Naquela tarde de quinta-feira — véspera do feriado prolongado da Páscoa — fiquei sozinho no escritório. Decidi não mais abrir a caixa de entrada da correspondência eletrônica. Não queria ser obrigado a responder uma mensagem urgente ou descobrir que teria que refazer algum trabalho para entregar no próximo dia útil. Desliguei o celular, torcendo para que o telefone fixo não tocasse mais até anoitecer, pois certamente não seria um cliente em potencial solicitando um orçamento, mas algum infeliz pedindo emprego.
Já estava antecipando o almoço do dia seguinte na casa de meus pais. Bacalhau com salada de batatas, acompanhando o vinho tinto. A Sexta-Feira Santa não é dia para fugir para a praia ou para o campo: os costumes familiares ainda falam alto nesta ocasião, tal qual a reunião na manhã dominical. Restaria somente o Sábado de Aleluia para desfrutar de algumas horas de prazer sem qualquer culpa. Minha esposa visitaria uma tia dela em companhia da mãe e eu poderia colocar alguns discos de vinil para tocar, ou quem sabe terminar a leitura de “Morte em Veneza”.
Mas o Sábado de Aleluia amanheceu ensolarado demais para ser desperdiçado dentro de casa, vendo alguma reprise de filmes clássicos na TV ou pesquisando documentários sobre os primórdios da aviação na internet. Tirei o carro da garagem e, depois de semanas fazendo racionamento de água, resolvi lavá-lo. A cada movimento circular, pressionando um trapo velho sobre sua lataria, me convencia de que precisava colocar aquela máquina para rodar. O sedã importado de linhas esportivas fora comprado alguns anos antes, em tempos de economia aquecida. Logo veio a recessão e a vontade de vender o automóvel, mesmo sabendo que faria péssimo negócio oferecendo algo supérfluo em tempos de crise.
Quando minha esposa deu partida no “utilitário” da casa, pedi permissão para fazer o mesmo com meu brinquedo. Na verdade não preciso pedir permissão para nada: é o matrimônio que solicita tal tipo de gentileza. E com a concordância dela, eu dirijo mais tranquilo. Como não jogo futebol e sequer baralho, além de passar longe das mesas de bilhar, eu desanuvio guiando meu carro velho de vez em quando, com uma máquina fotográfica no porta-luvas. Nestas ocasiões não traço roteiros e não me importo de queimar gasolina sem motivo aparente. E se perguntarem sobre a minha consciência ecológica, responderei que estou acelerando o fim da civilização – medida essencial para que o planeta se recupere da mesma.
Minhas escapadas quase sempre são para o Circuito das Águas, no interior de São Paulo. Diferentemente de Campos do Jordão e das cidades do litoral, os destinos desta região não ficam apinhados de turistas e seus SUVs nada suaves. A variedade de atrações distribui bem o fluxo de pessoas, por causa da considerável gama de estradinhas vicinais asfaltadas na última década. O ar fresco que se respira nos contrafortes da Serra da Mantiqueira, quase gelado no outono, é irradiado pela luminosidade idílica desta época do ano.
Partindo da cidade grande, com suas marginais de grandes rodovias, vamos testemunhando a mudança do clima, das construções e das áreas verdes que ficam mais abundantes. É como subir lentamente de um profundo mergulho em apneia, num ritmo em que o sangue não borbulhe, por causa da diferença de pressão nas artérias. Aos poucos a gente se insere no ambiente mais tranquilo e acolhedor do campo, fugindo dos pedágios, das placas de publicidade e das lanchonetes de fast-food em postos de combustíveis que parecem rodoviárias.
Não há uma fronteira clara que separa os dois mundos: a grande metrópole e o refúgio esparramado por riachos e montanhas. Há uma estrada sem acostamentos que sai de Serra Negra e desemboca na ligação entre Lindóia e Socorro. Em determinado trecho a pista escala a cumeeira de uma escarpa. O lugar é tão belo que improvisaram um pequeno mirante capinando parte do mato após uma curva, com visão para dois vales — um apontando para o sul de Minas Gerais e o outro para cafezais remanescentes do ciclo que fez a fortuna da província que virou estado.
O silêncio só não é pleno, pois a brisa invade as orelhas trazendo o som abafado das cidades ao redor, como se estivéssemos prestes a dormir sem se importar com o que estão fazendo na cozinha. Os pulmões agradecem as lufadas que os preenchem sem esforço. Não me demoro muito por ali. Lembro que lá embaixo, onde a estrada toca o chão do vale, há uma antiga casa colonial que virou armazém geral daquele bairro agrícola.
Retomo as trocas de marcha que tanto me entusiasmam, ansioso por fazer uma fotografia que possa se tornar um pôster, até me decepcionar com o sobradinho medíocre que construíram no lugar da memória demolida. No térreo vejo um bar de bêbados. No pavimento superior provavelmente mora o sujeito que não me pediu permissão para estragar a cena. Tenho que me contentar com outra casa logo adiante, de estilo pobre e vernacular que, no entanto, rende outra parada.
Naquelas imediações também percebo um gavião a me espreitar do alto de um eucalipto que emana um cheiro de higiene, mesmo a léguas de distância de qualquer hospital. Ele em seu habitat natural, eu como intruso em seu território. Mas ali poderia sentar no meio do asfalto que não seria incomodado por qualquer veículo por tempo indeterminado. Naquela imensidão notei a falta das pessoas, ou seria a fome apertando? Veio em minha mente a pracinha central de Serra Negra, onde certa vez tinha sorvido um café expresso.
A caminho de saciar as papilas gustativas, a garganta ressecada pelas horas de estrada despertou o desejo de abrir uma garrafa de cerveja artesanal, de sabor frutado com um leve toque de canela, que desceria feito água mineral gelada numa estalagem perdida no deserto. Ao estacionar o carro perto da Igreja Matriz, me ocorreu que as leis brasileiras não toleram mais a combinação de algumas gotas de álcool com as mãos em qualquer volante, seja ele de madeira ou de courvin sobre espuma. E a espuma da cerveja, que quase nunca bebo, teria que esperar.
Para compensar pedi uma Coca-Cola. Depois de um longo tempo longe dos refrigerantes, por causa de uma alteração na pressão arterial identificada num exame de rotina, resolvi esquecer as recomendações médicas para pedir logo um sanduíche de bife acebolado com batatas fritas, pois o mundo sem batatas seria um lugar insosso demais. Quando você se abstém de algo gostoso, o sabor daquilo vem acentuado, lhe ensinando a dar valor para pequenas coisas, como ver as pessoas caminhando pelos calçadões na frente das mesinhas expostas nas fachadas dos restaurantes.
Perto do coreto, vejo duas garotas fazendo selfies, esticando os braços para segurar aqueles espelhos que tiram fotografias, acessam a internet e até fazem ligações telefônicas. Uma delas, a mais bonita, estava de minissaia e sandálias romanas, com tiras de couro se entrelaçando até os joelhos. Seus cabelos louros eram tingidos, pois as sobrancelhas eram castanhas. Os rapazes passam por ela e ninguém se aproxima, preocupados em deslizar os dedos sobre aqueles mesmos espelhos que refletem uma juventude pobre de espírito.
Fosse eu um garoto solteiro e já estaria cercando a moça, me oferecendo para tirar uma foto dela, sem que sua amiga ficasse com um ombro dilatado. Em algum universo paralelo eu poderia fazer isso correndo risco de ser bem-sucedido, e um dia veria minha filha de olhos marejados, sem entender a razão de sua mãe arrumar as malas. E no universo que respiro, não quero de modo algum perder a mãe da minha menina. Além do mais, eu gastei o que restava da minha ousadia conquistando a mesma.
Levanto da cadeira e comprimento o guitarrista que cantou a chegada do segundo sol, criado para realinhar as órbitas dos planetas. Na minha órbita estava o caminho de volta para o carro, que me levaria de volta para casa. É muito bom bater pernas pelas ruas de uma cidade distante, anônimo, de óculos escuros para fitar a balzaquiana que observa a sua face até desviar os olhos para sua mão esquerda e notar uma aliança, para então virar o pescoço num gesto de arrependimento.
O sol começa a triscar as montanhas mais altas e pergunto para o transeunte se existe um acesso para a cidade ao norte. “Acabaram de asfaltar” — ele responde. É para lá que vou sem acreditar no que estava diante do para-brisa: uma estrada vicinal com pouco mais de 12 quilômetros, com um asfalto imaculado se estendendo pelo acostamento adornado com guardrails, numa sequência de curvas que descortinam vales e várzeas onde o gado pasta pisoteando o capim. Se não fosse pela ultrapassagem sobre um caminhão, no “S” da piscina de Monte Carlo, eu completaria a travessia sem avistar outro veículo.
Guiar sozinho, naquelas condições, era como brincar num parque de diversões reservado só para mim. Levo a máquina ao limite da linha branca, mas a mente leva o conjunto para o limite do acostamento, separado de um penhasco apenas pelo guardrail. As placas indicam a velocidade máxima de 40 km/h, porém, na imaginação, faço o saca-rolhas sem tirar o pé do acelerador, segurando o touro na redução de marcha, com o motor urrando ao triplo da velocidade permitida. Na viagem dentro da viagem, as rotações por minuto perdem as referências, pois o bólido despenca solto no ar, nas poucas retas em declive, atingindo estimulantes 160 km/h.
Sonhar acordado é bom, e esta experiência não passou de um delírio de alguém que realmente gostaria de ser irresponsável por alguns minutos. Em todo caso, não revelarei onde esta estrada começa e desemboca. Ela será o meu santuário por algum tempo, até que seja descoberta pelos motociclistas que se esborracham nos bambuzais de Morungaba, ou que seja tomada pelos buracos oriundos da absoluta falta de manutenção. Para lá ainda quero voltar algumas vezes, para me isolar do mundo e esvaziar a mente, tirando do carro aquilo que ele tem para oferecer.
Retomo a pista principal, vigiada por radares, quando vejo pela janela direita o que parecia ser uma tromba d’água ao fundo. Não era. Poderia ser o reflexo de raios solares saindo da montanha, mas o sol estava se pondo do lado oposto. O que seria aquela configuração de nuvens? Não me lembro de ter visto algo parecido antes: uma espécie de arco invertido da apoteose do samba, a encerrar um desfile de carnaval. Para mim, no entanto, aquele momento se assemelhou mais a uma epifania em pleno Sábado de Aleluia. Era como se a turma do firmamento estivesse me enviando um prêmio por ter me comportado não só naquele dia, mas a vida inteira.
Observando aquela rara e fugaz composição no céu, me veio a certeza de que a vida, apesar de todas as amarras advindas das regras e convenções criadas pelos homens, vale cada segundo. E o medo que a gente tem, de levar uma vida medíocre e ordinária, deve ser combatido em todas as brechas do cotidiano, nem que seja a bordo de um sedã europeu velho de guerra, que não mais será vendido.
AE/NF