Caro leitor ou leitora,
O AE está com mais um editor, desta vez “pinçado” do nosso universo de leitores. Você já deve ter lido as várias matérias que ele escreveu como colaborador espontâneo, a primeira em 25/04/12 — “Torque ou potência, qual interessa mais?” — e reprisada em 3/o1/16, e a última em 25/06 deste ano, a história do Electra, símbolo da Ponte Aérea. Entre essas ele escreveu sobre motores aeronáuticos a pistão em 30/08/14, sobre o avião treinador nacional Paulistinha em 20/11/14, discorreu sobre motores a álcool em utilitários, caminhões e tratores em 3/08/15, e fez uma verdadeira ode ao avião Douglas DC-3 em 17/01/16.
Este novo editor se chama Daniel Araújo, 37 anos, formação acadêmica em administração de empresas, mas sobretudo um autêntico autoentusiasta. Além das matérias, o leitor deve conhecê-lo bem pelos comentários, pois ele é participante ativo do espaço.
Conhecia-o virtualmente desde meu tempo no Best Cars, mediante frequente troca de e-mails, intensificada desde que o AE existe, portanto, há bem mais de oito anos.
Coisa de um mês atrás eu e o PK conversando sobre o site, falei em convidarmos o Daniel para ser editor dada a excelência dos seus textos, com o quê o meu sócio e editor-geral, mais o terceiro sócio, o editor de testes AK, e o editor associado JJ, consultados, concordaram de pronto. Convite feito ao Daniel — por e-mail, ele reside no interior paulista — e o imediato e efusivo “Eu aceito!”.
Para selar a admissão do Daniel, aproveitamos uma vinda dele a São Paulo (ele é paulistano) e marcamos uma reunião, ele, PK e eu, quando finalmente, depois de mais de dez anos, eu e o Daniel nos conhecemos pessoalmente. Mais pró-forma do que qualquer outra coisa, já nos conhecíamos (muito) bem pelo mundo virtual.
Desnecessário dizer que foi um encontro agradabilíssimo.
Ele começa como editor com uma interessante matéria sobre veículos, nada de fulgurantes carros esporte, mas…. tratores de pneus, segmento que ele também conhece bem.
Seja bem-vindo ao grupo de editores e colunistas do AE, Daniel!
Bob Sharp
Editor-chefe
UM POUCO SOBRE TRATORES AGRÍCOLAS DE RODAS
Por Daniel Araújo
Devido à lida rural, atividade profissional que exerci por nove anos ininterruptos, acabei me tornando um apaixonado por tratores agrícolas. Nessa atividade, meu contato diário com essas máquinas, diretamente relacionadas com a chamada “Revolução Verde”, aprendi a admirar e a respeitar essas fascinantes máquinas que passaram por um incrível desenvolvimento nestes últimos 30 anos.
Mas afinal, o que é um trator? Longe de querer montar uma dissertação de Doutorado no assunto (até porque não sou técnico nisso), podemos definir o trator como uma máquina de tração apta a ser acoplada aos mais diversos tipos de implementos, desde uma simples carretinha até uma colheitadeira de grãos (os famosos “foguetinhos”, colheitadeiras de milho de uma linha) e frutos (café). É um conjunto composto de um motor, câmbio/diferencial e rodados, que pode ser pneus ou esteiras, todos acoplados formando um conjunto. Especificamente neste texto, o enfoque será nos tratores de pneus e de quatro rodas.
Nos tratores de pneus, a estrutura pode ser monobloco, chassi, semichassi, além dos articulados, máquinas mais raras. As máquinas monobloco são os modelos mais comuns e se constituem em motor, câmbio e diferencial formando um conjunto estrutural onde até o bloco do motor (em alguns casos, o cárter) é parte integrante. Todos os tratores abaixo de 100 cv no motor possuem esse tipo de construção.
Os modelos de chassis por sua vez possuem os componentes montados em chassis tipo longarina. É um arranjo mais comum em tratores de alta potência que necessitam de um conjunto mais reforçado. Os semichassis são conjuntos híbridos de diferencial e câmbio estruturais acoplados a uma estrutura de chassis dianteira que suporta o eixo dianteiro e o motor. É usado em modelos equipados com motores não estruturais. O caso mais emblemático são os tratores CBT, em sua maioria equipados com motores Mercedes-Benz de 4 e 6 cilindros (OM314 do caminhão leve 608 D e OM352 do L-1113) que são apoiados em travessas compondo o conjunto dianteiro.
As imagens acima são de um CBT 2015 sucateado e mostram bem o esquema de subchassi: pelo fato de o motor Mercedes OM352 não ser estrutural, o monobloco se “estende” formando um berço onde vai montado o motor (www.mfrural.com.br)
E quando se fala em motores, até um passado não tão distante os tratores agrícolas (e mesmo alguns industriais) empregavam motores diesel “multiuso”, que podiam ser empregados tanto em aplicações agrícolas, veiculares, estacionárias e até marítimas! Embora um motor de ampla gama de aplicações apresente como vantagem a economia de combustível e a abundância de peças de reposição a baixos preços, por outro lado tais engenhos podem não apresentar uma curva de potência e torque adequada para operações agrícolas.
Exemplificando com números, o Ford New Holland e seu motor de aplicação agrícola FNH-Genesis de 7,5 L da abertura dessa matéria produz 122 cv a 2.100 rpm e a 1.200 rpm, rotação de torque máximo, o motor já entrega 82 cv. O Valmet 1280, com seu MWM D-229/6, 6 cilindros e 5,88 L, produz 126 cv a 2.400 rpm e 41 m·kgf de torque a 1.400 rpm. Nesta mesma rotação, são 80 cv de potência, ou 2 cv a menos que o Ford/New Holland! Contudo, o MWM D-, por ser um motor empregado em caminhões, motogeradores e até barcos com diferenças mínimas (na maioria dos casos, apenas regulagem na bomba injetora), é um motor que é fácil e barato de arrumar peças de reposição para uma retifica, e dada a menor cilindrada, mesmo trabalhando em rotação mais alta, são geralmente mais econômicos que seu congênere feito especificamente para uso agrícola. Por outro lado, um motor desenvolvido para aplicações agrícolas apresenta como vantagem o desempenho superior devido à sua curva de potência, que embora possa ser, no pico, semelhante à de um motor não agrícola, ao longo da faixa de rotações ela é maior e melhor distribuída.
O aproveitamento da potência do motor faz da transmissão dessas máquinas um componente importantíssimo: um bom escalonamento de marchas faz a diferença entre um bom trator e outro mais limitado. No passado era comum o emprego de seis combinações de velocidade (3 marchas reduzidas e 3 marchas normais — para uso de 0 a 30 km/h) utilizando caixas de marcha do tipo engrenagem deslizante, robusta mas de pesado e difícil engrenamento para operadores inexperientes. Neste sistema, o engrenamento da marcha se dá por meio do movimento da própria engrenagem como um todo, diferentemente do sistema de engrenamento permanente, onde as engrenagens giram livremente sobre a árvore e quem faz o seu acoplamento são as luvas de engate, solidárias à árvore e quando encaixadas na engrenagem da marcha, torna-a solidária também à árvore.
Geralmente a disposição dos câmbios consiste em uma caixa de marchas com uma saída multiplicada ou não (a famosa “reduzida”), que em composição com o diferencial e o tamanho dos pneus formará a velocidade de trabalho do trator
Hoje as caixas têm pelo menos 12 combinações de marchas à disposição do operador em caixas de engrenamento permanente, muitas delas sincronizadas e com a alavanca empregando trambulador e acionamento lateral e não mais localizada entre as pernas do operador! Um maior número de marchas em um trator permite o trabalho da máquina dentro de uma velocidade “ideal” para a função, de acordo com o implemento acoplado/tracionado.
Há situações como tracionando colheitadeira de café em que a velocidade ideal de trabalho pode ser inferior a 800 m/h (metros por hora!). Por outro lado, há atividades que não requerem velocidades tão baixas (embora velocidades excessivas não sejam benéficas). Para pulverização de plantações, fertilização com carretas, gradeação de solo, o uso de velocidades baixas não contribui para um serviço bem feito. Por outro lado, altas velocidades tornam o serviço ineficiente. Por isso, a necessidade de se buscar o melhor compromisso entre uma operação bem feita e agilidade é de suma importância para economia de combustível e o bom aproveitamento da operação realizada. Em pulverizações de lavouras de café, por exemplo, a velocidade que eu costumava usar era de 5 a 6 km/h em média, o que no exemplo acima, seria o uso da 5ª marcha.
E exatamente por conta dessa característica de andar tão lentamente, os tratores não apresentam hodômetro e sim horímetro. Como nos aviões, consumo de combustível, as manutenções preventivas e a durabilidade de um motor agrícola se medem em função do número de horas de funcionamento. Outros instrumentos importantíssimos do painel de um trator são as luzes-espia (as mais importantes são a da pressão do óleo e do alternador) e o termômetro do sistema de arrefecimento, um instrumento importantíssimo, pois é através dele que o operador detectará se um radiador está tampado com folhas ou detritos, por exemplo. O indicador do nível de combustível também consta no painel de muitos tratores, embora normalmente funcione somente quando a máquina é nova.
Os agregados dos tratores agrícolas são diversos e normatizados por normas da International Organization for Standardization (ISO). A tomada de força, por exemplo, tem número de estrias para acoplamento de eixos e rotação de trabalho, ambos determinados pela norma ISO 500 e os braços hidráulicos, normatizados pela norma ISO 730. Outro item comum, talvez o mais usado em um trator, consiste na barra de tração (chamado por muitos de “rabicho”), usado para o acoplamento de implementos e carretas.
No passado, o trabalho com a terra ou era feito com pessoas e enxadas ou, quando a área era maior, com o uso de implementos de tração animal. E apesar da indústria automobilística, houve um hiato de tempo para o desenvolvimento da indústria de máquinas agrícolas. No Brasil de antigamente, trator em fazenda era artigo de alto luxo, coisa restrita mesmo. Poucos fazendeiros possuíam (e tinham condições) de ter um trator em sua propriedade: os implementos agrícolas eram poucos, a manutenção, complicada. Nos anos 50 começaram a chegar às primeiras máquinas agrícolas, todas importadas e em sua maioria, movidas a gasolina. Em muitos casos, chegavam encaixotados e o comprador tinha que arrumar alguém para montar.
As atividades executadas eram, em sua maioria, o uso de enxadas rotativas para cultivo, nivelamento e destorramento de solo e eliminação de plantas daninhas. Foi nessa época que o próprio Ministério da Agricultura começou a incentivar a mecanização agrícola com o desenvolvimento do famoso “Coffee Train” Allgaier Porsche P-312, uma curiosa máquina projetada para os cafezais, cujo assunto já passou por aqui em no AE.
Mas foi apenas no final dos anos 1950 que o Geia (Grupo Executivo da Indústria Automobilística) passou a se preocupar com a indústria de máquinas agrícolas, especificamente com os tratores. E apenas neste momento é que começam a surgir os primeiros tratores brasileiros, saga esta iniciada em dezembro de 1960 com o lançamento do famoso trator Ford 8BR, equipado com motor Perkins 4.203 de 4 cilindros e 3,3 L, seguido pelo Massey Ferguson 50X, Valmet 360, o Fendt, Zetor, Deutz (e seus lendários motores diesel em linha arrefecidos a ar), além do Oliver 950, produzido pelas Indústrias Pereira Lopes, de São Carlos, e se transformou na CBT – Companhia Brasileira de Tratores.
Nos anos 70 começou a difusão de tratores e máquinas agrícolas pelos campos brasileiros. Os tratores começaram a ganhar potência, saindo da faixa dos 50 cv médios de todos os modelos fabricados até os 120 cv do CBT 2400 equipado com motor Detroit Diesel 4.53 produzidos até 1979, ano em que a Detroit Diesel encerrou (pela primeira vez) suas operações no país.
Os anos de 1980 e 1990 já presenciaram a consolidação da mecanização agrícola e do crescimento da potência dos tratores, uma imposição dos novos implementos agrícolas de maior porte e/ou maior capacidade. O uso de tração integral (surgida inicialmente no Valmet 118 de 1981), motor turboalimentado (1982, com o Valmet 138), os modelos plataformados (existe uma separação entre o local onde vai o operador e a estrutura do trator, geralmente fixada sobre coxins), além do uso de cabines fechadas e com ar–condicionado, trouxeram uma nova realidade para essas máquinas, outrora desconfortáveis e brutas e que hoje oferecem conforto próximo (se não maior, em alguns casos) de um automóvel para o operador.
Os anos de 1980 ainda viram alguns ensaios (desastrosos, por sinal) do uso de motores a álcool em aplicações agrícolas e em veículos comerciais médios e pesados. Atualmente, os lançamentos da indústria focam no incremento de potência de seus produtos e o downsizing dos motores: o já citado Valmet 138 de 1982 empregava um MWM TD-229/6 turbodiesel de 5,88 L turboalimentado, 138 cv a 2.300 rpm, enquanto hoje seu congênere BH135i utiliza um Sisu turbodiesel com pós-resfriador, 4,4 L e 137 cv à mesma rotação, uma curva de potência mais adequada para os trabalhos agrícolas e empregando sistema de injeção direta mecânica por bomba injetora rotativa.
Essas melhorias vêm sendo incrementadas dia após dia e a indústria não para em sua constante busca por inovações. As novas fronteiras agrícolas, os maciços investimentos de produtores rurais por tecnologia e a crescente abertura de novas frentes agrícolas fazem do Brasil um mercado atraente tanto para as empresas já consolidadas quanto para novos entrantes (como Budny, LS Tratores e a própria Agrale, outrora focada apenas em modelos leves). E apesar da crise, anualmente existem novidades no setor!
Como o leitor pode ver, tratores são máquinas complexas que, como os automóveis, estão em constante evolução e compõem um mundo de engenharia e tecnologia que fascina quando conhecemos e convivemos de perto.
DA