Acho o primeiro impacto que todo autoentusiasta tem ao pisar nos EUA, seja sua primeira vez ou após longa ausência, é com a quantidade de carros legais circulando. O pescoço torce para vê-los quando aparecem do nada e torce com uma freqüência que as pessoas normais passam a nos estranhar. Costumo achar que lá está o parque automobilístico mais diversificado do planeta, é também o maior mercado para marcas de prestígio ou esportivas como Ferrari, Porsche, Lamborghini, Rolls-Royce, Bentley. Pode ser que a China já os tenha ultrapassado em algumas, mas meus planos de visitar o outro lado do mundo estão adormecidos agora. Nas cidades onde há grande concentração de dinheiro, Nova York, Chicago, Las Vegas, região do Vale do Silício, Los Angeles, os sujeitos acometidos por intoxicação financeira não fazem por menos e põem as suas máquinas para circular. Para nosso puro deleite.
Há exatos dez anos, um projeto que envolvia times do Brasil e EUA me fez visitar a terra do Tio Sam a cada quase três semanas. Apanhei inverno, verão, aeroportos fechados por neve, por tornados, estradas sob nevascas, enfim, uma experiência e tanto. Engraçado foi perceber em mim mesmo uma mudança, já não era qualquer carro que me torcia o pescoço.
Dois lançamentos quase simultâneos na época, o Chrysler 300C e o Infinity FX 35, se destacavam do rebanho, a quantidade de sedução que carregavam consigo chegava a ser um sex appeal. Fixei na cabeça, em algum momento de minha vida teria de pôr a mão neles. Dizia ao grupo aqui dos escribas do Ae que, não importa quando, quanto já tenham rodado, esperaria pacientemente as respectivas desvalorizações os tornarem acessíveis à minha capacidade econômica. Um dia ambos seriam meus, e no Brasil.
Não havia motivação racional para tamanha sedução, creio que as linhas do Chrysler me remetiam à década de 1930, como um carro de gângster numa releitura moderna deles, o automóvel daquele que está acima da lei, do bem e do mal. Para quem não sabe, o termo ‘gângster’ está associado à atividades ilegais de uma gangue, ou turma, teve seu glamour nos EUA dos tempos da lei seca, quem fabricava bebidas alcoólicas, as distribuía ou vendia, era considerado transgressor ou mesmo criminoso aos olhos da sociedade; ao mesmo tempo, era admirado e respeitado por aqueles que curtiam beber e não se importavam com as restrições dessa aberração legal. Vale uma rápida consulta àquela enciclopédia instantânea, o Wikipedia ou similar. Entre nós, sabemos que vender bebida não merecia ser taxado de criminoso, chamo isso de hipocrisias da sociedade, elege vilões de acordo com as circunstâncias, estas motivadas por propaganda, movimentos sociais, políticos etc.
Um carro que o mais famoso dos gângsteres, Al Capone, teve, virou peça de museu e foi recentemente leiloado, um Cadillac 1929. Tinha vidros laterais blindados e o vigia traseiro era facilmente removível para seus capangas apontarem armas a quem se atrevesse persegui-los. Imponente, sofisticado, veloz e sedutor, atraia olhares, mulheres bonitas, inveja e cobiça, quando não um policial ou um grupo deles atrás do chefe. Janelas pequenas, linha de cintura alta, o novo 300C pareceu-me ter “encarnado” esse espírito rebelde e transgressor de normas ridículas e o trouxe de volta ao século 21. As motorizações disponíveis — um V-6 manso, dois V-8 ardidos — falavam por si.
Tentando decifrar minha atração por esse sedã grande da Chrysler, creio que ela se resumia, através das linhas, na capacidade de transgredir padrões. Há oitenta anos o protesto era dar à sociedade o direito ao consumo de uísque ou bourbon, o direito à diversão com prostitutas ou com jogos de azar, todos esses prazeres banidos por leis. Vejam só, não defendo nenhum deles, mas me posiciono contrário às patrulhas, aos excessos e à hipocrisia. Hoje, bebidas alcoólicas estão liberadas, prostituição em muitos estados norte-americanos também, jogatina idem, o que a sociedade condena? Venera o oposto, quase o mesmo, motores verdes, baixo consumo, potência contida, veículos híbridos, a lista anti-entusiasta é extensa.
Uma forma de exercitar o meu direito de contestá-los poderia estar em sair por aí dirigindo algo com potência acima de 300 cv, que consuma 3 km/l e solte labaredas pelo escape, que devolva à terra a borracha consumida para produzir seus pneus na forma de largas marcas negras no asfalto. Se conseguisse tudo isso sintetizado num só automóvel, estaria próximo ao Graal. Mas no mundo de hoje, isso é impossível, você pode ter um V-8 cuspidor de fogo e queimador de pneus, desde que o veículo seja usado e antigo, em vinte anos isso terá se tornado lenda, serão peças de coleção. Há muito a indústria se acomodou a atender aos padrões dos bons moços, automóveis que liberem adrenalina seguem o caminho da extinção. Autoentusiastas amam justamente aquilo que a sociedade moderna condena, creio estivesse aí meu forte elemento de identificação com o Chrysler 300C.
Essa ilusão que me tomou talvez nunca estivesse ligada à proposta do 300C, mas quem foi que disse que automóveis tem somente um significado e racional ainda por cima?
Fruto da aliança que balançara o mundo em fins de 1998, passaram seis anos e a DaimlerChrysler já não mais era vista como uma fusão de iguais como alardearam no momento que anunciaram a fusão. Estava claro para todos os americanos que os alemães é quem mandavam na nova empresa e se esperava que a fornada dos novos produtos carregassem algo de Mercedes.
Este novo exemplar herdara do sedã médio Classe E (W211) a caixa automática (ZF de cinco marchas), o projeto de suspensão traseira, além de alguns outros componentes não aparentes, insuficientes porém para dar ao Chrysler um comportamento dinâmico alemão, mas poupavam milhões de dólares em custos de desenvolvimento e na maior escala de produção. No entanto essa herança, aos olhos de muitos, acabou se tornando um atrativo a mais, afinal, qual sedã americano podia dizer que era um Mercedes por baixo? Para aqueles que avaliam carros partindo do ponto de vista plataforma, o 300C era um Mercedes camuflado. Nunca foi.
Vou além, essas interpretações equivocadas de plataforma que repetidas vezes falamos aqui seguem criando mitos que nada tem a ver com o automóvel. O 300C e o Classe E W211 têm propostas completamente distintas. O americano visa compradores pacatos, acima de 55 anos e o segmento de sedãs grandes, enquanto o Mercedes é um sedã esporte clássico de tamanho médio. Curiosamente, as fichas técnicas de ambos apontavam pesos similares, ao redor de 1.800 kg.
O 300C manteve-se secretamente inalterado em meus sonhos, foi envelhecendo com imponência assistindo seus competidores de segmento se renovarem. Em fins de 2011, a Chrysler, já sob o comando de Sergio Marchionne, conferiu-lhe uma série de atualizações mecânicas e estéticas, a carroceria se enrijeceu com emprego de aços nobres na estrutura, nova caixa de câmbio automática ZF de oito marchas, faróis com LEDs e um interior novo e caprichado, GPS e tela tátil de infotenimento. Curioso e controverso ao mesmo tempo, perdia a origem Mercedes, os plásticos baratos de acabamento e ganhou sofisticação com Fiat. Meu amor platônico por esse carro seguia, inteirar-me dessas mudanças foi um baque, como as fizeram sem minha autorização? Foi como se eu namorasse a Gisele Bündchen sem ela saber e ela recebesse um implante de silicone: ao ver a novidade estética, eu esbravejaria, me sentia no direito de ter aprovado as mudanças.
Seus competidores diretos naquele mercado são o Toyota Avalon, Chevrolet Impala, Ford Taurus (antes chamado de Ford Five Hundred), Hyundai Azera e seu primo o Kia Cadenza, num segmento que vem encolhendo e ao mesmo tempo recebendo novos produtos, o 300C segue sendo o rei, o carro que Al Capone gostaria de ter dirigido estivesse hoje vivo.
Enfim, minha oportunidade chegou, um 300C vermelho e interior creme, zerado de tudo, vinte e duas milhas no hodômetro não dá nem a rodagem do pátio da fábrica, me esperava no estacionamento da locadora. Longe de ser na especificação de meus sonhos, sem V-8, teria de me resolver com ele do jeito que estava, chave na mão.
Trata-se do 300C AWD, 300 cv e 36 m·kgf de torque extraídos de um motor V-6 de 3.6L, câmbio ZF automático epicíclico de oito marchas, suspensão independente na frente e atrás, 5.044 mm de comprimento, 3.053 mm de entre-eixos, 1.920 kg em ordem de marcha e 2.500 kg carregado, um peso-pesado. A tração integral não é permanente, a caixa de transferência ativa as rodas dianteiras de forma automática quando os sensores percebem que as rodas de trás passam a patinar.
O painel redesenhado neste face-lift ficou bonito, a grafia dos instrumentos parece clássica, letras brancas, fundo negro, luz azul, uma combinação feliz.
Ao engatar para a posição D tive a primeira decepção, não há opção de selecionar marchas no modo seqüencial, apenas a função L (de low), que engata sempre uma marcha inferior à que seria normalmente usada e a retém por mais tempo, solução que abomino. Estava ansioso para colocá-lo para rodar, conectei meu telefone, selecionei a música do Eminem, “The Way I Am”, aquela onde quer mandar todo mundo às favas e tomei meu rumo em direção ao hotel.
A estrada que sai do aeroporto, a I-94, sentido leste, estava livre naquela hora da noite, nada melhor para colocar minha rebeldia no carro que esperou dez anos para isso, sem policiais por perto, 110 milhas por hora, o rapper branco berrava sua revolta e eu a depositava no asfalto.
Apesar de saber da vocação nada esportiva do 300C, ele até que não se comportou mal, não chega a flutuar como os sedãs de seu segmento, tampouco é um sedã esporte, duas toneladas naquela velocidade demandariam esforço hercúleo dos freios se precisasse parar rápido; não precisei.
Aquele momento de contato com o carro era-me importante. Ele tem cara de mau, jeitão de intrometido, mas se comporta como um gentleman, numa estradinha de curvas apertadas, rolava a música “Sympathy for the Devil” cantada pelos Guns’n’Roses, meu sonho rock’n’roll parecia ser mais roll que rock, a caixa automática de múltiplas marchas só piorava as coisas, tentei um drift com o controle de tração desligado, mas o carro parece feito para evitá-los. No molhado sim, consegui fazê-lo escorregar, não por muitos metros.
Piorou minha sensação da plástica malsucedida no meu carro dos sonhos depois de perceber que uma vez em velocidade estabilizada, a caixa parece ter cinco mil marchas engata a mais desmultiplicada possível para economizar combustível e as retomadas ficaram irritantes, pensava eu, onde e como é que foram estragar o meu objeto do desejo? Sem me avisar?
Aceleração a pleno gás é razoável, retomadas ruins, firmeza da suspensão mediana, um bom cruzador de estradas, que é exatamente a sua proposta.
A lista de mimos era extensa, teto solar de dupla folha de vidro deixa o interior claro e arejado, som premium Harman Kardon, GPS com tela tátil com tecnologia Garmin bem fácil de usar e de atualizar, couro macio nos bancos, ajuste de direção em altura e distância elétricos, assim como os ajustes dos bancos. Destoava o plástico imitando madeira, mas nada que condenasse o bom trabalho feito no projeto do interior.
Tive uma semana para me entender com ele e me entendi bem, concluí que esse meu sonho estava mais para fetiche, um sedã esporte rápido e cruzador de autoestradas, de estradinhas apertadas, pronto para um Track-Day… — não, nada disso, longe de ser um AMG da Chrysler. Para que o 300C fique de meu jeito, teria de optar pelo kit de suspensão especial, V-8, caixa automática de 5 marchas seqüencial (não existe manual!). Mas qual carro personalizado que não é fetiche? A vida fica bem mais saborosa com eles. Ainda terei o meu.
Em seguida, levaria o carro a meu amigo Ogro, o AG deste site, pediria a ele que abandonasse os Fiats e Alfas por um breve momento e apimentasse o V-8 para mim, são todos da mesma família agora.
MAS