“You can’t always get what you want
But if you try sometimes you might find
You get what you need”
Certa vez o meu amigo Nilo me perguntou: como é que os caras liberam um carro assim para produção? Feio, sem graça, sem nenhum atrativo especial? Quem são essas pessoas? São cegos ou estúpidos?
Tive que fazer uma pausa para pensar antes de responder. Eu já trabalhei na indústria e participei ativamente de projetos provavelmente muito parecidos com o que provocou a pergunta. Sim, este fato talvez somente ajude a provar como verdade a suposição do Nilo. Mas não só de gente como eu se faz a indústria. Muita gente inteligentíssima trabalha nela, muitas mesmo, talvez até gente inteligente demais para seu próprio bem.
Não é para menos. Projetar automóveis é algo extremamente complexo. Imagine que toda tecnologia dos celulares tem hoje que ser repetida nos carros, uma área nova e gigante chamada “infotainment”. Indústria da moda? Brincadeira de criança. Investir em tecidos e desenhos de roupas que serão vendidos em um ano é arriscado? Imagine carros inteiros que gastam literalmente bilhões em investimento, e serão lançados em três anos. Em ambos os casos, se você previu erradamente o futuro da moda, do que é palatável para a população, se deu mal. Mas garanto que as consequências são muito piores para o executivo da indústria automobilística.
Carros são simplesmente os bens de consumo mais complexos da indústria de massa. Cada componente dele provavelmente necessita de mais tecnologia e know-how que qualquer computador ou televisão moderna. E é uma indústria massacrada por legislações draconianas, por uma opinião pública ingrata, e por uma concorrência ferrenha. Uma quantidade imensa de cérebros poderosos é necessária apenas para manter a roda girando. E infartos, cirroses e gastrites, fatos do cotidiano.
Adivinhar a reação do público ao estilo de um carro, quatro anos antes de seu lançamento, é simplesmente impossível. A não ser que o estilo em questão seja extremamente conservador e derivativo, mas a previsão aí é de que não vai ofender ninguém, mas também não apaixonar ninguém. Mas acreditem, erra-se mesmo quando se tenta algo conservador. Fácil falar “feio!” quando já é uma opinião popular e generalizada, num comentário na internet. Bem mais difícil é dizer o mesmo ao criador da obra, um especialista no assunto com uma vida dedicada ao ofício, num ambiente controlado, com um monte de gente em volta que só vai concordar com qualquer besteira que você diga, simplesmente porque você é o chefe.
Mesmo que você ache feio, como saber se você está certo? Falamos de um produto do futuro, e esta gente estuda isso a fundo. Quem é você para saber mais que eles? Mas uma vez que você diga sim, é como um trem partindo da estação: vai chegar a seu destino em quatro anos, gastando uma fortuna imensa na viagem, invariavelmente. Não dá para mudar de ideia no caminho e pedir para ele voltar. Se errou, já era. E erros, como sabemos, acontecem nas melhores famílias.
Mas não foi isso que respondi ao Nilo. Consegui, em minha pausa, uma explicação bem melhor e mais pragmática. Mais ou menos assim:
Imagine que você pudesse fazer um carro só para você. Vamos descontar o fato de que você é um entusiasta do automóvel e sabe exatamente o que quer, porque a maioria esmagadora da população simplesmente nem sabe o que quer. Vamos imaginar todos como você, que curte e entende carros.
Pois bem, seu carro você faria baixo, leve, com um motor de alta potência específica. Mais ou menos um Lotus Seven, talvez, mas com uma carroceria mais moderna. Talvez motor central-traseiro. Mas note que fazê-lo seria extremamente fácil. Tem que agradar apenas a você mesmo, uma pessoa apenas.
O carro, na verdade, nem precisaria de regulagem de posição do banco. Era só montá-lo na sua posição preferida, e boa. Podia ser moldado à suas costas, também, negando a necessidade de um reclinador de encosto. O entre-eixos, daí, podia ser bem curto, visto que você é um sujeito baixinho. Pensando bem, o carro todo podia ser em ¾ de escala, visto que você é quase um piloto de autorama (não podia perder a piada com a desvantagem vertical do amigo).
Agora imagine que eu fosse seu sócio no carro. De cara, com meu físico de jogador de basquete (ok, aposentado e barrigudo, vá lá), o entre-eixos ia aumentar, fruto do trilho de ajuste do banco bem grandão (estamos nós dois praticamente nos limites de biótipos). Maior e mais pesado, o carro ia precisar de outro motor. E eu ia preferir tração integral ao invés de tração traseira. E não gosto de conversível como você, precisamos de um teto rígido. Colocamos um teto solar grande lá para você sentir ventinho, mas a rigidez de teto rígido é indispensável. Ainda bem que gostamos de motor girador, porque se fosse fã de potência em baixa rotação íamos ter que colocar um V-8 lá… E nem vou entrar na seara que tenho família e você não, porque vamos acabar com uma perua e não um carro esporte!
Percebeu como agradar duas pessoas em um mesmo carro já é um problema? OK. Agora imagine agradar dez mil pessoas todo mês, por pelo menos seis anos. Pessoas de vários credos, cores, posições sociais, estado civil, peso, estatura, idade. Por isto, talvez, um carro que você acha ridiculamente ridículo, na realidade, apenas não foi feito para você. Foi feito para outras pessoas. Pelo menos quinhentas mil pessoas diferentes de você precisam comprar um. Você não precisa nem gostar nem muito menos comprar, camarada. Pode ficar tranquilo com sua perua Audi de 500 cv, que ninguém morre por isso.
Por isto é difícil para o entusiasta sem dinheiro conseguir algo que gosta realmente. Para os ricos, mesmo que não curtam McLarens e Rolls-Royces produzidos em série, sempre existe gente pronta para fazer algo customizado para você. Singer 911, Icon FJ, Aston Martin Works, e outros. O resto dos meros mortais, porém, fica preso ao fato de que coisas para serem baratas precisam ser fabricadas aos milhões, e de preferência em lugares que não queremos conhecer, como Indonésia, China e São Bernardo do Campo.
Resta-nos então modificar os nossos carros, em débeis tentativas de aproximá-los mais do que desejamos. Ou comprar uma máquina de solda e começar a fazer algo nós mesmos, com resultados na maioria das vezes tristes. Mas se não podemos ter exatamente o que queremos, temos que nos contentar com o que existe. Eu lido com isso de uma forma que sempre deu certo: escolhendo o carro e os opcionais com cuidado. Nunca teremos o carro perfeito, mas podemos nos esforçar para chegar o mais próximo disso.
Veja por exemplo o meu Cruze vermelho de primeira geração, que Deus o tenha em bom lugar. Toda vez que digo que tive um carro desses, muitos torcem o nariz. Óbvio, faria o mesmo se só conhecesse os sedãs automáticos com banco de couro e pintado em preto, prata ou branco. Se especificados assim, como a vasta maioria deles foi (fazendo inclusive o câmbio manual sumir da lista de opcionais da nova geração recém-lançada), a maioria das qualidades que adorava no meu sumiam completamente. Se nunca andasse no meu, não acreditaria que um carro pudesse mudar tanto com um par de opcionais.
Mas neste caso tudo muda de forma clara e definitiva. Os bancos de couro eram duros, escorregadios e desconfortáveis, enquanto os meus, de tecido (bem chinfrim por sinal), com o mesmo desenho, eram macios, mas firmes, aconchegantes, deliciosos. O câmbio manual de seis marchas era uma delícia para cambiar, a embreagem levíssima e positiva, e faziam o motor (liso, girador, vocal, se não lá muito forte) ficar divertido, com um grito a altas rotações gostoso, porque acontecia apenas quando queríamos. No auto, qualquer pressão no acelerador fazia cair uma marcha e a rotação ir à estratosfera, me incomodando. Eu não gosto de câmbio automático no geral, mas a calibração deste só piorava as coisas. Eu odeio o Cruze sedã auto e amo o hatch manual com bancos de tecido.
Não tem muito a ver com o tema desta conversa, mas aproveito para falar que não gostei do novo. Não que isso seja um problema para a marca da gravata, porque certamente ele vai vender muito melhor, e vai agradar mais gente que o anterior. Porque melhoraram o sedã automático, justamente a versão que eu preferia ver morta! Também não gostei do fato de que abandonaram totalmente o estilo do antigo para algo mais em linha com a concorrência, mas, de novo, vai fazer o carro no mínimo mais desejado que o anterior. E hoje de qualquer forma tal coisa é irrelevante: não posso mais comprar Cruze. O meu custou 58 mil reais em 2013, e o novo está perto de 100.
Antes que alguém reclame da minha birra com câmbio auto, devo dizer que ela tem ficado mais suave com o tempo, e com a melhoria de alguns câmbios deste tipo. Existem carros hoje que nunca compraria com câmbio manual: o Audi RS 7 é o mais claro exemplo. Um veículo tão veloz e tão seguro em qualquer situação como aquele pede que comande apenas acelerador, freio e direção: se fosse trocar marcha ia perder velocidade e fluidez, por melhor que fosse nisso. Ele troca marchas para baixo e para cima, sozinho, de uma forma tão perfeita que passei a acreditar em telepatia. Na verdade é um veículo que opera num patamar de velocidade tão maior que o normal que outras regras se aplicam. Uma nave espacial terrestre.
Existem carros também que, embora acredite que ficassem ainda melhor com câmbio manual, são plenamente aceitáveis com automático. Um exemplo fácil são os BMW série 3. Não deixaria de comprar um porque só é automático.
Mas na maioria das vezes ainda acho que câmbio automático estraga qualquer carro. Estraga mesmo, tipo fruta velha: costumava ser boa, mas agora ficou podre e só serve para o lixo. Como se não bastasse o exemplo do Cruze acima, recentemente fiz uma viagem em outro Chevrolet que me restaurou a fé nesta verdade que costumava ser absoluta.
O carro em questão é o Spin. Já o conhecia da época do lançamento, quando fiz uma viagem em um LTZ automático completo. Na época, todo LTZ era automático e tinha sete lugares; se você quisesse ter câmbio manual tinha que ser a versão mais simples LT, com apenas cinco lugares. Dizer que não gostei do carro então é pouco. Achei que o câmbio trocava de marchas feito um jovem hiperativo que cheirou meio quilo de cocaína com alto índice de pureza, e ainda assim o carro não se movia satisfatoriamente. Apesar do ajuste de suspensão sublime (firme, mas confortável, e uma delícia em curvas), o carro me pareceu apenas feio e lerdo, e me esforcei para esquecê-lo.
Mas recentemente, como disse, fiz uma viagem em outro exemplar mais recente, também LTZ de sete lugares, mas agora equipado com câmbio manual. Não era o recém-lançado MY17, com novo motor e seis marchas, mas sim um 2016 com apenas cinco marchas. Não esperava nada, apenas transporte, mas esta pequena mudança teve efeitos enormes.
O câmbio, para minha surpresa é bem esportivo, com relações empilhadinhas uma atrás da outra, e quinta real, não overdrive, a velocidade máxima atingida nela. E esta pequena mudança foi suficiente para transformar o carro de um lerdo e tranquilo movedor de pessoas para um improvável furgãozinho esporte. Incrível.
O motor sobe de giro suave e com vontade, e me animou a dirigir como há muito não fazia: feito um maníaco. Realmente me diverti horrores. O conjunto motor-transmissão mais esperto acaba por realçar as excelentes qualidades do chassi, que sempre foram surpreendentes: é possível dirigir o furgãozinho de passageiros feito um carro esporte. Comportamento perfeito em curvas, absorção de impactos invejável, nível de ruído interno baixo, direção precisa, freios positivos. Um verdadeiro carro esporte fantasiado de capivara gigante. Não é algo que chamaria de veloz, mas, por Deus, como é divertido para andar à moda! Incrível que um carro feioso, grandalhão e desajeitado em estilo, e obviamente criado para levar famílias em viagens tranquilas, pode ser tão divertido. E tão diferente da versão automática…
A única reclamação é que é limitado a 176 km/h, ainda longe da faixa vermelha do conta-giros em quinta. O carro é obviamente capaz de muito mais…
MAO