Eu gosto de acreditar que sou uma boa pessoa. Não daquele tipo que será canonizada provavelmente, mas tenho certeza de que sou correta e faço mais do que apenas o certo. Questão de educação e de temperamento. Minha mãe nos ensinou a fazer o bem em pequenas coisas. Não faz muito tempo ela soube que uma vizinha idosa que morava sozinha estava doente. Nem se conheciam, embora morassem no mesmo prédio. Levou por um par de dias comida pronta e foi fazer comprar de supermercado para ela. Quando éramos pequenas todo ano íamos até uma favela a alguns quilômetros de casa doar nossos brinquedos no Dia das Crianças. Minha mãe nos fazia separar brinquedos não quebrados, entrávamos as três no carro e íamos até a favela. Abríamos as janelas e simplesmente distribuíamos as coisas pela janela. Depois de algum tempo a questão da segurança ficou complicada em Buenos Aires e tivemos de parar com isso, mas esse tipo de gesto continuou arraigado em mim.
Posso dizer que com seres humanos estou bem na foto, mas talvez vá para o inferno dos animais depois de algo que fiz há um par de meses. Fui com alguns dos meus sobrinhos e uma amiga com seu filho até o Morro de Ipanema, em Iperó, um lugar aonde vou com frequência fazer trilha e ver alguns bonitos prédios de onde foi o berço da siderurgia em São Paulo. Poderia estar mais conservado, mas ainda assim é um espaço muito interessante para se conhecer.
Chegamos em dois carros – eu na frente com dois dos meus sobrinhos e meu marido em outro, com nossa amiga e seu filhinho de 4 anos. Ao entrar na reserva, deve-se apresentar documentos e pegar um ticket para pagamento na administração, que fica a uns 5 quilômetros da entrada por um caminho de terra batida.
Logo depois de fazer isso, me deparei com um sinhozinho bem idoso andando com sacolas de supermercado na direção da administração. Como tem uma vila onde moram muitas pessoas do projeto da Marinha e do Ibama que administra a reserva, deduzi que ele só podia ir para lá. Como disse, o caminho é longo e tem subidas e descidas e absolutamente nada a não ser mato em volta. E já eram umas 11h30 da manhã e o sol era inclemente. Imediatamente, encostei o carro e ofereci carona. “Deu lhe abençoe, fia”, disse o matuto. E subiu no carro. E foi logo avisando: “mas eu tenho um cachorro”… Não tínhamos visto o bichinho e fui logo murmurando que não poderia dar carona a ele, mas o sinhozinho disse para não me preocupar, que ele nos seguiria. E estalou os dedos para fora do carro e imediatamente apareceu o vira-lata mais vira-lata que vi na vida. Engatei uma primeira e comecei a andar — nessas alturas do campeonato, meu marido e mais um quatro ou cinco carros esperavam pacientemente atrás de mim. O Ricardo já me conhece e logo deduziu o que era, mas os outros não sei se sabiam o que estava acontecendo. E aí começou o perrengue.
O cachorrinho corria atrás do carro, ora de um lado, ora do outro e meus sobrinhos ficaram encarregados de me avisar por onde ele vinha. Claro que eu andava numa velocidade lenta para que ele pudesse acompanhar, mas ainda assim o caminho é cruel. Às vezes tinha que quase parar para que ele não se afastasse muito, enquanto o Ricardo e a Cláudia mantinham distância para não atropelar o bichinho que por vezes arriava. E um comboio de carros se formava atrás de nós. O matuto queria porque queria que eu fosse até a casa dele na vila para pegar algum cachorro para mim. E falava, falava. Eu dirigia olhando nos retrovisores. Até que chegamos numa terrível subida do caminho. Longa, íngreme. Aí comecei a desconfiar que na linguagem canina eu devia estar sendo xingada até meus tataravós. O cachorro devia pensar ”poxa, eu vinha na boa com meu dono velhinho, andando devagar e aí aparece esta louca, dá carona para ele e eu tenho de correr…”. Ao final da subida, o cachorrinho foi para o lado da estrada e sumiu da minha vista. O que é que foi fazer? Botar as quatro patinhas numa poça d’água para esfriar. O Ricardo diz que a cena foi hilária, pois quase saía fumaça…
Vários quilômetros depois, chegamos todos. Eu, o comboio de carros que formei atrás de mim, e o vira-latas. Vivo, mas a língua dele quase chegava ao chão. Confesso que fiquei meio dividida se tinha feito uma boa ação ou não. Se boa intenção conta, estou salva, se não, arderei no fogo do inferno canino. Recentemente fomos com esses amigos até Caverna do Diabo e fui instruída — por assim dizer — a não dar carona a ninguém. Já pensou um cachorrinho correndo atrás da gente por mais de 300 quilômetros? Aí é que iria para o purgatório dos animais de vez.
Sinceramente, não teria deixado aquele cachorrinho subir no carro. Se aguentar o cheiro de pinga do sinhozinho já estava difícil, misturar isso com pulgas e carrapatos estava totalmente fora de cogitação. Mas ainda assim me pus a pensar. Há anos não tenho mascotes de nenhum tipo — mas, se tivesse, como fazer para transportá-los em segurança?
Quando era pequena tive todos os animaizinhos de praxe: cachorro, tartaruga, peixinhos e, suprema doideira, até um macaco. Sim, coisa de pais divorciados. Meu pai já morava no Brasil e nós em Buenos Aires e numa das viagens ele apareceu com um macaco-prego. “Presente para as meninas”, disse à minha mãe. Pois é, faltou combinar com os russos, não? É claro que sobrou para minha mãe cuidar do bicho pois meu pai depois de alguns dias pegou o avião e voltou para a casa dele em São Paulo. Tenho que reconhecer que até hoje é o bicho que mais gosto e foi um período divertidíssimo das nossas vidas. Mais para minha irmã e mim do que para minha mãe, é verdade, mas ele encantou a família inteira — além de amigos e coleguinhas de escola. E até hoje somos capazes de falar durante horas sobre o Federico — esse era o nome dele, pois, dizem, era parecido com um tal Federico conhecido do meu pai.
Todo domingo almoçávamos na casa da minha avó e já no primeiro dia descobrimos que o macaco não podia ficar sozinho nem por uma hora em casa pois em pouquíssimo tempo conseguia destruir tudo a sua volta. O tapeceiro, o eletricista e o azulejista faziam parte da família, de tanto que vinham em casa consertar os estragos do macaco. O Federico vinha junto todo domingo e era transportado numa caixa de madeira, com porta de tela megarreforçada. Claro que ele não gostava de entrar na caixa e a manobra levava bem uns 15 minutos, além da gritaria, esperneadas e etc, etc. Mas era uma forma segura dentro do carro. Vocês não imaginam o que é um macaco dentro de uma casa — impensável dentro de um carro sem estar devidamente contido.
O Código de Trânsito Brasileiro tem algumas cláusulas para isso, mas não totalmente específicas. Ele estipula no Art. 169 que não se deve dirigir sem prestar atenção ou sem os cuidados indispensáveis à segurança — e muitos têm sido multados com base nesse artigo por transportar bichos soltos dentro do carro. Tem também o Art. 235 que diz que é infração grave conduzir pessoas, animais ou carga nas partes externas do veículo — ou seja, caçambas, por exemplo. E o Art. 252 diz que é proibido dirigir o veículo transportando pessoas, animais ou volume à sua esquerda ou entre os braços e pernas.
Como meus caros leitores sabem, sou pragmática e aprendo com meus erros — mas prefiro aprender com os dos outros, que dá menos trabalho. Pois bem, muito, muito tempo atrás, quando meu marido estava a caminho do vestibular, minha sogra o levava de carro e resolveu levar junto um dos cachorrinhos que eles tinham. O Cognac era um poodle incrivelmente educado, obediente — um cavalheiro canino, se é que me entendem. Ele ia solto no banco de trás, com as patinhas na janela parcialmente aberta e a cabeça para fora quando, ao passar num calombo no asfalto sobre a ponte da Eusébio Matoso, o Cognac caiu do carro. Já naquela época o trânsito na ponte era pesado, com muitos caminhões. Enquanto minha sogra tentava encostar o carro, o Ricardo desceu desesperado no meio do trânsito atrás do bichinho justo a tempo de ver uma carreta passar com todos os muitos pneus por cima do Cognac. Felizmente, o cachorrinho colou no chão e não aconteceu nada com ele. E, incrivelmente, ele levantou para, em vez de ir na direção do dono, atravessar todas as faixas da ponte para ir para o outro lado atrás de uma cadelinha. Encurtando a história, tudo deu certo mas meu marido chegou com taquicardia no vestibular e nunca, nunca mais nenhum de nós andou com bicho solto dentro do carro. Não apenas pelas multas ou pontos na carteira, que são relativamente recentes, mas porque sabemos quão perigoso isto pode ser. Isso sem falar que o vento no focinho pode provocar sérios problemas respiratórios nos animais.
Isso sem falar que se o mascote é maior numa freada ele pode realmente machucar os passageiros do banco da frente. Lembro das minhas aulas de Física que força é massa vezes aceleração – logo, o estrago pode ser grande. Sei que bicho não gosta de andar dentro das caixas, mas é pelo bem deles e não gosto muito dos cintos de segurança (foto de abertura) — até porque cães e gatos arranham todo o estofamento mesmo com proteções e mantas e como autoentusiasta não curto estragos no meu carro. O mesmo se aplica aos cintos de segurança usados para prender a coleira ou às cadeirinhas, semelhantes aos modelos infantis.
Não acho muito práticas as grades de proteção que dividem o porta-malas para acomodar os bichinhos. Primeiro porque só se aplicam a modelos hatch, sem tampa traseira, e segundo porque os bichos se mexem tanto que atrapalham a visibilidade traseira — sem falar quando babam ou sujam o vidro, dificultando a visão. Evidentemente pássaros e outras penosas só em gaiolas. Cacatua no ombro só no antiquíssimo seriado Baretta. No mundo real, não é nada prático. E já imaginaram se o bicho resolver voar dentro do carro?
Se realmente o animal tem de ir no carro é claro que não se pode deixá-lo trancado, especialmente em dias quentes, ainda que por pouco tempo ou em lugar na sombra ou com a janela parcialmente aberta. Os animais têm um sistema de transpiração totalmente diferente dos humanos e o que é aceitável para uma pessoa pode matar um cão ou gato. Sem falar no tédio que deve ser para um bicho ficar numa caixa dentro de um carro.
Mudando de assunto: Essa é daquelas histórias que se não é verdadeira é muito bem contada, como dizia meu nonno. Diz a lenda que nos tempos áureos da TV Manchete, o contínuo (sim, a história é antiga) que atendia a diretoria foi chamado às pressas pela secretária do “seu” Adolpho Bloch. Tinha que fazer um pagamento impreterivelmente naquele dia e já estava quase na hora do fechamento do banco. Diligente, o rapaz achou que tinha de resolver a situação. Ou, como diríamos hoje, foi pro-ativo. No sufoco, saiu da sala da diretoria e nada de achar um táxi. Mas viu o Mercedes-Benz do “seu” Adolpho e não teve dúvidas. Entrou e mandou o motorista levá-lo até o banco. Como o motorista o conhecia, achou que era a mando do patrão e nem questionou. Pagamento feito, o rapaz voltou para a TV Manchete mas o “seu” Adolpho descobriu a escapadela e chamou o contínuo à sua sala. “Rapaz, soube que você saiu com meu carro hoje e de sua resposta vai depender seu emprego. Você foi no banco da frente ou no de trás?”, perguntou diretamente o empresário. Quase tremendo, o rapaz teria dito: “No banco da frente, né ‘seu’ Adolpho?”. “Então está demitido”, teria dito. “De Mercedes-Benz com motorista só se anda no banco de trás.”
NG