna o dirigir relaxado e agradável. Outro aspecto que faz o motorista gostar do carro é o sistema de direção, e sua geometria, proporcionar um esforço no volante progressivo e crescente nas curvas, ajudando o motorista a sentir o quão próximo está o limite de aderência lateral dos pneus e por conseguinte do veículo.
É apreciada também a capacidade do veículo em efetuar manobras críticas como desviar de obstáculos sem entrar em derrapagem ou em pêndulo. Isso passa segurança e confiança ao motorista.
Pode acontecer que um único atributo seja tão bom que passe a ser o diferenciador da marca, se destacando independentemente do conjunto. No passado, o Fusca mantinha a imagem de veículo inquebrável, o que liderava o fator decisório na hora da compra, apesar de estar longe de ser considerado um expoente na questão do comportamento em curvas.
Eu sempre brinco que veículo bem equilibrado em atributos me dá vontade de morar dentro dele e não sair mais. É a valorização da beleza, do funcional e do prazer de dirigir.
E como é bom recordar os automóveis que marcaram sua trajetória como excelentes e inesquecíveis conjuntos.
Um bom exemplo foi a quarta geração do Fiesta, codinome BE91, lançada na Europa em 1995 e já em 1996 já era o veículo mais vendido no Reino Unido. No Brasil, produzido na fabrica Ford em São Bernardo do Campo, o Fiesta fez a sua estreia em 1996, sem a grade cromada e com três motorizações.
O seu grande destaque foi o motor Zetec-SE 1,4 importado da Alemanha. Motor moderno, projeto Ford/Mazda/Yamaha, destacava-se pelo desempenho admirável. Muito bem casado com o transeixo IB5 produzido em Taubaté, dava gosto de acelerar. Chegava aos 7.000 giros , a rotação de corte, com uma suavidade incrível, passando sensação de qualidade e potência. Seus 88 cv a 5.600 rpm e 12,7 m·kgf a 4.500 rpm e davam a sensação de muito mais.
Fiesta Zetec 1,4 (foto de divulgação)
O 1,4 Zetec era um motor muito bem manufaturado, com as tolerâncias e ajustes superprecisos e, diz a lenda, não dava retífica. Na realidade a Ford não recomendava a retífica justamente por afetar diretamente os ajustes diferenciados e então disponibilizava o motor parcial composto do conjunto bloco com pistões, bielas e virabrequim instalados.
A Volkswagen adotou estratégia parecida quando vendia o motor retificado de fábrica, à base de troca, evitando serviços mal feitos até na sua rede autorizada, com a vantagem da rapidez da troca do motor, feita em duas horas de serviço no máximo.
Com freios impecáveis e suspensões de dar inveja, o Fiesta era divertido e prazeroso de dirigir. A isolação acústica, tanto da carroceria quanto das suspensões, passava a ideia de veículo de classe superior.
Lembro-me quando eu apresentei o Fiesta para a imprensa no Campo de Provas de Tatuí, levei o nosso amigo Roberto Nasser dar uma volta na pista e ele ficou muito bem impressionado com o veículo.
Disse ele em sua reportagem em março de 1996: “O item estabilidade merece ressalto. O automóvel é estável e suave, macio de condução nas curvas. Obedece ao motorista sem entrar em tendência a pendular, sem desgarrar, sem sustos. Você pede — ou manda, dependendo da situação — e ele obedece. Mais ou menos acelerador, ele contorna a curva. Na experiência uma demonstração de estabilidade. O engenheiro Meccia simulou um desvio de rolamento como se estivesse desviando de um pedestre. Um golpe de direção, o automóvel passou-se para a outra faixa e quando eu esperava uma correção, nada, mudou e ficou firme. A manobra a 140 km/h é bom efeito demonstração”
Também o acabamento interno, com materiais de boa qualidade e boa manufatura, se destacava para a classe do veículo. Mesmo com aparência um pouco tristonhas de seus faróis, o Fiesta Zetec 1,4 se tornou um objeto de desejo, graças aos seus excelentes atributos funcionais. Posso afirmar que foi um dos melhores conjuntos que já dirigi em minha vida.
Sabendo o quão difícil é projetar um bom conjunto e seguindo a linha de melhoria continua dos japoneses, o Fiesta Zetec 1,4 deveria continuar servindo de base aos futuros modelos da marca e isto não aconteceu dentro do conceito do bom, bonito e barato. Não era bom, era excelente, porém muito caro. Praticamente não dava lucro e somente faltava a Ford pagar para produzi-lo.
Atualmente a Ford quase conseguiu este compromisso funcional do Fiesta Zetec 1,4 com o seu moderno Ka com motor um-litro de três cilindros. Se fosse a versão com motor turbo, mantendo o preço, certamente já o teria ultrapassado de longe.
Outro conjunto que me chama a atenção é o VW up!. Creio que a Volkswagen tem um excelente produto nas mãos para servir de base para os próximos anos.
Nesta linha, gostaria de ter a opinião do leitor, quais os melhores conjuntos no mercado brasileiro e a razão para a escolha.
Hoje termino a matéria com duas homenagens, ao Ka e ao up!, que em meu ponto de vista são dois veículos muito promissores e seus conjuntos certamente servirão de base aos futuros projetos da Ford e da Volkswagen.
CM