As pessoas de mente saudável procuram sempre evitar conflitos. Sejam simples divergências de opinião, discussões, ou mesmo pescotapas, não importa: qualquer tipo de conflito, vamos concordar, é inerentemente desagradável. Particularmente uso de muita energia para fugir deles; tenho baixa tolerância para qualquer tipo de pendenga. Gosto de achar o muitas vezes elusivo meio termo, e seguir com a vida, mais tranquilo e feliz, nem que às vezes tenha que ceder aqui e acolá.
Apesar disso, porém, tenho uma certeza: não há progresso sem conflito. Onde apenas existe consenso nada muda ou anda para frente; nenhum grande progresso (seja ele financeiro, tecnológico, social, ou de qualquer outro tipo imaginável) ocorre. O conflito é a fagulha da mudança, o motor da revolução. Sem ele, a acomodação e o marasmo imperam.
Tal coisa não muda nada na minha vontade de evitar conflitos, porém: o máximo exemplo de conflito são as guerras, e a maior delas, a Segunda Guerra Mundial (setembro de 1939 a agosto de 1945). Na segunda guerra avanços tecnológicos e sociais incríveis ocorreram, fazendo um salto de qualidade de vida e de comportamento que nunca mais se viu desde então, de forma tão rápida. Mas ninguém precisa ser convencido que um conflito armado que matou mais de 60 milhões de pessoas, e que fez quem escapou vivo dele perder tudo e recomeçar praticamente do zero, é uma tragédia que deveria ter sido evitada. É um exemplo extremo, sim, mas por isto mesmo emblemático.
O conflito é útil, portanto, mas nem por isso desejável. É evitando-o ao máximo que se alcança a sua real utilidade: quando o assunto é suficientemente importante, deve-se lutar por ele. As vezes, como provam os soldados, até morrer por ele. Devemos brigar por coisas importantes, com significado, pelo que vale a pena lutar. Desta forma, por mais desagradável que seja a briga, sabemos que ela vale a pena e deve ser levada a cabo.
Ed Cole, o único engenheiro inovador a controlar a GM em toda sua história, sabia bem disso. Entendia que o consenso discutido à minúcia em reuniões intermináveis, com conteúdo mastigado e trabalhado à exaustão para não causar desconforto a ninguém, só leva à mediocridade. Mas era bem versado nos meandros operacionais da bizantina e gigantesca corporação, e, portanto, sabia que ele mesmo não podia estar diretamente envolvido nos conflitos que achava necessários para mover a empresa adiante. Não se quisesse manter sua posição de prestígio e poder.
Precisava de alguém para fazer isto por ele. Alguém sem medo de conflito, mas que soubesse sobreviver a eles. Alguém independente, que perseguisse as inovações sem direção de ninguém, e sem mandato; Cole sabia que às vezes seria melhor não saber o que esta pessoa faria. Alguém safo, esperto, mas que fosse um líder que despertasse admiração nas tropas também, pois ninguém gosta de valentões que apenas usam de patente para causar conflitos desnecessários. Alguém cujo objetivo fosse a inovação tecnológica que queria introduzir, e não apenas a eterna escalada das escadas do poder, tão perseguida pelos ambiciosos. Precisava de alguém que perseguisse sua vocação e não o vil metal.
Cole precisava de Zora Arkus-Duntov.
Um estranho em Michigan
“Zora gerenciava por amor. Ele não entendia nada de Harvard ou MIT ou os programas de Sloan; ele apenas gerenciava com emoção. Ele nos envolvia em sua emoção, e depois que a gente se envolvia emocionalmente com os projetos dele, nossa dedicação era infinita… ele gerenciava por amor. Como gerente, se você conseguir isso, nunca mais precisa olhar para trás; esses caras vão te seguir até os quintos dos infernos se preciso for.” – Roy Sojberg, um jovem voluntário na construção do CERV I, que muito tempo depois se tornaria o engenheiro-chefe do primeiro Dodge Viper.
Zora Arkus-Duntov era uma pessoa muito diferente dos outros engenheiros e executivos da General Motors de 1954, ano de sua contratação. Um judeu russo nascido na Bélgica (seus pais estudavam em Bruxelas quando o tiveram, e voltaram a São Petersburgo quando ele tinha apenas um ano de idade), naquele ponto tinha visto sociedades inteiras desmoronarem praticamente de um dia para o outro. E não uma vez, mas duas vezes. A primeira foi a revolução comunista russa de 1917, que acabou fazendo sua família se mudar para a Alemanha nos anos 20, onde se formou engenheiro. Depois, o nacional-socialismo, a perseguição aos judeus, e uma fuga épica para os Estados Unidos. Para fechar tudo isso, mais uma guerra mundial.
Quando a guerra acaba em 1945, Zora era um empresário de sucesso em Nova York. Tinha 36 anos de idade, e sua empresa, a Ardun, ganhara muito dinheiro em contratos militares durante a guerra. Era então casado com Elfi, uma bailarina alemã que conhecera em Berlim e fugira com ele para os EUA. Sua formação e sua confortável situação depois de tantas adversidades (quando criança, tinha frequentemente que defender as batatas que trazia para casa com um revólver Smith & Wesson) faziam dele uma pessoa orgulhosa e disposta a viver a vida bem. Acostumado a cidades cosmopolitas como Berlim e Nova York, o casal era a sofisticação em pessoa. Zora e Elfi eram fisicamente esbeltos, bonitos, sempre bem vestidos e, principalmente, elegantes. O modo como se portavam, como se vestiam, como seguravam o cigarro, como conversavam e andavam, era de uma elegância e porte hoje lendários.
Zora sempre soube de sua vocação: automóveis esportivos e de competição. Era um piloto de habilidade considerável, e se a guerra não tivesse atrapalhado, provavelmente teria seguido esta carreira. Nos EUA, depois da guerra, ao fim dos seus contratos militares, resolve voltar ao que gosta: cria um cabeçote especial de alumínio, com válvulas opostas, câmara de combustão hemisférica e vela central, para o onipresente e popular Ford V-8, um motor “cabeçote-plano”, sem válvulas, pois elas ficavam no bloco. Os seus cabeçotes Ardun Hemi — Ardun, junção de Arkus e Duntov — se tornariam lendários entre os hot rodders americanos, mas não conseguiriam salvar a sua empresa, que logo fecha as portas.
Em 1953, então, visita então uma exposição Motorama da GM em Nova York, onde era mostrado um pequeno carro esporte com carroceria de compósito de fibra de vidro chamado Corvette. Nosso herói, empolgado com as possibilidades do maior fabricante de carros do mundo fazendo carros esporte, escreve uma carta para a Chevrolet oferecendo seus serviços. Ed Cole conhecia sua fama e suas habilidades como engenheiro, empresário e piloto; e sabemos que procurava uma pessoa exatamente como ele para ser seu “laranja”, sua bucha de canhão, dentro da corporação.
Detroit, a cidade-sede da indústria automobilística americana, era muito diferente de Nova York. Era provinciana e até bucólica em 1953. Os executivos da indústria eram pessoas reservadas e usavam terninhos azul-escuro bem chinfrim que pareciam sair todos do mesmo lugar. Cabelos cortados igual, óculos iguais. O comportamento esperado deles era também padronizado; viviam uma vida toda trabalhando para a mesma empresa, e pouco conheciam do mundo fora do estado de Michigan. Viagens de férias se restringiam a acampamentos, caçadas e pescarias nas matas da região. Estrangeiros eram raríssimos, e pouca gente queria ou via necessidade de conhecer outras partes do mundo. No máximo, conheciam Nova York se tivessem trabalhado nas sedes financeiras das Três Grandes, todas elas sediadas perto de Wall Street. Gente provinciana e simples, que pouco conhecia fora de sua cultura insular.
Como podem imaginar, Zora se tornou um peixe fora d’água, uma ovelha negra, o cara diferentão, desde o minuto que chegou. Décadas depois, David E. Davis Jr, o famoso editor da revista Car and Driver, descreveu a chegada dos Arkus-Duntov a um encontro social de executivos da GM, de uma forma que nos faz entender fácil como ele era diferente:
“Vários executivos da GM estavam lá com as esposas, e estava tudo bem formal, todo mundo de terno escuro, tudo bem cinza. De repente um barulho forte de motor, e Zora e Elfi chegam em um Corvette com algum motor secreto e barulhento, ambos parecendo que acreditavam que a festa era em Palm Beach. Eles entraram na casa como um incêndio em relva seca — Zora com calças de seda e blazer sem gravata, e Elfi parecendo um bouquet contendo todas as tentações da carne. Em cinco minutos, todo mundo queria ir pra casa e trocar de roupa.”
Dentro da GM a coisa não foi diferente. Nosso amigo foi colocado inicialmente debaixo de Maurice Olley, um inglês que passara a juventude como assessor direto do lendário Sir Frederick Henry Royce em sua residência no sul da França, e era considerado então a maior autoridade do mundo em teoria de suspensões e comportamento dinâmico automobilístico. Zora aprendeu muito com Olley, mas nunca foi um bom subordinado. Quase que imediatamente começou a se meter em tudo que tivesse cheiro de alto desempenho, o que o levou, é claro, ao Corvette.
O Corvette era então um carro sem futuro. Baseado nas dimensões básicas do popular Jaguar XK 120/140, e usando como ele um seis em linha (o Chevrolet “Stovebolt” no caso), era um carro universalmente rejeitado. Era simples demais para ser um carro de luxo de dois lugares como seria o Ford Thunderbird, e pouco esportivo para concorrer com os carros esporte europeus que faziam sucesso entre os entusiastas, com seu seis em linha anêmico e câmbio automático de duas marchas.
Em pouco tempo, mesmo sem teoricamente ter nada a ver com o carro, Zora mudaria tudo isso. Em 1955 o fantástico V-8 Chevrolet bloco-pequeno é lançado, e ele não perde tempo em colocá-lo no Corvette. Não para aí: desenvolve um programa de competição, e nele desenvolve uma série de equipamentos que iriam se tornar opcionais nos Corvettes. Inova fazendo também estes equipamentos serem vendidos em concessionários da marca para o público, para que pudessem melhorar o desempenho não somente dos Corvettes, mas também dos outros carros da marca. Os comandos de válvula “Duntov”, por exemplo, se tornam sucesso de vendas e ajudam a fazer uma imagem de desempenho na marca que antes era inexistente. Os pilotos amadores de arrancada (esporte popularíssimo por lá), impulsionados por esta disponibilidade de peças, tornam o V-8 Chevrolet sua mais popular escolha, criando uma aura de alto desempenho para a marca que perdura até hoje.
E fez tudo isso sem mandato oficial. Juntou um time de apaixonados por carro como ele, e apenas saiu fazendo o que achava que devia fazer. Por baixo dos panos, conversando e influenciando, brigando às vezes, moveu para frente a causa do alto desempenho e da engenharia avançada dentro da companhia. Todo mundo adorava e confiava naquele russo maluco, com seu forte sotaque e seus modos suaves. Seus objetivos eram claros e inequívocos, e então fora da briga política, não representava ameaça a ninguém na batalha pelo poder. Cole nunca poderia fazer isto ele mesmo…
Logo o Corvette é um carro esporte respeitado por todos. Com deliciosos e bravos V-8, câmbios manuais de quatro marchas com acionamento preciso e relações próximas, e suspensões e freios melhorados, se tornam carros maravilhosamente desejáveis a qualquer um que adore carros. E Zora, mesmo sem um cargo formal, se torna conhecido dentro e fora da GM como o cara responsável por tudo isso, o Sr. Corvette em pessoa. Ed Cole deve ter se sentido extremamente satisfeito com o sucesso de seu elaborado estratagema.
O império do design criativo
Enquanto tudo isso acontecia nos prédios de engenharia do recém-inaugurado (1956) Tech Center em Warren, no novo prédio de Design reinava absoluto Harley Earl, o vice-presidente de Design. Earl é o maior pioneiro do Design da indústria: é dele a ideia de começar com desenhos à mão livre, que depois vão sendo aprimorados até que um modelo em escala de argila é criado, seguido de um modelo de escala real, e cópia em compósito de fibra de vidro. Pioneiro em todas estas técnicas hoje indivisíveis da indústria, foi o primeiro executivo do alto escalão de qualquer empresa oriundo de um departamento de Design.
Earl criou o Design como profissão metódica, criou processos e regras, algo que quem conhece a GM sabe que é o que ela adora fazer. Criou também o “carro de sonho”, o que hoje chamamos de “carro-conceito”, com o Buick Y-job de 1938, e tornou a GM a mais prolífica empresa neste campo.
Tinha um poder imenso dentro da corporação. Criando um sucesso atrás do outro por décadas a fio, ajudara sobremaneira a GM a atingir a liderança absoluta de mercado nos anos 50. A GM de então era uma máquina de desenhar carros. Para quem acha que hoje se projeta rápido automóveis, saiba que então um automóvel americano tinha vida de três anos, mas TODO ANO recebia mudanças significativas de Design, coisa que chamamos hoje de facelift. E a máquina de Earl, com milhares de trabalhadores fazendo dezenas de linhas de carro ao mesmo tempo não apenas cuspia carros novos todo ano; cuspia carros de sucesso todo ano. O Design de Earl não errava nunca. Ou pelo menos, assim se acreditava então.
Mas todo este sucesso empalidece frente ao sucesso de seu sucessor: Bill Mitchell. Ruivo, grandão e bon vivant, Mitchell era um ilustrador de propaganda contratado por Earl em 1935, e se tornaria seu sucessor em 1958. Foi responsável, feita a conta ao fim de sua carreira, por assinar o desenho de carros que, somados, passam bastante dos 70 milhões produzidos. E entre eles estavam clássicos imortais como o Cadillac 1949, o Chevrolet 1955, o Oldsmobile Toronado de 1966, e o Buick Riviera de 1964, este talvez a sua mais perfeita criação estética. Mitchell conseguiu durante o seu reinado, que durou até 1977, algo que parecia impossível: ainda mais poder e liberdade criativa que Harley Earl.
No final dos anos 50, depois dos esforços de Zora para que se tornasse um carro esporte respeitado, o futuro do Corvette, em xeque quando o russo chegara a Warren, estava assegurado. O primeiro Corvette de 1953 fora a menina dos olhos de Earl, mas estava então se aproximando rápido de uma década de existência. Apesar das alterações anuais de estilo e engenharia, chegava a hora de se fazer um novo carro, uma segunda geração. Mitchell queria aproveitar esta oportunidade para fazer um Corvette que fosse seu e não de seu antigo chefe; uma oportunidade única de fazer história. Carros comuns podem ficar bonitos se bem feitos, mas é com carros esporte de primeira linha é que realmente se fica famoso, obviamente sabia.
Tinha ideias bem específicas sobre como seria este Corvette. E acostumado com seu reinado absoluto, não imaginava que alguém pudesse contrariá-lo. Muito menos um reles engenheiro sem patente ou mandato. E muito menos um que nem inglês direito falava!
O Corvette de motor central
Em 1954, a Porsche convida Zora para pilotar um de seus 550 Spyder em Le Mans. O russo acaba indo com a autorização de seu chefe Cole, e com as despesas pagas pela Chevrolet, com uma agenda profissional de visitas a empresa de Stuttgart depois da corrida, como já contei nos primórdios deste site. Zora acaba ganhado a corrida (em sua classe, 751 a 1.100 cm³), algo que é apenas um fato quase secundário em sua vida, mas que para uma pessoa normal seria o ápice…
Zora, que já tinha visto em sua juventude os Auto Union de Grand Prix criados por Ferdinand Porsche dominarem a temporada de 1936, volta para Michigan com a convicção de que o motor central-traseiro desses carros, e de seu pequeno Porsche de competição, era o futuro em carros de alto desempenho. E que ia fazer um tudo para conseguir que o próximo Corvette fosse o primeiro esportivo de alto desempenho produzido em série com motor central-traseiro.
Entendam aqui: falamos de uma época antes de 1960. O primeiro supercarro de motor central-traseiro de real sucesso, o Lamborghini Miura, estava a praticamente 10 anos no futuro. O que ele queria aqui era levar a GM ao estado da arte, portanto, ao topo da tecnologia do carro esporte, e antes de todo mundo. Obviamente, seu aliado silencioso era seu chefe; afinal, com Cole a GM podia tudo, e em breve lançaria carros de motor traseiro de seis cilindros (Chevrolet Corvair, 1959), e enormes V-8 de 7 litros e tração dianteira (Oldsmobile Toronado, 1966).
Tendo experimentado em primeira mão o motor central-traseiro em competição, via o que hoje é óbvio: o motor central-traseiro colocava todas as massas dentro do entre-eixos; permitia uma distribuição de peso perfeita, um pouco maior nas rodas traseiras de tração; permitia um motor bem baixo, e um centro de gravidade idem. E por fim, mas não menos importante, colocava o piloto na frente do carro, uma frente baixa, e visibilidade total adiante. Não era o futuro dos carros de passeio com mais de dois ocupantes, mas para um Corvette, era perfeito.
Enquanto isso, ao mesmo tempo em que Zora corria em Le Mans, a engenharia e o Design trabalhavam, a mando de Ed Cole, em uma nova linha de Chevrolet, chamados de “Q-car”. Era uma linha um pouco menor que o Chevrolet tradicional, mas um pouco maior que o futuro Corvair. Teria uma configuração inovadora, com motor dianteiro, mas de transeixo traseiro, e suspensão independente atrás. O projeto acaba por ser cancelado, mas não antes de um Q-Corvette ser desenhado também. O desenho básico do Q-Corvette, desenhado por um jovem de 18 anos chamado Pete Brock, seria a base na qual Mitchel desenvolveria o novo Corvette.
Zora também aproveitou-se dos restos do Q-Corvette para mover adiante seus ambiciosos planos tecnológicos: pegou um transeixo protótipo do Q, acoplou a ele diretamente um de seus V-8 de bloco pequeno bravos, todo em alumínio, e criou um monoposto com motor central-traseiro para testar suas ideias. Com uma carroceria desenhada e produzida por seus amigos no design, para ficar bonito na foto, seria anunciado como um protótipo experimental, o CERV -1 (Corvette Experimental Research Vehicle – 1, ou veículo experimental de pesquisas para o Corvette).
Zora movia-se com desenvoltura e agilidade na corporação: não importava que carros nasciam então no Design e não na engenharia. Ele iria bater tão forte na tecla do motor central-traseiro que ele se tornaria inevitável. Com o CERV-1, até fora da empresa o recado de Zora era claro. Mas este curso de ação bateria de frente com outro muito diferente, e como sabemos, bem mais poderoso que ele.
A batalha pelo futuro do Corvette
Mitchell não queria ouvir nada disso. Era fã das proporções clássicas de carro esporte, com um longo capô e ocupantes quase no eixo traseiro, coisas impossíveis no desenho pretendido por Zora. Na verdade, Mitchell errou aqui; Giugiaro e Gandini teriam sucesso na década seguinte fazendo o Miura bonito por ter proporções de carro com motor dianteiro. Mas divago; o fato é que Mitchell pegou o desenho do Q-Corvette e mandou seu mais talentoso designer, Larry Shinoda, desenvolvê-lo. Ao mesmo tempo, usava o tempo gasto em reuniões de presidência para ressaltar a irresponsabilidade fiscal de desenvolver transeixos e suspensões novas quando os usados em carros normais serviriam perfeitamente.
Mitchell sabia que dentro dos portões da GM poderia facilmente manobrar seu plano sem que Zora (ou mesmo Cole) pudessem fazer nada. Mas não contava com a voz forte do russo do lado de fora da empresa: a imprensa adorava o sujeito, e publicava entrevistas dele e fotos do CERV-1, fazendo o futuro de motor central quase palpável. Por esta manobra, Mitchell não esperava, e foi tão bem feita que, se aparecesse algo com motor na frente, a decepção do público seria incontornável.
Mas o carro que Mitchell imaginava seria sua obra-prima. Além das clássicas proporções e a seu tradicional “entretenimento na superfície” (pregava que toda superfície do carro devia ter algo divertido, que chamasse atenção), Mitchell também drenava suas influências europeias, e imaginava mesclar os Alfa Romeo BAT de Scaglione com uma espinha dorsal como a do Atlantic de Jean Bugatti. Se houvesse uma maneira de levar este desenho ao público para que ele partilhasse de seu entusiasmo, talvez pudesse distraí-lo de Zora e seu papo técnico.
A ideia era simples: um Corvette de competição. A GM tinha decretado o fim de seu envolvimento em competições em 1957, por decreto corporativo. O Corvette SS, um carro de competições dedicado, criado por Zora pouco antes, de motor dianteiro, tinha sido então guardado. Mitchel teve uma ideia brilhante: requisitaria o carro de corrida e, financiando a obra ele mesmo, criaria uma nova carroceria baseada nas suas ideias para o novo Corvette, e competiria ele mesmo nas provas do campeonato amador do SCCA (Sports Car Club of America). Sob o manto de atividade particular, tudo estaria dentro da lei.
É claro que só alguém como Mitchell podia ter feito isso; a história de amador tem mais furos que o Titanic depois do iceberg. Mas o fato é que ele conseguiu. Zora ficou em pânico por alguém competir com Corvette sem seu controle, e tentou por todos os meios impedir o acesso do design a “seu” Corvette SS. Mas era uma batalha perdida; Mitchell simplesmente podia muito mais que ele.
Shinoda e Brock fizeram a nova carroceria e montaram o novo carro. Inspirado por tubarões e Marlins que Mitchell adorava pescar, acabou com o nome de outro peixe, não se sabe por quê: Stingray, arraia em inglês.
O carro, lindíssimo, apareceu em 1959: efetivamente era a parte de baixo do futuro Corvette 1963. Mitchell usou-o em competições e foi muito bem, um testemunho da excelência do carro de Zora. Mas seu objetivo principal era apenas chamar atenção, e conseguiu: o Stingray era belíssimo, diferente, uma aparição incrível de um futuro imaginado nos estúdios de design da GM. Logo, todo mundo só falava dele, e as ideias avançadas de Zora iam para a gaveta por mais uma geração.
Na verdade, a reação positiva ao Stingray, dentro e fora da GM, foi tão grande que determinou o curso do futuro do Corvette até hoje, o de capô longo e motor dianteiro. Esta é a força de um desenho realmente especial.
A batalha do vidro bipartido
Zora pode ter acabado com motores e câmbio do carro anterior para o novo Corvette, mas não jogou a toalha. O novo carro seria tão seu quanto de Mitchell. Zora lutou e conseguiu uma moderna e bem desenhada suspensão independente traseira, injeção de combustível eletromecânica Rochester para o motor, e finalmente freio a disco nas quatro rodas.
No design, Mitchell pedia um detalhe especial a seus meninos: queria uma espinha dorsal no cupê, algo como o que existia no Bugatti Atlantic. Era quase uma homenagem pessoal dele a um de seus desenhos preferidos, e um toque pessoal e de entretenimento no carro. O espalhafatoso e grandão Mitchell adorou aquilo, e cheio de orgulho mencionava a todos de onde veio.
Mas para Zora aquilo foi a gota d`água. Ao sentar no mockup de estilo e ajeitar o retrovisor, aquela divisão da janela traseira ficava bem no meio do campo de visão do espelho. Ficou furioso, e mandou tirar aquilo do meio do vidro imediatamente. Os designers se entreolharam e ficaram parados, atônitos. Finalmente um diz que nada era mudado no desenho sem a permissão do vice-presidente. Logo a confusão chega aos ouvidos de Mitchell, que fica furioso, vermelho, ofegante. Nunca ninguém tinha o desafiado assim, e muito menos dentro de seu próprio castelo. “Como assim, tire já? O vidro bipartido fica, quem vai é você.”
E assim Zora Arkus-Duntov é banido do prédio do design. Seu crachá não abria nenhuma porta mais, e seu nome estava na listinha dos vetados do guarda na porta. Se dependesse de Mitchell, pela vida toda!
Zora levou o assunto a Cole, que mandou ele se aquietar e entrou em ação. Depois de anos de discussão, o carro acabou saindo em 1963 com a janela bipartida, mas apenas por um ano: em 1964, a divisão sumiria. Cole, político, conseguiu assim apaziguar os dois pais do maior clássico já criado pela General Motors.
Depois da guerra
Com o tempo, os dois viriam a se tolerar, a fazer as pazes (embora mais implícita que explícita) e até cooperar em mais projetos. O vidro traseiro, fonte da treta final entre os dois, acaba até hoje dividindo opiniões. Zora adorava apontar que muitos donos de Corvette 63 convertiam seus carros para o vidro sem divisão do ’64 durante os anos 60. Mas o fato é que hoje o Corvette mais valioso é justamente aquele do único ano em que o desenho original estava completo: 1963. Talvez por ser o mais raro, talvez por ser o ano de lançamento, mas não importa: foi Mitchell quem riu por último.
O Stingray foi um tremendo sucesso de público e crítica; fruto de um conflito longo e intenso, é o compromisso perfeito para a época. Tecnologicamente avançado, veloz e esportivo, mas também belíssimo, a obra-prima de um dos maiores designers que já viveram, e de um dos maiores engenheiros que já viveram. Um clássico imortal.
Quando o terceiro Corvette apareceu em 1968, era novamente um desenho original de Mitchell com capô longo; na verdade era o chassi do Stingray original desenvolvido. Zora não teve como influir muito nisso: os tempos eram outros, de contenção de custos e motores gigantes e extrapotentes. Zora se concentrou em aperfeiçoar os Corvettes para que pudessem lidar com seus novos motores. O ápice foi o ZL1, um V-8 bloco-grande todo em alumínio, pesando o mesmo que um V-8 pequeno, mas com mais de 500 cv. Feito em uma sala especial limpíssima, e desenvolvido para os Chaparral de competição, era a menina dos olhos de Zora.
Zora nunca desistiu do motor central, e continuou criando protótipos para alavancar o conceito: o CERV II de 1964 era um biposto com motor central e um avançadíssimo sistema de tração integral. No início dos anos 70, tentaria de novo fazer um carro de produção com motor central, o XP882, que depois recebeu motores rotativos Wankel da GM e se tornou o Aerovette, mas nada disso acabou vingando. Mesmo depois da aposentadoria de Zora, de tempos em tempos apareciam carros-conceito Corvette com motor central, mas há muito tempo isto parou.
Sua festa ao se aposentar em 1978 foi lendária, uma das maiores dadas a alguém com cargo tão baixo. O tal cargo na verdade fora criado para dar um cargo ao russo sem cargo; por ironia é hoje um dos mais respeitados e importantes da indústria: engenheiro-chefe do Corvette.
Seus sucessores mantiveram a tradição; o C4 de 1984 era um moderno carro esporte, mas com motor e câmbio dianteiros. O C5 de 1997 inovava com o transeixo traseiro, mas o motor continuava na frente. E assim foi também no C6 e o atual C7, que revive o nome da maior criação de Zora: Stingray.
Mas antes disso, em 1996, Zora Arkus-Duntov se foi. Um homem de outro tempo, com uma vida incrível, que recebeu em sua aposentadoria todas as honras que merecia: era venerado por gerações de fãs do Corvette, que ele gostava de chamar de o único carro esporte americano.
A próxima geração do Corvette já está em desenvolvimento na GM. Se os rumores estiverem certos, e eles são fortes, além do Corvette normal, parecido em configuração com o atual, um super-Corvette, capaz de bater todo carro do mundo numa pista, também está em desenvolvimento para uma produção limitada. Para chegar a este desempenho, tiveram que mudar radicalmente o carro. Tiveram que usar uma configuração que apesar de nunca usada num Corvette vendido ao público, está fortemente marcada na tradição de mais de 63 anos do modelo: o motor central-traseiro.
O nome deste novo super-Corvette? Ventila-se um nome que às vezes é dito como sendo o codinome interno do projeto; às vezes, talvez por pura esperança que seja verdade, é dito como sendo o nome que vai estar na traseira do carro de produção. Um nome tão legal e tão cheio de significado que chega a causar furtivas lágrimas em muito marmanjo, só de ser mencionado: Corvette Zora.
Se for verdade, e eu sinceramente espero que seja, Zora vai finalmente ter vencido esta batalha começada tanto tempo atrás. Mesmo vinte anos depois de ter morrido.
Não é incrível? Toda verdade acaba aparecendo — se o tempo de espera é suficiente.
MAO