“He cried: “Forgive me for what I’ve done there
Cause I never meant the things I did
And give me something to believe in.”
Se você reparar, o Capitalismo é como a vida em si: cruel, e profundamente injusto e implacável na maioria do tempo. Mas também, em alguns momentos de superação e vitória, capaz de nos dar vislumbres incríveis da real felicidade. Por isto ainda é o sistema que funciona melhor e dura mais: nenhuma outra utopia experimentada pela humanidade dá tanto lugar para a infelicidade e a injustiça. Então se você tiver vontade de criar uma nova utopia, um sistema melhor, por favor o faça entendendo o óbvio: infelicidade é parte integrante da felicidade. A vida só é boa tendo partes ruins, e boas. Utopias até hoje falharam porque imaginam um mundo sem tristezas e adversidades. Querubins vivendo numa sociedade igualitária sem tristeza nem violência, poluição, morte e nada inesperado? Ninguém aguenta uma coisa tão chata assim. Arame farpado e águas infestadas de tubarões nem parecem tão perigosos de enfrentar para se escapar disso. Principalmente porque para se consegui-lo, fatalmente estas utopias inspiram-se em sociedades sem individualidades e liberdades pessoais, em entidades coletivas acéfalas dedicadas apenas a preservação da espécie. Formigueiros humanos.
Apesar disso, tais fantasias de mundos igualitários perenemente felizes perduram. O que faz todo sentido, pois para muitos a religião não é suficiente, e é impossível passar uma vida sem a esperança de que algo melhor é possível, nem que seja para nossos filhos, netos ou bisnetos. Precisamos de algo para acreditarmos, todos nós. De comunistas a anarquistas, de veganos a ecologistas, de hedonistas a ascetas, de católicos a muçulmanos, todos precisamos de algo para acreditar. Mesmo os que se declaram sem nenhuma religião ou credo, tendem a acreditar na sua própria divindade, ou na ciência, a mais mística e menos satisfatória de todas as religiões.
Com a decadência da religião, e a falência das utopias socialistas em geral, a humanidade hoje então se dedica a preservação do planeta. É a nova utopia possível para os órfãos de todas as outras utopias falidas. Acreditam em coisas patentemente indesejáveis e incapazes de resolver algo, como um mundo movido a baterias, quando é claro que o problema que se enfrenta é o próprio sucesso do ser humano como espécie: continuamos crescendo em número e ocupando o planeta cada vez mais. Mas não conseguimos acreditar que não podemos continuar crescendo, então acreditamos em outras coisas.
Como não poderia deixar de ser, as empresas, também, procuram algo em que acreditar. Imbuídas de uma necessidade de serem relevantes além de seu objetivo básico (criar bons produtos e lucrar com eles o suficiente para se manterem vivas), as empresas se dedicam a criar missões e valores onde antes não havia nada, nem a necessidade de tal coisa. Todo tipo de loucura e idiotice acontece neste campo, e muito pouco de real ou desejável vem em troca. Se você precisa procurar um significado, há grande chance que não exista nenhum para começar.
Vale tudo nessa procura de significado maior, e por isso empresas mais antigas tentam olhar para seu passado nesta busca, e fazendo isso entram em um terreno extremamente pantanoso. O que falar da VW, por exemplo? Apesar da empresa atual, como organização, não ter absolutamente nada em comum com a entidade estatal nacional-socialista de antes e durante a 2ª Guerra Mundial (além do carrinho projetado pelo bom Dr. Porsche), não há como negar: foi fundada por Adolf Hitler. Sim, ele mesmo, o genocida mais famoso da história da humanidade. Pior que isso, só se o capeta em si saísse das profundezas do inferno e fundasse a empresa. Ter Hitler como fundador é de matar. A VW, portanto, não gosta muito de lembrar de sua história antes da guerra, por mais interessante e rica que seja, por motivos óbvios.
Mas pior que omitir um trecho indesejado é esquecer a sua própria história, ou revisitar parte importante dela para que possamos acreditar num significado mais nobre. Recentemente, a tentativa de resgate de Louis Chevrolet pela marca da gravata tem me incomodado sobremaneira, por vários motivos. O primeiro é porque não é necessário: a empresa tem uma longa e poderosa história cheia de gente interessante e carros memoráveis. Não há necessidade alguma de ligá-la a alguém que lhe deu só o nome. A segunda é porque, ao invés de homenagens vazias, Louis certamente preferiria sua parte em grana. Nem que fosse para seus descendentes. E por fim, acredito que depois de tanto tempo, contar a história real, sem medo ou remorsos, soaria muito melhor, e seria mais digno para a memória de Chevrolet, e para a empresa que levou seu nome. Mas já que a marca não tem tempo ou inclinação para tal, resolvi fazê-lo eu mesmo.
Louis Chevrolet
“Ele era um sujeito grandalhão e meio bronco, mas gentil, carinhoso e devotado à família. Se levado ao extremo, porém, sua ira era temível, bem como era a incrível força com que a ventilava. Tudo que tirou da vida, o pouco que seja, foi fruto de muito trabalho e muita luta, e além disso indubitavelmente deixou marcas profundas na história. Mas de todos os contemporâneos que devotaram suas vidas à paixão pelas máquinas, nenhum teve recompensa tão pequena. ” — Griffith Borgeson, “The Golden Age of the American Racing Car”.
Louis Chevrolet nasceu no dia de natal do ano de 1878, em La Chaux de Fonds, uma cidadezinha de um cantão francês bem perto da fronteira, localizada bem no centro da região suíça dedicada a relojoaria. La Chaux de Fonds é a cidade da Heuer (hoje TAG-Heuer), Omega e Movado. O pai de Louis, Joseph Felicién, era ele também um relojoeiro. Ao redor de 1887, a família se muda para a cidade francesa de Beune, onde nascem os irmãos de Louis: Arthur em 1888 e Gaston, em 1896.
Conta a lenda que o jovem Chevrolet, desde cedo fascinado por todas as coisas mecânicas, trabalhou como guia de um comerciante de vinho cego, e neste trabalho desenvolveu uma bomba para transporte da bebida depois da decantação, incorporada ao método de produção da região por décadas. Aos dezessete anos, vai trabalhar como mecânico na oficina Roblin, que reparava carruagens e bicicletas, esta última a nova febre mundial.
Logo o jovem mecânico produzia e vendia na oficina bicicletas desenhadas por ele mesmo. Eram chamadas Frontenac, o governador da América colonial francesa. Louis Chevrolet já sonhava então com a terra da oportunidade.
A carreira de Chevrolet se move rápido então: trabalhando para a Darracq, fabricante das bicicletas Gladiator, Louis conhece os motores de combustão interna e simplesmente pira com eles; em pouco tempo sabia tudo que poderia se saber sobre o assunto. Chevrolet sente o gosto da competição automobilística pela primeira vez na Darracq: é mecânico de bordo do grande Victor Hemery. Seguem-se períodos na Mors, na Panhard e na Hotchkiss, até que, na virada do século, Louis Chevrolet resolve emigrar para a América.
Mas não vai para os EUA inicialmente. Primeiro arruma emprego de chauffer em Montreal, na parte francesa do Canadá. Um chauffer, em 1900, era algo bem diferente do que parece hoje: tinha que conhecer tudo sobre o carro que iria dirigir, e desmontá-lo e montá-lo de novo se fosse preciso. Mas seis meses depois, Chevrolet consegue um emprego na filial americana da DeDion-Bouton, no Brooklyn, em Nova York, então um bairro com grande colônia francesa. Em 1902, uma breve passagem pela Walter de NY o apresenta a um amigo por toda vida: o Engenheiro Etienne Planche. Bem instalado em NY, ao saber da morte recente de seu pai, traz toda a família para os EUA. Em 1903, uma oferta ainda melhor da FIAT, ali mesmo em NY, faz Chevrolet mudar de emprego novamente.
Além de ser um dos melhores mecânicos de então, o talento de Louis ao volante também era inegável. A FIAT o coloca em um carro de competição de 90 cv, e Louis prontamente bate o recorde de tempo para uma milha: 52,4 segundos. O recorde anterior era de Barney Oldfield, então já o mais famoso piloto americano, e, portanto, imediatamente o nome Chevrolet é alçado à fama. Anos de sucesso como piloto se seguem, na FIAT até 1906 e depois com Walter Christie e seus monstruosos carros de tração dianteira. Louis Chevrolet era então um piloto famoso de vasto sucesso quando, em 1907, aparece em sua vida uma figura importante nesta história: William Crapo “Billy” Durant, o fundador da General Motors.
Buick, Durant, e a General Motors.
Enquanto Louis ainda era um menino em uma oficina de bicicletas no interior da França, David Dunbar Buick já era um industrial de sucesso em Detroit, apesar de suas origens pobres na Escócia. Mas ainda nada de automóveis ou coisa parecida: era fabricante de tubulações industrias e residenciais, e de banheiras e vasos sanitários. Quando conheceu o motor de combustão interna, ficou louco com aquilo; em pouco tempo vendia sua fábrica para aplicar o capital na fabricação de motores e automóveis. Logo anunciava o famoso motor “Valve-in-head”, de válvulas no cabeçote, novidade que o colocou no mapa.
Mas o desenvolvimento de automóveis se mostrou mais difícil do que parecia; ao redor de 1902 o dinheiro acabava, e Buick procurava investidores para sua jovem companhia. Os irmãos Benjamin e Frank Briscoe emprestam algum dinheiro, mas em um ano parecia claro que Buick não poderia honrar sua dívida, e os dois vendem a companhia para a Flint Wagon Works, fabricante de veículos de tração animal da cidade de Flint, ali mesmo em Michigan. Esta mudança de dono fez com que David Buick e sua empresa se mudassem para Flint em 1903.
Lá chegando, Buick vem a conhecer Billy Durant. Até então cético sobre o automóvel, Durant era um bem-nascido industrial da região de Flint: sua Durant-Dort Carriage Company estava perto de se tornar o maior fabricante mundial de veículos de tração animal. Ele realmente estava entre a parcela da população (que existia em número nada desprezível) que odiava a novidade. Olhando de fora, da calçada, achava-os barulhentos, fumacentos e perigosos, a ponto de proibir seus familiares de andarem nas traquitanas.
Mas David Buick o convence a dar uma volta com ele em um de seus carros. Aboletado naquele pequeno carro guiado por seu criador, Billy Durant teve uma daquelas epifanias que mudam a vida. Entendeu rapidamente que aquilo era o futuro, que uma vez experimentado, ninguém em sã consciência ia querer selar um cavalo. A facilidade de se pôr em movimento, a velocidade, o conforto e a sensação de controle absoluto eram absolutamente inéditas, e agradabilíssimas. Vendedor nato, entendeu na hora que poderia vender milhares, talvez milhões daquilo. E que suas carroças e carruagens logo iriam ser relegadas a museus. Uma visão do futuro. Ali, naquele momento, nascia em espírito a General Motors.
Logo Durant entra como investidor e principal executivo na Buick. Durant era como um furacão; onde quer que entrava tudo mudava para seu ritmo frenético. Não dormia muito, não parava muito tempo no mesmo lugar, e sempre seguido de assessores, fazia negócios e decidia coisas incessantemente durante o dia inteiro. A Buick então tinha vendido pouco menos de 40 carros em sua curta história. Durant coloca um estande no Salão de Nova York de 1904, e toma conta dele pessoalmente; volta para Flint com mais de 1.100 pedidos firmes. A Buick finalmente parava de patinar, ganhava tração, e começava a andar ao ritmo de Durant.
Vendedor incansável, Durant cria uma equipe de competição para promover a marca. Esta equipe faria muito mais que apenas competir: mandada para toda feira no interior do país, anunciava prêmio polpudo para qualquer cavalo que pudesse bater o Buick em uma arrancada. Muito da popularização do automóvel deve-se a este show itinerante de Buicks brancos pelo interior dos EUA.
Foi neste momento, em 1907, que Durant recebe Louis Chevrolet, em companhia de seu irmão mais novo Arthur “Art” Chevrolet, na Buick. Durant queria duas coisas: um motorista particular para ele mesmo, e mais um ás para sua equipe de competição recém-criada. Como o posto de motorista era o mais bem pago, os três resolveram rapidamente uma maneira de decidir quem seria o que: uma corrida. Louis, dirigindo como um louco como sempre, vence facilmente o irmão. Mas para sua surpresa, quem ganha o cargo de chauffer é seu irmão Art! Parece que o patrão não ficou bem impressionado com a técnica de direção de Louis, muito agressiva.
Desde este primeiro encontro, Durant e Chevrolet mostraram ter expectativas totalmente opostas em qualquer situação que encontrassem. Seria a marca de um relacionamento marcado por desentendimentos, e em que sempre a vontade de Durant se sobreporia à do ingênuo boa-praça Chevrolet.
Mas o fato é que a família se muda para Flint para trabalhar na Buick, e ambos os irmãos acabam nas pistas com a equipe da marca, com um salário considerável para a época. Nos anos que se seguem, os Chevrolets seguem competindo com Buicks pelos EUA afora, adicionando lustre à marca de Flint, e também, é claro, ao nome Chevrolet.
Franceses em Flint
Em setembro de 1908, Durant incorpora a General Motors. Ato contínuo, num ritmo frenético, começa a incorporar sua visão de um conglomerado industrial gigante com volume idem, alavancando reduções de custo e mais lucro. A GM compra a Buick, e em seguida a Oldsmobile, então um dos fabricantes de maior volume do mundo. Em 1909, a Cadillac de Henry Leland e a Oakland (depois renomeada Pontiac) já faziam parte do conglomerado, bem como um sem-fim de fornecedores de autopeças.
Um desses fornecedores era a AC Spark Plug Company. AC eram as iniciais de Albert Champion, um campeão de ciclismo francês que fundou não só a AC, mas o outro grande fabricante americano de velas de ignição, a Champion Spark Plug Company, com a qual não tinha mais ligação naquele ponto. Todo Buick usava velas AC, e com a consolidação da GM, também todos os outros carros vendidos pelo conglomerado. A sua antiga companhia, a Champion, do outro lado, conseguia um contrato com a Ford, fazendo com que todo modelo T saísse com velas Champion.
A AC era parte da GM, mas Albert Champion era seu presidente e segundo maior acionista. Com o sucesso da GM, Champion fica realmente rico, e compra uma luxuosa casa em Flint. Lá, este orgulhoso francês, entusiasta da velocidade e um atleta nato com múltiplos campeonatos de ciclismo em seu currículo, e sua esposa também francesa Elise, criam um pedacinho de Paris no Michigan. Todo fim de semana, a casa se enchia de expatriados franceses para longos almoços preparados por chefs importados de Paris, e muito vinho. Além de Basil de Guichard e a família, seu braço direito na AC, os Chevrolet também eram assíduos frequentadores da casa de Champion. Além de sua mãe, seus irmãos Art e Gaston, Louis tinha agora sua própria família: sua esposa Suzanne, uma francesa que conheceu no Brooklyn e casara no mesmo ano que fora contratado pela FIAT, e seu primeiro filho recém-nascido.
Louis Chevrolet e Albert Champion tinham muito em comum, além da nacionalidade: ambos eram pilotos de competição, tanto em bicicletas como em motocicletas e automóveis, e ambos acabaram no mesmo lugar, trabalhando para a mesma companhia. Ambos eram orgulhosos e divertidos, e carregavam histórias e cicatrizes de encontros próximos com a morte: Champion inclusive tinha uma perna menor que a outra, fruto de um acidente terrível com um triciclo motorizado. Os dois, obviamente, se tornaram grandes amigos.
Durant é demitido
Billy Durant, enquanto isso, não tinha tempo para almoços que duravam o dia inteiro. Incansável, continuava trabalhando quase 24 horas por dia, e expandindo o seu conglomerado de empresas. No ano seguinte em que Champion se muda para Flint, Durant compra 20 empresas, um ritmo absolutamente frenético.
Durant tinha uma fé inabalável no futuro do automóvel e sua indústria. Em 1906, quando automóveis ainda estavam firmemente posicionados como brinquedos caros para os ricos, Durant, em um almoço com seus amigos Charles Nash e Josiah Dallas Dort (seu sócio na Durant-Dort), previu sem medo com absoluta certeza que um dia iria vender cem mil carros ou mais em um ano. Os dois ouvintes se entreolharam, em silêncio. Quando Durant os deixou para novamente se mergulhar no trabalho, Nash vira para o amigo e diz: “Dallas, o Billy está louco. ”
E foi esta fé inabalável em um futuro que se mostraria, no fim, real, que o levou a falir a GM pela primeira vez. Sim, praticamente cem anos antes da mais recente falência, a GM parou sem dinheiro para manter a máquina andando. Preocupado em expandir a empresa apenas, o impulso comprador de Billy Durant acaba por fazer a empresa completamente insolvente. No verão de 1910 a produção da GM para completamente. A exceção foi somente a Cadillac, onde o respeitado Henry Leland consegue um empréstimo para conseguir pagar seus funcionários e continuar operando.
O impensável acontece então: Durant é demitido. Um consórcio de bancos de Nova York resolve investir na GM, mas somente se ele fosse retirado das operações. Obviamente Durant ainda manteve uma quantidade substancial de ações, o que lhe garantia uma cadeira no conselho financeiro, mas sem poder algum para dirigir a empresa que criara.
Durant e Chevrolet
Louis se aposenta de competições naquele ano, sem dúvida pressionado pela família. Ao mesmo tempo, Durant, que não ia deixar barato essa história de sair da GM, começa a construir seu império novamente. Seu interesse em Louis Chevrolet era principalmente o nome: Billy achava um nome sonoro tão importante quanto o produto em si, e sempre teve reservas sobre o nome Buick, por exemplo. Mas Chevrolet era outra história: soava bem em francês e inglês, e era conhecido mundo afora graças as vitórias nas pistas de Louis e Art.
A fase mais feliz da vida de Louis começa então: Durant financia uma oficina totalmente equipada, na Grand River Avenue, em Detroit. Lá, Chevrolet e seu amigo, o engenheiro Ettiene Planche (outro francês do Brooklyn) passam o ano de 1911 criando o carro que levaria seu nome. Chevrolet queria que seu nome fosse afixado a um produto de alta qualidade, e, portanto, seu projeto era um carro de seis cilindros, grande e potente, e obviamente veloz como Louis sempre fora ao volante. Não estava muito interessado em como vendê-lo, e Durant o deixou sem supervisão, ocupado que estava em outros assuntos paralelos que convergiriam em breve.
Conta a lenda que quando o primeiro chassi ficou pronto, às quatro da madrugada, Louis se aboletou nele e saiu para testá-lo, sozinho. Dirigindo à sua moda pelas ruas de uma Detroit ainda adormecida, o enorme seis em linha com escapamento aberto acaba por acordar pessoas, e logo aparece um policial, que para Chevrolet, e o leva para a cadeia. O juiz de plantão acaba por libertá-lo com duas multas: 5 dólares por velocidade acima do permitido, e mais 25 por fazer-se passar por um piloto famoso! Louis adorou a história e contava ela para todo mundo. Durant não viu graça nenhuma.
Billy Durant tinha acabado de criar a Little Motor Company (com William Little, o administrador da Buick na época de Durant). O Little era um carro pequeno de quatro cilindros, custando ao redor de mil dólares, algo mais sofisticado que o Ford modelo T, mas custando pouco a mais. O carro de Louis custaria preço de Packards: 2.200 dólares. Durant considerava este mercado saturado, e não acreditava que o Chevrolet Classic Six de Louis era o que ele precisava. Mas mesmo assim, em novembro de 1911 era incorporada a Chevrolet Motor Company. Durant levantou, com a venda de ações, mais 2,5 milhões de dólares de capital para a nova companhia.
Louis não era listado como executivo da companhia, porém. Contente com uma gorda quantidade de ações que Durant lhe dera, e em fazer um carro que fazia jus a seu nome, Chevrolet parecia feliz: nas fotos de lançamento da companhia e do carro aparece sorridente em seu jaleco branco, um pai orgulhoso. Durante o ano de 1912 o carro vendeu bem para seu preço (quase 3 mil unidades), e no fim do ano, achando que sua missão estava cumprida, parte com a mulher e os dois filhos para uma longa viagem à França. Voltaria quase um ano depois.
Durante este tempo, claro, Durant não ficou parado. Continuou comprando e incorporando companhias. Descontinuou o Classic Six, e transformou o Little em Chevrolet. Dali em diante, a marca com o nome de Louis seria um competidor barato para o Ford modelo T.
Quando voltou e descobriu seu carro descontinuado, Louis não ficou nada feliz. A tensão aumentou entre ele e Durant, que para piorar não cessava de questionar os hábitos pessoais de Chevrolet. Segundo Durant, um executivo da indústria deveria se vestir melhor, nunca aparecer sujo de graxa, e principalmente fumar charutos, e não os proletários cigarros como os que nunca saíam da boca de Louis. Não demorou muito para Chevrolet perder a paciência, e num ataque de fúria na sala de Durant, nosso herói grita: “Eu vendi meu nome e meu carro para você, mas não vou me vender. Eu vou fumar o que eu quiser quando eu quiser e onde eu quiser. Estou fora!” E batendo a porta atrás de si, Louis Chevrolet parte definitivamente da empresa que levava seu sobrenome para nunca mais ter ligação alguma com ela.
Amargurado, ao sair vende todas suas ações para Durant. Uma ação intempestiva bem ao seu estilo, mas uma da qual gerações de sua família passariam a lamentar profundamente. A Chevrolet de Durant foi um imenso sucesso, e com os lucros da empresa secretamente Durant compra ações da GM aos poucos, até que em um famoso dia em 1916 ele entra na reunião do conselho e diz: “OK, senhores, agora eu controlo esta companhia.”
Durant incorpora a Chevrolet à GM, e se mantém presidente até 1920, quando as famílias DuPont e Mclaughlin finalmente retomam o controle. Pierre DuPont coloca Alfred Sloan no comando da GM, e este a torna em poucos anos a maior empresa do mundo. Chevrolet, sua marca mais importante, passava a valer agora uma fortuna simplesmente incalculável. Mas nenhuma fração ínfima desta fortuna chegaria a ninguém com sobrenome Chevrolet.
Chevrolet depois da Chevrolet
A vida nunca sorriria novamente para nosso azarado amigo. Louis resolve voltar ao terreno que mais conhecia: as competições. Desenvolve um novo carro de corrida, usando a marca Frontenac de suas bicicletas na adolescência. Para financiar o desenvolvimento, conta com a ajuda de um velho amigo: Albert Champion.
Durante o verão de 1914, em uma nova oficina em Detroit, agora financiada por Champion, Louis e Art Chevrolet, de novo com Planche como engenheiro, trabalham incessantemente nos novos Frontenacs, visando a temporada de 1915. Nos fins de semana, de volta a sua casa em Flint, os franceses continuam a frequentar a casa de Champion, como sempre fizeram. Mas o que se segue não é um final feliz, por causa de uma reviravolta bem típica dos costumes franceses de então.
Em uma semana dessas, enquanto Louis estava trabalhando em Detroit em seus amados e avançados Frontenacs, Suzanne Chevrolet recebe a inesperada visita de Albert Champion. O industrial tem uma oferta indecorosa para a bela esposa de Louis: queria que ela se tornasse sua amante, obviamente mantendo Louis sem saber de nada. Suzanne, apesar da situação difícil (Champion era efetivamente o patrão de seu marido), se livra das investidas do pretendente, e quando o marido chega em casa no sábado de manhã, conta tudo para ele.
Chevrolet fica furioso. Louis era um cara grandão, 1,85 m e 110 kg, e apesar de tranquilão, evitava-se deixá-lo nervoso. Parte imediatamente tal qual um urso em fúria para o escritório de seu conterrâneo na AC Spark Plug Company, onde sabia que ele estava. A secretaria tenta impedi-lo, sem sucesso, claro. Louis Chevrolet entra na sala do presidente da empresa e uma gritaria em francês se sucede. Logo degringola para violência, com Louis atacando Champion aos socos. Telefones voam, funcionários correm para chamar ajuda, cadeiras quebram, e o pau come. Como Chevrolet era claramente uma categoria de peso acima, a briga não foi nada bem para o lado de Albert Champion; Louis bate nele com força, quase até a morte. Ao sair, diz para seu antigo amigo nunca mais aparecer na sua frente, ou ele terminaria o que começara ali. Champion seguiria este conselho à risca até o fim de seus dias…
Um novo começo em Indianápolis
Louis Chevrolet resolve então deixar Flint e Detroit em busca de uma nova vida em algum lugar novo. Muda-se com a família e os inacabados Frontenacs para Indianápolis, que se firmava como a capital do automobilismo americano.
A situação financeira da família é precária, com Louis, Art e o jovem Gaston trabalhando em bicos como mecânicos, pilotos e engenheiros para financiar a sua marca de carros de corrida. Os três primeiros carros ficam prontos somente para a temporada de 1916. O motor era um quatro-em-linha com duplo comando de válvulas no cabeçote, inspirado no Peugeot de Grand Prix de 1912, pioneiro na configuração.
Os três irmãos conseguem se classificar para a Indy 500 de 1916, mas sem louvor. Apesar de velozes, os “Fronty” não conseguem vencer. Logo, Louis e Planche resolvem desenhar um novo motor, que traria sucesso em 1917: totalmente em alumínio, uma absoluta novidade então, o novo quatro em linha tinha apenas um comando, mas quatro válvulas por cilindro. O novo motor faz os Frontenac dominarem a temporada americana de 1917. Mas em 1918, o envolvimento americano na Primeira Guerra Mundial cessa provisoriamente as atividades de competição, colocando a Frontenac de molho.
Para 1920, porém, um certo William Small, dono da Monroe Motor Company, contrata os Chevrolet para construir quatro carros de corrida a serem chamados Monroe Specials. Sob este contrato os Chevrolet estariam livres, também, para construir cópias do novo carro, desde que usassem seu próprio dinheiro para tal, e a marca Frontenac.
Para esta nova e bem financiada fase, Louis traz Cornelius Van Ranst, um engenheiro já famoso por seu trabalho na Duesenberg, para ajuda-lo. “Van”, como era chamado, logo se torna o braço direito de Louis. Para os oito novos carros (quatro Monroes, e quatro Frontenacs), moderniza o antigo motor DOHC que fora projetado em Detroit, construindo-o todo em alumínio.
A Indianápolis 500 de 1920 é uma corrida épica para a família. Os oito carros se qualificam, e os três irmãos era favoritos para o dia de corrida. Mas o azar quase põe tudo a perder: braços de direção por um engano vão aos carros sem tratamento térmico, e todos quebram quase que exatamente em 500 milhas. O primeiro carro a quebrar é no início da corrida; justamente o que tinha rodado mais em treinos, quase 400 milhas. No fim de uma corrida dramática, onde Louis parecia que novamente ia se dar mal, seu irmão mais novo Gaston, justamente aquele que não teve tempo para treinos e entrou no carro novinho apenas na largada da corrida, vence a Indy 500. Conta a lenda que ao parar o carro nos boxes depois da chegada, o famigerado braço cai no asfalto com um sonoro “clang”, e após alguns segundos em silêncio, todos caem na gargalhada. Dos oito carros, apenas o de Gaston termina a prova.
Era a primeira vitória de um carro americano desde 1912. Os Chevrolet são alçados, novamente, à categoria de heróis nacionais, com o jovem Gaston em primeiro plano. Mas como tudo na triste história dos Chevrolet, a felicidade não duraria muito tempo.
O triste fim dos irmãos Chevrolet
Primeiro, logo após Indianápolis, Art Chevrolet capota seu Monroe em um acidente em competição, e o carro desliza por quase meio quilômetro, ferindo gravemente seu piloto. Art sobrevive, mas severamente machucado. Logo depois, em novembro do mesmo ano, outro acidente daria um golpe terrível na sofrida família: em uma pista de madeira em Beverly Hills, na Califórnia, Gaston Chevrolet, vencedor de Indianápolis, o irmão caçula que era a alegria da família, sofre um grave acidente ao volante de um Frontenac, e morre imediatamente. Tinha apenas 28 anos.
Devastado, Louis Chevrolet continua fazendo o que sabia fazer: carros de corrida. Mas, além disso, logo após a vitória em Indianápolis, inicia mais uma aventura para tentar produzir carros de rua em série: com ajuda da Stutz, trabalha para criar o Frontenac-Stutz, um carro com motor baseado no carro de corrida. Van Ranst é seu engenheiro novamente. Fruto principalmente da falta de tino de Louis para este tipo de coisa, porém, em 1923, depois de drenar todo dinheiro da empresa, a joint-venture vai à falência sem produzir nenhum carro. Por alguns anos, a Frontenac sobrevive fazendo cabeçotes DOHC de competição para Ford modelo T, projetados por Van Ranst. Vendem muito bem por anos a fio, mantendo a marca viva, e com grande sucesso em competições. Mas depois de 1927, com o fim do Ford modelo T, o volume cai drasticamente, e a Frontenac também acaba por fechar as portas.
Nos anos 1930 a situação financeira de Louis já não era nada boa. A Frontenac já não existia mais, e empregos estavam escassos com a Grande Depressão. Conta a lenda que em 1933, o já velho Louis Chevrolet arruma um emprego em Detroit numa fábrica da GM, como simples mecânico. O nome no letreiro da fábrica, pode se imaginar, dizia “Chevrolet”.
Aí seu filho mais velho morre. A casa de sua irmã, onde guardava todos seus desenhos, documentos, troféus e outras lembranças de sua vida, pega fogo, e queima inteirinha até não sobrar nada. Pouco tempo depois, como se tudo isso não fosse suficiente, Louis Chevrolet tem um derrame, que o deixaria com sequelas até o fim de sua vida.
Sua fiel esposa Suzanne se muda com ele para a Flórida, até que, em 1941, o casal volta para Detroit, onde Louis deveria receber tratamento de problemas circulatórios na perna. O destino continua amargo para nosso herói, e dita que o membro tem que ser amputado. Durante a operação, Louis Chevrolet vem a falecer. É enterrado ao lado de seu irmão Gaston, em Indianápolis.
Arthur Chevrolet tem um fim ainda mais triste. Como acontecera para seu irmão mais velho, os anos 30 não foram nada bons financeiramente para Art. Vai de um trabalho a outro, principalmente como mecânico de competição, até que em 1942 se muda para a Louisiana, onde passa a manter um modesto negócio de reforma de barcos a motor. Lá vive uma vida isolada, sem fazer amigos ou conversar muito. Seus vizinhos provavelmente nunca fizeram ideia de quem era o estranho e recluso sujeito. Na verdade, cultivava forte depressão. Em 1946, a nove dias de seu 62º aniversário, joga uma corda por cima de uma das travessas da estrutura de madeira da oficina, sobe em uma cadeira, amarra a corda no pescoço, e pula para a morte. É encontrado apenas uma semana depois.
Algo em que acreditar
O leitor agora, conhecendo a história, não pode deixar de sentir, como eu, um certo gosto amargo na boca cada vez que a empresa dona do nome de Louis continua, mais de 100 anos depois, a explorar a imagem do famoso piloto. Existe até uma série de propagandas da Chevrolet nos EUA hoje que tem como tema o que seria o lema de Louis : “Never give up” (nunca desista). Engraçado como tal lema só parece fazer sentido em retrospectiva. Louis na verdade nunca considerou isto um lema. Ele apenas dizia que tinha aprendido isso jovem, com Victor Hemery: em corridas, mesmo quando tudo parece perdido, não se pode desistir nunca. Era, portanto, um lema do grande Hemery, e Louis apenas seguia os ensinamentos de seu mestre.
A marca Chevrolet tem o direito de usar o nome de seu cofundador. E Chevrolet, por mais malsucedido nos negócios que fosse, é um personagem muito mais legal de vender do que o superexecutivo Billy Durant, o real pai da marca. Por mais que isto nos incomode, como deve ter incomodado sobremaneira os irmãos cujo sobrenome se tornou famoso sem lhes dar nada em troca.
Eu preferiria que esquecessem isso. Como já disse, a marca tem história riquíssima, e não precisa de Louis para embelezá-la. E será que é relevante? A VW não fica por aí lembrando lemas de seu fundador. E Toyota, Hyundai e Kia não parecem precisar de história nenhuma para se manterem relevantes. É nisso que precisamos acreditar: em seus produtos atuais. Se eles têm longa história de excelência, tanto melhor, mas este é o único significado que interessa aqui: fazer bons produtos, e sobreviver vendendo-os. Todo resto é irrelevante.
Mas talvez exista uma maneira de se apoderar da história épica dos irmãos Chevrolet, abraçá-la como sua sem medo de se cometer um pecado. Talvez a GM pudesse procurar os herdeiros de Louis e Art, pedir desculpas, e compensá-los de alguma forma. Um Corvette novo a cada dois anos para cada um deles, por exemplo, já seria lindo. Ou um Impala, ou uma Suburban, qualquer coisa assim. Dar algo de volta a esta sofrida família que nomeou uma das mais conhecidas marcas de carro do mundo, sem nunca ganhar nada em troca. Esta aí algo que realmente seria bonito de ver, algo real, verdadeiro, como homenagem a Louis. Estátuas como a que a marca inaugurou recentemente em La Chaux de Fonds? Soa como autopromoção. Eu acreditaria numa empresa que abraçasse seu passado, sua real história, com tudo de bom e ruim nela. E redimisse a injustiça que o destino pregou aos Chevrolet.
Principalmente se fosse feito sem alarde. Não para promoção, sem olhar retorno, apenas por ser a coisa certa a fazer. Nem que fosse para, finalmente, deixar o espírito atormentado de três pilotos famosos descansar em paz.
MAO